O velho, mas sempre atual, polêmico e mal conhecido positivismo continua sendo objeto de debates. E constitui mérito de Lelita Oliveira Benoit, com sua Sociologia Comteana (FAPESP/Discurso Editorial, São Paulo, 1999), contribuir decisivamente para o conhecimento desta filosofia. Com clareza e elegância, ela revela uma leitura em profundidade, atenta aos detalhes e às grandes linhas de condução de um pensamento desafiador para o intérprete, dada sua complexidade. É que no sistema comteano entrecruzam-se de modo inextrincável temas cruciais da cultura moderna, como a ciência, a política, a filosofia, a moral,
e a religião.
Paciente e sóbria, rigorosamente fiel aos textos, Lelita Benoit entusiasma o leitor com seu aparato crítico e erudição. Suas fontes bibliográficas oferecem informações indispensáveis à compreensão dos textos comteanos, sejam elas referentes às circunstâncias da produção do texto ou exaustivas indicações das filiações filosóficas e históricas do autor. Mas esse verdadeiro trabalho de formiga está longe de ser seu maior mérito — que é o de construir um brilhante desenvolvimento da interpretação marcuseana de Comte, como aponta Isabel Loureiro no prefácio.
Na primeira parte (“Da Economia Política à História”), Lelita Benoit analisa o conjunto de textos do jovem Comte, já orientados para a fundação de uma ciência social moderna. Trabalhando em parte com textos de difícil acesso, com problemas de estabelecimento da verdadeira autoria, mas rastreando tudo o que diz respeito aos anos 1817-1819, ela renova as interpretações mais ou menos consagradas pela exegese acadêmica, ao mostrar que as teses sobre a existência de um período pré-positivista devem ser, no mínimo, revistas. Em sua interpretação, jamais houve adesão completa de Comte ao pensamento econômico nem uma fase pré-positivista. Já em 1817, Comte “propõe que se reflita mais seriamente sobre a organização da moderna sociedade européia, de modo a superar o estado de anarquia instaurado após a Revolução Francesa, e começa fazendo um apelo ao consenso político”, dirigido aos homens influentes da Europa. E aqui já estão sendo colocados alguns dos termos-chave que irão mapear sua trajetória: sociedade moderna, Revolução, organização, consenso, todos de cunho acentuadamente político que revelam a lacuna essencial do pensamento econômico: a crise atual, por ser de “natureza política e moral” (p. 39), exigiria um instrumento intelectual novo que somente se constituirá com o surgimento da sociologia como ciência. Atenuando a tese da adesão à economia política, Lelita dá o primeiro passo para propor a tese da profunda unidade e continuidade de todo o pensamento comteano.
Perseguindo o ideal de uma ciência do social mais ampla que a economia política, restrita ao cálculo do interesse privado, Comte vai encontrar na história o horizonte que contemplaria também os interesses coletivos. É assim que Lelita inicia a parte II de seu livro (“Sob o Paradigma da História”) com uma reconstituição da teoria comteana do tempo social e histórico que se caracterizaria, conforme a observação da marcha da civilização, pela estrita continuidade, rítmo lento, linearidade e aversão natural pelas rupturas abruptas e revolucionárias. O tempo social é o tempo da transição gradativa. O tempo histórico impõe, portanto, a resignação como virtude política primeira.
Com essas premissas, Lelita realiza, no capítulo VI de seu livro, apaixonada comparação entre Condorcet e Comte, que considerava aquele filósofo como “seu verdadeiro pai espiritual”. Faz uma leitura cerrada dos textos de Condorcet, cujo Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano se concentra em “três pontos ali considerados os mais importantes: a destruição da desigualdade entre as nações; os progressos da igualdade de um mesmo povo; o aperfeiçoamento do homem real”( p. 177 ). E mostra como “é contra essa filosofia da história de Condorcet, que privilegia em absoluto a igualdade e a liberdade, que se revoltará Comte” ( p. 165 ) , em nome de uma suposta tendência natural dos homens à boa ordem, à obediência e à resignação.
A seguir, concentra-se na sociologia propriamente dita, cujo texto inaugural seria o famoso Opúsculo Fundamental de 1822. A expressão imediata da ciência sociológica é a famosa lei dos três estados. Segundo Comte, o espírito humano, começando pelo estado teológico inicial e transitando pelo estado metafísico intermediário, chega ao estado positivo ou científico atual e definitivo. A ordem torna-se categoria teórico-prática fundamental do pensamento comteano, fundado em parte na objetividade do pensamento científico e, em parte, pela necessidade de pôr freio à revolução. Do ponto de vista subjetivo, ordem é submissão, obediência, disciplina, que têm de aparecer como tendências naturais, necessárias e universais. Dentro dessa perspectiva, Lelita desenvolve a parte III de seu livro, “Sob o Paradigma da Biologia”, realizando uma exegese inédita em língua portuguesa de textos rarissimamente trabalhados e, no entanto, indispensáveis para a compreensão do positivismo. Ela afirma que “nas “lições” de sociologia, as categorias histórico-sociológicas se enraízam profundamente nas categorias biológicas, encontrando nestas últimas sua própria gênese” (p. 331). Mas o que interessa a Comte é o que a biologia pode fornecer, na verdade, para uma teoria da natureza humana (pouco importando que o estudo de qualquer natureza seja por definição “metafísico” e não positivo). Partindo do esfacelamento da unidade metafísica da alma e do eu, elaborado pelas mais recentes conquistas da moderna biologia, Comte propõe a fremologia como ponto de partida para o estudo do homem. Como os homens não foram feitos para pensar, mas para sentir e ter emoções, é necessário sempre um guia que possa conduzi-los nos duros caminhos da vida. E como “na maior parte dos homens existe uma disposição natural à obediência”( p. 356 ), trata-se de organizar essa tendência natural. Esta será a função social da religião, objeto de estudo da última parte do livro, “Sob o Paradigma da Religião”, em que Lelita trabalha especialmente o conceito de pacto social positivista, ou seja, aquele estabelecido não mais “entre indivíduos, mas entre classes sociais: o proletariado e os “ricos ativos”. Mas o que caracteriza sobretudo o pacto positivista é que exclui explicitamente o ponto de vista da vontade geral (p. 379). Há superiores e inferiores: eis o fato social por excelência, inelutável, indestrutível, eterno!
Investigação rigorosa, mas apaixonada e instigante, o trabalho de Lelita Benoit traz o debate sobre o positivismo a um nível de qualidade raras vezes alcançado.
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