Ao longo dos últimos anos, psiquiatras e neurologistas se inquietavam com os casos que apresentavam as características clínicas da doença de Alzheimer, embora sem as lesões cerebrais ou o acúmulo de proteínas associadas a essa doença, responsável por mais da metade dos casos diagnosticados de demência. Um trabalho recente forneceu a possível explicação para a situação: de 15% a 20% dos casos que se parecem com Alzheimer poderiam ser uma nova forma de demência chamada Late, sigla de encefalopatia da proteína TDP-43 relacionada à idade predominante no sistema límbico (Limbic-predominant age-related TDP43 encephalopathy). A Late foi proposta em um artigo científico publicado em 30 de abril na revista científica Brain por um grupo coordenado por Peter Nelson, da Universidade de Kentucky, com 34 pesquisadores de outras universidades dos Estados Unidos, do Reino Unido, da Suécia e da Austrália, com base em autopsias de pessoas com mais de 80 anos de idade.
A doença de Alzheimer e a Late atingem inicialmente a mesma região do cérebro, o chamado sistema límbico, mas há diferenças. A primeira provoca perda de memória gradativa e se manifesta a partir dos 65 anos. A frequência da segunda é maior a partir dos 80 anos. As lesões cerebrais típicas da doença de Alzheimer envolvem dois marcadores – o peptídeo beta-amiloide, que forma aglomerados (placas) entre os neurônios, ou a proteína tau, que origina emaranhados no interior dos neurônios –, identificados por tomografia de emissão de pósitrons (PET) e pela análise do líquido cefalorraquidiano (líquor). A Late está associada ao acúmulo da proteína TDP-43, que auxilia o RNA em suas tarefas no núcleo da célula. Quando produzida em excesso, a TDP-43 migra para o citoplasma e forma aglomerados que prejudicam o funcionamento dos neurônios. Em 2006, essa proteína foi associada a uma forma de demência associada à degeneração dos lobos frontais e temporais e a outra doença neurodegenerativa, a esclerose lateral amiotrófica, caracterizada pela perda de neurônios motores.
“Falta ainda ver se o acúmulo de TDP-43 no cérebro é apenas uma correlação, um evento simultâneo, ou efetivamente a causa da perda de memória”, observa o bioquímico Sergio Teixeira Ferreira, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Segundo ele, a mesma dúvida poderia valer para a doença de Alzheimer, porque há pessoas com muitas placas de beta-amiloide e pouca perda de memória e também o contrário.
A Late amplia as diferenças entre as formas de demência. Duas outras formas confundidas com a doença de Alzheimer – a demência por grãos argirofílicos, identificada em 1987, e a tauopatia primária relacionada à idade, em 2014 – também se manifestam após os 80 anos e causam atrofia do hipocampo, mas apresentam acúmulo apenas da tau. “Antes, qualquer episódio de perda de memória, ainda que episódico, era visto como sinal de Alzheimer”, comenta o neurologista Márcio Luiz Figueiredo Balthazar, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM-Unicamp). O diagnóstico mais preciso só pode ser feito após a morte do paciente.
“Mesmo com a descoberta dessa forma alternativa de demência senil, a doença de Alzheimer dificilmente deixará de ser a principal causa de demência no idoso”, afirma o psiquiatra Orestes Vicente Forlenza, do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq-FM-USP). “Contudo, será necessário rever as estimativas epidemiológicas. Provavelmente as taxas de prevalência da doença de Alzheimer estão superdimensionadas, uma vez que casos diagnosticados clinicamente como Alzheimer são, na realidade, atribuídos à Late.” Ainda não há marcadores para a TDP-43 que permitam a comprovação do diagnóstico em vida, mas, segundo ele, “uma demência de início tardio com atrofia hipocampal e negativa para beta-amiloide e para tau pode, na realidade, corresponder à Late”.
A identificação das proteínas poderia facilitar a busca por tratamentos específicos para as diferentes formas de demência, um problema de saúde pública crescente. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o número de pessoas com esse tipo de transtorno psiquiátrico passou de 20 milhões em 1990 para quase 50 milhões atualmente. Em maio, a OMS distribuiu um manual de 96 páginas com orientações para reduzir o risco de perda de memória e demência, como a redução do tabagismo, a prática de atividades físicas e o controle de diabetes e hipertensão. Em janeiro de 2019, o grupo da UFRJ publicou um estudo na Nature Medicine mostrando que a prática de exercícios físicos poderia efetivamente reduzir a perda de memória e prevenir a formação de placas de beta-amiloide.
O lítio, usado há décadas para tratar o transtorno bipolar, desponta como uma possibilidade para deter a perda de memória gradativa que caracteriza as demências, para as quais não há medicamentos. Reiterando estudos em modelos experimentais e outros testes em seres humanos, a equipe do IPq verificou que o lítio em dosagens menores que as empregadas contra o transtorno bipolar poderia ajudar a prevenir a perda de memória e a formação de aglomerados de beta-amiloide. Nesse estudo, 61 pessoas com comprometimento cognitivo leve e idade média de 72,6 anos tomaram carbonato de lítio ou placebo durante dois anos e foram acompanhadas por mais dois anos, como detalhado em um artigo publicado em abril na revista científica British Journal of Psychiatry. “O lítio em doses subterapêuticas foi bem tolerado, sem prejudicar os rins e a tireoide”, observa Forlenza. A perspectiva do emprego do lítio contra demência depende agora de testes em grupos maiores de pessoas e da definição das formas de uso mais adequadas e dos estágios da doença em que poderia funcionar melhor.
Artigos científicos
NELSON, P. T. et al. Limbic-predominant age-related TDP-43 encephalopathy (Late): Consensus working group report. Brain. 30 abr. On-line. 2019.
FORLENZA, O. V. et al. Clinical and biological effects of long-term lithium treatment in older adults with amnestic mild cognitive impairment: Randomised clinical trial. British Journal of Psychiatry. On-line. 5 abr. 2019.
LOURENÇO, M. V. et al. Exercise-linked FNDC5/irisin rescues synaptic plasticity and memory defects in Alzheimer’s models. Nature Medicine. v. 25, p. 165-75. 7 jan. 2019.