A cada instante, o rio Amazonas, o mais extenso e volumoso do mundo, despeja uma quantidade colossal de água doce e sedimentos na porção ocidental do oceano Atlântico. São 300 milhões de litros lançados a cada segundo em frente à ilha de Marajó, no Pará, quase 20% do que todos os rios do planeta levam para os mares. Tamanha torrente transfere da cordilheira dos Andes para o Atlântico, ao longo de um mês, uma quantidade de partículas em suspensão equivalente à massa de um morro como o Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro. Enriquecida com sedimentos e nutrientes arrastados pelos quase 7 mil quilômetros (km) do rio, essa água não se dilui imediatamente ao chegar ao oceano. Em vez disso, forma uma extensa pluma de água barrenta de quase 30 metros (m) de profundidade que desliza sobre a salgada por quase 200 km mar adentro. Empurrada por ventos e correntes marinhas, a pluma se estende 2,3 mil km em direção a noroeste e abriga uma fauna própria, em parte distinta da de outras regiões do oceano.
Essa grande massa de água doce rica em nutrientes funciona como uma barreira fluida e porosa. Ela separa várias espécies de organismos marinhos encontradas no Caribe daquelas que vivem ao sul da foz do Amazonas, mas permite a passagem de outras. Seu papel de barreira começou a ser notado no início dos anos 1970 por pesquisadores estrangeiros. Dois estudos liderados por biólogos brasileiros detalham agora como evoluiu a influência da pluma sobre a formação e a distribuição de espécies de peixes e de outros grupos de animais marinhos no Atlântico Ocidental.
“A pluma do Amazonas desempenha no oceano uma função semelhante à que o rio exerce no interior do continente, separando espécies ou populações de uma mesma espécie, localizadas em margens opostas”, explica o biólogo brasileiro Luiz Rocha, curador de ictiologia da Academia de Ciências da Califórnia, nos Estados Unidos. Ele estuda há mais de 20 anos a influência da pluma na diversificação e distribuição de peixes de recifes e é coautor de um artigo que será publicado no Journal of Biogeography. No trabalho, Rocha e colaboradores das universidades federais do Rio de Janeiro (UFRJ), de Santa Catarina (UFSC) e da Universidade Charles Darwin, na Austrália, mostram que o impacto da pluma aumentou progressivamente com a evolução do Amazonas. Nos últimos 2,4 milhões de anos, a capacidade de isolamento se tornou intensa a ponto de afetar populações de peixes de grande porte e aumentar a taxa de formação de novas espécies.
Os pesquisadores chegaram a essa conclusão ao comparar o tempo de separação entre espécies (ou populações de uma mesma espécie) que viviam em lados opostos da barreira com as mudanças no volume de água e sedimentos transportados pelo Amazonas. Análises de detritos depositados na foz do rio indicam que a pluma surgiu entre 9,4 milhões e 9 milhões de anos atrás. Sua chegada a essa região do Atlântico coincide com o soerguimento da porção norte dos Andes e o aparecimento de uma versão primitiva do Amazonas.
Em uma fase inicial, que durou até 5,6 milhões de anos atrás, a quantidade de água doce e sedimentos descarregada no oceano era pequena, suficiente para criar na foz do rio um depósito de 5 centímetros (cm) de espessura a cada milênio. Nos 3,1 milhões de anos seguintes, a carga de detritos aumentou seis vezes, gerando acúmulos de 30 cm no mesmo intervalo de tempo. A terceira e mais recente fase de evolução do rio iniciou-se por volta de 2,4 milhões de anos atrás, quando a concentração de material em suspensão aumentou outras quatro vezes e a coluna de sedimentos depositados a cada mil anos alcançou 120 cm. “À medida que as taxas de sedimentação aumentaram, a barreira se tornou menos permeável aos peixes de recifes rasos”, conta Rocha.
Sob a orientação de Fabio Di Dario, da UFRJ, e Sergio Floeter, da UFSC, o doutorando Gabriel Araujo analisou 21 regiões do genoma de quase 150 espécies de peixes de recifes que ocorrem ao longo da costa brasileira e do mar do Caribe para estabelecer o tempo de separação entre elas. Eram peixes com tamanhos e características bem variados, desde Malacoctenus zaluari, um peixinho de 10 cm de comprimento e corpo prateado, com listras dorsais alaranjadas e manchas pretas, que não se distancia muito de onde nasce, até o mero (Epinephelus itajara), um grandalhão de 2,5 m, com corpo esverdeado coberto de manchas escuras.
As espécies foram depois realocadas em 110 duplas. Cada uma era formada por uma espécie que ocorria no Caribe e outra na costa brasileira, ou por populações distintas de uma mesma espécie separadas pela pluma. O efeito separador da torrente de água doce barrenta pôde ser observado para 60 dessas duplas, afetadas em um dos três momentos da evolução do Amazonas. Não houve impacto sobre as outras 50, que ocorrem em todo esse trecho do Atlântico Ocidental.
A influência da pluma foi proporcionalmente maior entre as espécies denominadas criptobênticas – peixes de menos de 10 cm que vivem no fundo e usam a paisagem dos recifes para se ocultar, como as do gênero Malacoctenus – do que entre as de peixes maiores. Das 23 espécies criptobênticas existentes hoje nessa porção do Atlântico, 20 (87%) surgiram provavelmente por influência da pluma, que dividiu populações únicas de uma mesma espécie ancestral. O mesmo efeito foi observado em 46% das 87 espécies de maior porte, entre elas a do budião-arco-íris (Scarus guacamaia), um peixe caribenho de 1,2 m de comprimento e corpo esverdeado, nadadeiras alaranjadas e boca azul, e a do budião-azul (Scarus trispinosus), de coloração uniforme e cerca de 90 cm, encontrado na costa brasileira.
“As espécies menores foram as primeiras a serem separadas pela pluma. Esse efeito só se torna evidente nas maiores nos últimos 2,4 milhões de anos”, conta Floeter, da UFSC. A torrente de água doce que separa as águas superficiais do Caribe das do litoral brasileiro levou ao surgimento de 16 espécies criptobênticas nos primeiros 4 milhões de anos de existência da pluma. Esses peixes enfrentam muita dificuldade para atravessar a barreira porque nadam por pequenas distâncias e suas larvas vivem pouco tempo na coluna de água.
Inicialmente mais tênue sobre os peixes grandes, o efeito da pluma se intensificou com o aumento da carga de sedimentos e da turbidez da água. Dos 31 eventos de separação registrados nos últimos 2,5 milhões de anos, 13 envolveram espécies com mais de 50 cm. Um dos mais recentes ocorreu há apenas 100 mil anos e originou o budião-comum (Sparisoma viride), caribenho, e o budião-verde (Sparisoma amplum), do litoral do Brasil.
As mudanças nas propriedades químicas e físicas da pluma durante o Pleistoceno foram acompanhadas de oscilações mais frequentes no nível do mar, que esteve mais de 50 m abaixo do atual em pelo menos três períodos. Por causa de sua espessura restrita, a pluma afeta menos o trânsito de espécies entre a costa brasileira e o Caribe nos períodos em que o planeta está mais quente e o nível do mar elevado, como o atual. Vários desses peixes podem usar o grande recife de algas calcáreas, corais e esponjas que existe em frente à foz do Amazonas – e se estende do Pará à Guiana Francesa – como um corredor conectando o litoral nacional ao caribenho. Já nas eras glaciais, com o nível do mar mais baixo, a água doce da pluma cobre boa parte da plataforma continental, impedindo a formação de recifes e dificultando o trânsito dos organismos marinhos.
O que o grupo de Rocha e Floeter observou para os peixes de recifes parece valer para uma grande variedade de organismos marinhos. Em um estudo publicado em janeiro na revista Scientific Reports, o biólogo Everton Tosetto e pesquisadores das universidades federais de Pernambuco (UFPE), Rural de Pernambuco (UFRPE), da Paraíba (UFPB) e do Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento (IRD), na França, analisaram a influência da pluma sobre a distribuição de 8.375 espécies pertencentes a 17 grandes grupos (filos) de animais encontrados no Atlântico Ocidental, do mar do Caribe a Cabo Frio, no Rio de Janeiro.
A variedade é grande e inclui seres microscópicos que formam o plâncton, passivamente transportados pelas correntes oceânicas, animais que vivem no fundo do mar, como anêmonas e poliquetas, e outros com boa capacidade própria de deslocamento, por exemplo, crustáceos, peixes e até aves. “Trabalhos anteriores focaram em filos específicos. Mostramos que a pluma do rio Amazonas é uma barreira à dispersão dos principais grupos de animais marinhos”, afirma o biólogo, que faz um estágio de pós-doutorado no IRD.
O grupo constatou que a pluma é mais do que um divisor de duas áreas com faunas distintas. Ela, em si, é um ecossistema com uma diversidade biológica peculiar. Suas características físicas (maior turbidez) e químicas (menor salinidade e maior concentração de nutrientes) propiciam o crescimento de um número considerável de espécies que talvez não resistissem às condições da água do mar.
Estima-se que existam na pluma 1.929 das 8.375 espécies de animais marinhos do Atlântico Ocidental. Cerca de 27% delas (519) são encontradas ali, mas não no Caribe nem na costa brasileira. Já das 3.373 espécies que, estima-se, ocorrem no litoral brasileiro, 1.713 (51%) não são encontradas na pluma nem no mar do Caribe, onde o grau de exclusividade é ainda mais elevado: 69% das 5.590 espécies observadas lá não estão nas outras duas regiões.
A comparação do número de espécies compartilhadas entre as três regiões permitiu ainda confirmar que a costa do Brasil e a pluma são “exportadoras” de fauna: 45% das espécies brasileiras e 65% das encontradas na pluma também existem no Caribe, enquanto apenas 25% das caribenhas ocorrem no litoral do país e 21% na pluma. Esses dados sugerem que, em muitos casos, a pluma atua como um filtro semipermeável, que permite a passagem em um sentido preferencial”, conta Tosetto. O sentido privilegiado de dispersão é de sul para norte, provavelmente em consequência do transporte oceânico nessa área, dominado pela Corrente Norte do Brasil.
Em um estudo publicado em março deste ano na revista Science of the Total Environment, os oceanólogos Fabiano Thompson e Camille Leal, da UFRJ, e sua equipe analisaram as comunidades de microrganismos – bactérias e arqueias – que habitam duas espécies de esponja encontradas do Panamá ao Rio de Janeiro: Monanchora arbuscula e Xestospongia muta. Concluíram que a pluma do Amazonas não afetou a distribuição dessas esponjas nem dos microrganismos que vivem em seu interior e são importantes para a saúde delas.
Artigos científicos
ARAÚJO, G. S. et al. The Amazon-Orinoco barrier as a driver of reef-fish speciation in the Western Atlantic through time. Journal of Biogeography. No prelo.
TOSETTO, E. G. et al. The Amazon River plume, a barrier to animal dispersal in the Western Tropical Atlantic. Scientific Reports. 11 jan. 2022.
LEAL, C. V. et al. Sponges present a core prokaryotic community stable across Tropical Western Atlantic. Science of the Total Environment. 13 abr. 2022.