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Fármacos

Uma carona indesejada

Nanopartículas podem transportar moléculas intrusas para o interior das células

A área em amarelo indica a parte hidrofóbica da nanopartícula e a área em cinza indica a parte hidrofílica

LQES/unicampA área em amarelo indica a parte hidrofóbica (avessa à água) da nanopartícula e a área em cinza a parte hidrofílica (com afinidades com água)LQES/unicamp

Ao analisar como nanopartículas porosas carregadas de fármacos interagiam com células tumorais, o químico Oswaldo Alves observou algo inesperado. Após vários experimentos, ele e sua equipe verificaram que, além do medicamento – a camptotecina, um antitumoral potente, mas de toxicidade elevada –, as nanoestruturas transportavam para dentro das células uma das moléculas do meio de cultura celular, a mistura de vitaminas, proteínas e sais minerais que mantém as células vivas. A descoberta sugeria que as nanopartículas não eram veículos tão eficientes quanto se acreditava para o transporte de medicamentos, e que poderiam até mesmo levar para dentro das células substâncias com efeitos nocivos. Em vez de auxiliares farmacológicos de alta precisão, seriam cavalos de Tróia.

Até agora, Alves e outros pesquisadores dessa área acreditavam que, encapsulados, os fármacos eram levados às células sem interferências externas. Isso porque essas nanocápsulas, feitas à base de sílica e com diâmetro de 20 a 60 nanômetros, são protegidas por uma capa formada por proteínas que ajuda a manter e proteger o medicamento no interior de seus poros. Agora, no estudo que rendeu para o grupo a capa da edição de julho da revista Applied Materials & Interface, os pesquisadores explicam que essas nanoestruturas também atraem moléculas avessas à água, desencadeando reações químicas que podem comprometer ou até mesmo bloquear a liberação do fármaco preso aos seus microporos.

“Essas interações comprometeriam a eficácia do experimento”, diz Alves em seu laboratório no Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Podemos dizer, por exemplo, que é o fármaco que está agindo quando, na verdade, os resultados obtidos podem ser fruto da interação química entre o medicamento e as moléculas intrusas”, ele observa. “Se pensarmos esses fenômenos do ponto de vista clínico, sendo essas partículas injetadas no sangue, algumas das moléculas na corrente sanguínea poderiam atravessar essa barreira, sendo transportadas para dentro das células”. Os efeitos dessa interferência, segundo ele, podem acarretar na diminuição da quantidade de medicamento liberado. Em outras palavras, a quantidade de fármaco encapsulado pode não ser a mesma a chegar às células.

Até hoje, experimentos voltados à aplicação dessas nanoestruturas, de aspecto semelhante ao de uma bola de golfe, eram feitos normalmente em meios de culturas celulares sem considerar essas possíveis interações, segundo ele. “A verificação de que algumas moléculas conseguem furar a barreira protéica que recobre essas nanopartículas pode fazer com que muitos trabalhos já feitos tenham de ser revisados”, diz o biólogo Diego Stéfani Teodoro Martinez, do grupo de Alves.

microscopia de transmissão das nanopartículas de sílica multifuncionalizadas

LQES/UnicampMicroscopia de transmissão das nanopartículas feitas à base de sílica multifuncionalizadasLQES/Unicamp

Os pesquisadores ainda não sabem como se dá essa interação química. “Os componentes intrusos podem ser nocivos, mas não sabemos se isso pode acarretar numa associação cooperativa entre eles e o fármaco”, comenta Diego Stéfani. “Estamos diante de uma situação muito nova, que pode ter muitas implicações”. O mais importante, ele comenta, é que as moléculas intrusas, por conta própria, não pareciam ser capazes de penetrar nas células.

Uma hipótese levantada pelo grupo da Unicamp é que todo componente do meio de cultura celular com características hidrofóbicas (que repelem a água) possa ser atraído para o interior das nanopartículas. “Precisamos investigar melhor esse fenômeno. Não sabemos quanto do fármaco sai da partícula e quantos componentes são capazes de invadi-la. Só identificamos um deles, a SYTOX green”, diz o químico Amauri Jardim de Paula, autor principal do estudo. “O próximo passo é tentar controlar a quantidade de moléculas que entram na célula e entender se esse fenômeno ocorre de modo diferente em outros meios de cultura”.

Chegar a essas conclusões não foi fácil. Até concluir que nanoestruturas poderiam transportar para o interior das células outras substâncias além do fármaco, o grupo precisou percorrer um longo caminho envolvendo barreiras técnicas e burocráticas, incluindo a dificuldade de integrar pesquisadores de diferentes áreas – o estudo conta também com a colaboração do químico Nelson Durán, do Laboratório de Química Biológica da Unicamp, e dos biólogos Roberto Theodoro Araújo Júnior, Edgar Paredes-Gamero, Helena Nader e Giselle Justo, do Departamento de Bioquímica e de Ciências Biológicas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Outro obstáculo foi fazer com que a camptotecina fosse encapsulada e transportada na quantidade necessária para o experimento. Assim como muitos fármacos, a camptotecina é uma substância insolúvel em água, o que dificulta a administração de suas doses. Em meados de 2012, Amauri, à época doutorando orientado por Alves, apresentou uma nova estratégia para tornar essas moléculas solúveis em água mais facilmente. Ele desenvolveu uma partícula de superfície hidrofílica (com afinidade com água), de modo que fosse solúvel, e interior hidrofóbico, de maneira que as características da nanopartícula fossem compatíveis com as características do antitumoral, insolúvel em água. Seu trabalho ganhou a capa da Journal of the Brazilian Chemical Society em outubro de 2012.

Amauri e Alves observaram que as nanopartículas à base de sílica, diferentemente do que se pensava, não destruíam as células vermelhas do sangue, as hemácias. “Colocadas no meio de cultura celular e em seguida revestidas por proteínas essas partículas se tornam aparentemente inofensivas para as hemácias”, explica Amauri, atualmente professor do Departamento de Física da Universidade Federal do Ceará (UFC). “Agora queremos saber se essas nanoestruturas feitas de sílica se acumulam no organismo ou são eliminadas. Há poucos estudos envolvendo os efeitos colaterais dessas nanoestruturas”.

No Instituto Butantan, e em outros centros de pesquisa, partículas de sílica têm sido a base para novas vacinas (ver Pesquisa FAPESP nº204). Em especial, um tipo de nanopartícula mesoporosa de sílica chamada de SBA-15 tem se mostrado eficiente no transporte de vacinas por via oral. No ano passado, testes conduzidos pelo instituto, em parceria com a Universidade de São Paulo e o Laboratório Cristália, contra a hepatite B em camundongos mostrou que essas partículas conseguem atravessar o ambiente ácido do estômago, sendo absorvidas pelo intestino, feito que a maioria das proteínas não é capaz de fazer.

O uso de nanopartículas para o transporte de fármacos tem sido estudado e desenvolvido em todo o mundo. Para o químico Henrique Eise Toma, da USP, o uso de nanopartículas mesoporosas é mesmo mais adequado para moléculas pequenas, que se alojam em suas cavidades ou poros. No estudo de Alves, ele explica, as nanopartículas atuam como liberadores ou carreadores de fármacos, mas nem sempre elas têm um alvo bem definido. “Nessa linha existem alternativas como a ciclodextrina, já incorporada na maioria dos fármacos”, comenta. Segundo ele, a linha de pesquisa mais “bonita”, de fato, é a funcionalização das nanopartículas para atingirem determinado alvo ou tipo de célula.

Ao contrário do transporte molecular, as nanopartículas normalmente não atravessam as membranas celulares. Contudo, algumas conseguem ser assimiladas pelas células, que as confundem com proteínas. Para o químico, estudos como os de Alves e seu grupo abrirão novas perspectivas em áreas como a da nanomedicina.

Projeto
Produção de nanoestruturas mesoporosas à base de sílica para o transporte de agentes antitumorais hidrofóbicos (nº 09/58917-3); Modalidade: Doutorado; Coord.: Amauri Jardim de Paula/Unicamp; Investimento: R$ 110.201,13 (FAPESP).

Artigos científicos
PAULA, A. J. et al. Influence of protein corona on the transport of molecules into cells by mesoporous sílica Nanoparticles. Applied Materials & Interfaces. v. 5, n.17, p. 8.387–93. 2013.
PAULA, A. J. et al. Suppression of the hemolytic effect of Mesoporous silica Nanoparticles after protein corona interaction: independence of the surface microchemical environment. Journal of the Brazilian Chemical Society. v. 23, n. 10, p. 1.807-14. 2012.

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