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Astronomia

Uma jornada até Plutão

Bem-sucedida na tarefa de observar o planeta anão, a sonda New Horizons precisou resistir a ameaças de cancelamento da missão

Primeira imagem da atmosfera plutoniana, obtida sete horas depois da aproximação máxima: mais nebulosa e mais alta do que o previsto

NASA /JHUAPL/SwRIPrimeira imagem da atmosfera plutoniana, obtida sete horas depois da aproximação máxima: mais nebulosa e mais alta do que o previstoNASA /JHUAPL/SwRI

A conclusão bem-sucedida da primeira missão a Plutão foi amplamente noticiada, mas quase nada se disse do trabalho que deu chegar até lá – tanto os desafios tecnológicos quanto os políticos. A sonda New Horizons foi um dos projetos mais arrojados – e ameaçados – já levados a cabo pela Nasa, a agência espacial norte-americana. A espiadela no planeta (ou ex-planeta, conforme decisão da União Astronômica Internacional) sobre o qual se sabia muito pouco já revelou traços de uma geografia e uma composição surpreendentes e promete muito mais para os próximos tempos. Os resultados devem deixar cientistas do mundo todo bastante ocupados por pelo menos uma década.

O desafio técnico, por si só, já foi extraordinário. Partindo da Terra, a sonda precisava ser conduzida pelo espaço de forma a atravessar um retângulo imaginário de 150 por 100 quilômetros (km) localizado a quase 5 bilhões de km daqui. Numa comparação ilustrativa apresentada por Glen Fountain, gerente de projeto da New Horizons, era como dar uma tacada de golfe em Nova York e acertar o buraco em Los Angeles – na primeira tentativa.

E o que aconteceria se a sonda não passasse por essa área imaginária, em sua aproximação final a Plutão? Basicamente, ela apontaria os instrumentos para o espaço vazio, uma vez que seus objetos de estudo não estariam nos locais previstos. Toda a programação de observações tinha de ser automatizada e armazenada nos computadores da sonda dias antes da aproximação máxima, sem margem para correções de última hora.

Em certo sentido, a New Horizons reproduziu o sucesso obtido pelas sondas Voyager 1 e 2, que nos anos 1970 e 1980 visitaram os quatro maiores planetas do Sistema Solar – Júpiter, Saturno, Urano e Netuno –, antes de deixar para sempre o Sistema Solar. Ocorre que o nível de precisão requerido para uma missão a Plutão é maior. Não só ele estava mais distante que qualquer dos alvos visitados pela Voyager como se move mais devagar, o que torna mais difícil determinar com precisão a órbita em torno do Sol e, com isso, sua posição a cada momento. O sistema plutoniano era tão desconhecido que, quando a sonda começou a ser preparada, em 2001, só a maior de suas luas, Caronte, era conhecida. Em 2005, por ocasião de observações de reconhecimento feitas com o Telescópio Espacial Hubble, os astrônomos encontraram mais duas: Nix e Hidra. E somente em 2011 e 2012, quase na reta de chegada da New Horizons, as duas últimas conhecidas – Cérbero e Estige – foram achadas. É bem possível que as imagens da New Horizons revelem mais objetos nas redondezas. “Acredito que, com as imagens que ainda serão enviadas, há grandes chances de se descobrir novos satélites”, diz a especialista em dinâmica orbital Silvia Giuliatti Winter, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Guaratinguetá.

Modelos computacionais elaborados por ela ajudaram a equipe da New Horizons a planejar a travessia mais segura da região durante o sobrevoo, conforme a sonda se aproximou a apenas 12,5 mil km da superfície do planeta anão (ver Pesquisa FAPESP nº 210).

Durante os anos que antecederam o lançamento, contudo, a maior ameaça à missão foi bem mais prosaica: cortes no orçamento da agência feitos pelo governo norte-americano. Em 2000, a Nasa decidiu cancelar o projeto então em andamento, chamado Pluto Kuiper Express, conduzido pelo Laboratório de Propulsão a Jato (JPL). Mas os congressistas americanos, que historicamente se mobilizam em favor de expedições de ciência planetária, restituíram a missão, e a Nasa lançou um anúncio de oportunidade solicitando ideias com custo mais baixo. Daí nasceu a New Horizons, operada pelo Laboratório de Física Aplicada (APL) da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos. Foi a chance de Alan Stern, cientista-chefe da missão, pôr em prática planos que ele já elaborava desde 1989.

Retrato oficial: área em forma de coração ganhou o nome de Tombaugh Regio

NASA /JHUAPL/SwRIRetrato oficial: área em forma de coração ganhou o nome de Tombaugh RegioNASA /JHUAPL/SwRI

Ainda que a etiqueta de preço tenha ficado mais barata que a antiga Pluto Kuiper Express, foram gastos respeitáveis US$ 720 milhões. E mesmo depois da oficialização da missão, em 2001, ela passou por apuros. Em 2002, a Casa Branca (então ocupada por George W. Bush) tentou mais uma vez cancelar a missão. O Congresso, novamente, não deixou. Os resultados científicos, e por que não dizer midiáticos, observados a partir de julho de 2014 foram fruto direto daquelas intervenções providenciais dos parlamentares americanos.

A terceira zona
A exploração de Plutão marca a primeira visita de uma espaçonave a um território até então inexplorado do Sistema Solar. Nas regiões mais internas ficam os planetas rochosos, dos quais a Terra é o maior representante. Indo mais longe, há os planetas gigantes gasosos, dos quais Júpiter é o maior. E, cruzando a órbita de Netuno, temos um agregado com centenas de milhares de objetos, o chamado cinturão de Kuiper, do qual Plutão é o maior representante.

“A passagem da sonda é um marco no conhecimento da chamada Terceira Zona do Sistema Solar”, diz Silvia. “Acredito que os dados enviados pela sonda New Horizons nos trarão surpresas de Plutão e do próprio cinturão de Kuiper. Provavelmente teremos de rever e adequar os modelos dinâmicos de formação e evolução dos objetos do Sistema Solar.”

Num trabalho recente, publicado no início de 2015, a pesquisadora da Unesp e seus colegas sugeriram que Plutão poderia ter se formado numa região mais interna do Sistema Solar e só depois teria migrado para o cinturão de Kuiper, sem que isso acarretasse a perda de seus satélites. Há razões para desconfiar que o planeta anão não seja mesmo nativo do cinturão de Kuiper, pois faltaria massa para produzir um objeto daqueles por ali, há 4,5 bilhões de anos. A questão ainda é controversa.

Controvérsias e surpresas é que não faltaram já nas primeiras imagens colhidas durante a aproximação final. Elas revelaram um cenário geológico bastante inesperado. Cadeias de montanhas de gelo de água e terrenos geologicamente jovens, com menos de 100 milhões de anos, contrastam com regiões mais escuras e cheias de crateras, representando terrenos intocados por bilhões de anos. Tudo indica que ainda há processos movidos por calor interno em Plutão, algo difícil de explicar pelos atuais modelos geofísicos. O que se vê na superfície desse pequeno mundo com 2.372 km de diâmetro, que deveria estar geologicamente morto, pode até sinalizar a existência de um oceano de água líquida sob as profundezas de sua enorme crosta de gelo. “Parece que o Sistema Solar resolveu guardar o melhor para o final”, brincou Alan Stern em uma das muitas entrevistas coletivas concedidas para apresentar os primeiros resultados científicos da New Horizons.

Clyde Tombaugh no observatório Lowell (esq.), onde em 1930 descobriu o planeta batizado por sugestão de Venetia Burney, 11 anos...

arquivos observatório lowell Clyde Tombaugh no observatório Lowell, onde em 1930 descobriu o planeta…arquivos observatório lowell

Quanto à superfície, ela parece conter gelos de diversas substâncias – água no caso das montanhas, mas sobretudo metano e outros compostos orgânicos, nitrogênio e monóxido de carbono. Aparentemente, este último é um componente importante da área mais brilhante e lisa de Plutão, batizada pela equipe da sonda de Tombaugh Regio, em homenagem ao descobridor do planeta anão, o astrônomo americano Clyde Tombaugh.

Os pesquisadores também encontraram algumas surpresas na atmosfera de Plutão. Alguns dos modelos atmosféricos sugerem que o ar plutoniano poderia ser um fenômeno apenas temporário, que se congela e colapsa quando se aproxima do afélio (ponto mais distante do Sol), voltando a se vaporizar no periélio (ponto mais próximo do Sol). Verificar essa hipótese foi um dos argumentos que salvaram a missão do cancelamento em 2002. Agora, 25 anos depois do último periélio, é um bom momento para analisar a atmosfera e testar os modelos. Com os dados colhidos, ainda não foi possível determinar se isso realmente ocorre. Mas já sabemos que ela é um pouco mais fria e menos espessa do que se imaginava.

Um dos cientistas brasileiros mais interessados nesses resultados em particular é Felipe Braga-Ribas, da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), em Curitiba. Ele estuda fenômenos conhecidos como ocultações estelares – momentos em que objetos do cinturão de Kuiper, como Plutão, passam à frente de uma estrela mais distante, com relação ao campo de visada aqui na Terra. Ao observar o padrão de obscurecimento da estrela conforme ela se esconde primeiro atrás da atmosfera, depois atrás da superfície de Plutão, é possível inferir propriedades atmosféricas como pressão ou temperatura.

“Os dados das ocultações estelares complementam aqueles obtidos pelo instrumento Alice da New Horizons, de ultravioleta”, diz Braga-Ribas. “O Alice consegue medir a atmosfera até uns 170 km de altitude, e com ocultações conseguimos ir o resto do caminho, até próximo à superfície.”

O brasileiro espera que a incrível fonte de dados que será a New Horizons servirá para decifrar o estado atual da atmosfera de Plutão. A partir daí, com novas ocultações estelares, será possível investigar como ela evolui com o passar do tempo, para então verificar processos como o hipotético colapso temporário da atmosfera.

Caronte, a maior das luas, também se revelou especialmente intrigante. A superfície não é tão renovada quanto a de Plutão, mas ainda assim é mais jovem do que o esperado, e uma região escura no polo é um mistério completo para os cientistas.

O futuro
O nível de empolgação dos cientistas com os dados produzidos pela sonda lembra o de uma torcida em final de campeonato. Literalmente. “Na semana do sobrevoo, após a última conferência da Nasa, eu e o pessoal da equipe de que faço parte fomos com todos os membros do time da New Horizons assistir a um jogo de beisebol do Nationals, em Washington”, conta André Amarante, pesquisador do grupo da Unesp de Guaratinguetá e que no momento faz uma parte do doutorado na Universidade de Maryland, em Laurel (mesma cidade que sedia o APL).

...  batizado por sugestão de Venetia Burney, 11 anos, transmitida por telegrama do astrônomo H. H. Turner

arquivos observatório lowell … batizado por sugestão de Venetia Burney, 11 anos, transmitida por telegrama do astrônomo H. H. Turnerarquivos observatório lowell

“O jogo teve de ser paralisado algumas vezes por falta de energia, e enquanto isso o Alan Stern começou a mostrar para as pessoas imagens de Plutão, diretamente do seu celular. Foi demais! Agora sabemos onde chega o sinal da New Horizons”, brinca Amarante.

O interesse específico de Amarante é encontrar objetos em regiões estáveis ao redor das luas conhecidas. “Nas simulações computacionais que fizemos, descobrimos que existe uma possibilidade real de que em algumas dessas regiões estáveis possa existir uma população de objetos denominados troianos, que compartilham a mesma órbita de uma dada lua”, diz. “Por isso estamos bastante ansiosos pelos dados da New Horizons.”

A ansiedade ainda deve durar por um bom tempo. Transmitindo dos confins do Sistema Solar, a taxa de envio de dados é inferior à das antigas conexões de internet discada. Até baixar completamente os 5 gigabytes produzidos durante a passagem por Plutão, será preciso esperar 16 meses. A julgar pelo que chegou até agora, vai valer a pena.

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