Limitada, incompleta, desigual: assim era a educação brasileira no começo do século XX. “As poucas escolas públicas existentes nas cidades eram frequentadas pelos filhos das famílias de classe média. Os ricos contratavam preceptores, geralmente estrangeiros, que ministravam aos filhos o ensino em casa, ou os mandavam a alguns poucos colégios particulares, leigos ou religiosos, funcionando nas principais capitais, em regime de internato ou semi-internato […]. Em todo o vasto interior do país havia algumas precárias escolinhas rurais, em cuja maioria trabalhavam professores sem qualquer formação profissional, que atendiam às populações dispersas em imensas áreas”, relata o educador Paschoal Lemme (1904-1997), integrante de um movimento de renovação educacional que tinha por objetivo a transformação dessa realidade, em um artigo de 1984 na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos.
Conhecido como “Escola Nova” ou “Escola Ativa”, esse movimento espalhara-se pela Europa e pelos Estados Unidos desde o final do século XIX. No Brasil, ganhou força principalmente após a Primeira Guerra Mundial, por influência norte-americana, e defendia ensino público gratuito, obrigatório e universal. A centralidade da criança no processo de aprendizagem era outra bandeira do movimento. Para o filósofo e pedagogo norte-americano John Dewey (1859-1952), um dos principais teóricos da Escola Nova, essa seria a “revolução copernicana” do ensino: “[…] é uma revolução não muito diferente da que Copérnico iniciou ao transferir o centro astronômico da Terra para o Sol. No caso em análise, a criança converte-se no Sol em volta do qual gravitam os instrumentos da educação; ela é o centro em torno do qual estes se organizam”, escreve Dewey no livro A escola e a sociedade: A criança e o currículo (Relógio D’Água, Lisboa, 2002). “Nessa nova concepção da escola, que é uma reação contra as tendências exclusivamente passivas, intelectualistas e verbalistas da escola tradicional, a atividade que está na base de todos os seus trabalhos é a atividade espontânea, alegre e fecunda, dirigida à satisfação das necessidades do próprio indivíduo”, proclama o Manifesto dos pioneiros da educação nova, documento que apresentou ao Brasil o movimento revolucionário.
Em março de 1932, o Manifesto dos pioneiros foi publicado em vários órgãos de imprensa, com a assinatura de 26 educadores e intelectuais de renome, como Anísio Teixeira (1900-1971), que na ocasião era diretor da Instrução Pública do Distrito Federal; Júlio de Mesquita Filho (1892-1969), proprietário do jornal O Estado de S. Paulo; a escritora Cecília Meireles (1901-1964); e o educador e sociólogo Fernando de Azevedo (1892-1974), seu redator e primeiro signatário.
Azevedo também seria o responsável pela elaboração do Decreto nº 5.884, o Código de Educação, lançado em abril de 1933 para organizar o ensino no estado de São Paulo sob as diretrizes teóricas do manifesto. Para a pedagoga Rosa Fátima de Souza Chaloba, professora de história da educação na Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Araraquara, o Código influenciou significativamente a educação no estado. Segundo ela, considerar a criança no centro do processo educativo e “aprender fazendo”, por meio da observação, pesquisa e experiência, é um conceito pedagógico que ecoa até os dias de hoje. “Mas o maior impacto desse documento foi a defesa da escola pública e da universalização do ensino.”
O direito à educação
O Manifesto dos pioneiros da educação nova reconhecia o ensino como “função essencialmente pública” e defendia “o direito de cada indivíduo à sua educação integral”. Ao assumir a diretoria da Instrução Pública de São Paulo, Fernando de Azevedo trabalhou para que esse direito se concretizasse no estado. Ele sabia que poderia não ter muito tempo para formalizar as reformas que almejava, pois São Paulo vivia um período de grande instabilidade política desde a Revolução de 1930. “De outubro de 1930 a dezembro de 1932, oito interventores ocuparam o governo, e passaram pela Diretoria da Instrução Pública três diretores”, enumera Chaloba. Azevedo ficou apenas seis meses no cargo (de janeiro a julho de 1933), mas conseguiu sistematizar, em um decreto com 992 artigos, uma nova organização para o ensino paulista. Sob sua supervisão, duas comissões trabalharam no texto do Código de Educação, que foi concluído e aprovado em menos de três meses.
“Onde quer que haja, em área de 2 quilômetros de raio, 200 crianças necessitadas de escola, será criado um grupo escolar”, determinava o artigo 267 do Código de Educação. Era urgente ampliar número de vagas escolares. De acordo com o Recenseamento Escolar de 1920, o número de analfabetos chegava a 74,2% das crianças no estado. “Esse cenário demorou a mudar. Até por volta dos anos 1950, quase a metade das crianças paulistas estava fora da escola”, diz Chaloba. De acordo com a pesquisadora, a falta de vagas para atender a demanda desafiou o princípio da obrigatoriedade escolar durante boa parte do século XX.
Para fazer frente a esse desafio, Azevedo estabeleceu no Código de Educação uma nova política de construção de escolas, criando o Serviço de Prédios e Instalações Escolares. “A maioria das escolas funcionava então em imóveis alugados, o estado gastava muito dinheiro com aluguel”, conta a pedagoga Ariadne Lopes Ecar, pesquisadora da cátedra de Educação Básica Alfredo Bosi do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP). Segundo a pesquisadora, muitos desses prédios, inadequadamente adaptados para abrigar escolas, não tinham condições de oferecer as atividades e a estrutura pedagógica que o Código de Educação prescrevia, de acordo com os parâmetros da “escola ativa”: biblioteca e museu escolar em cada unidade de ensino “desde o pré-primário até o de grau superior”, serviço de rádio e cinema educativo, aulas de música e canto coral, atendimento médico e dentário.
O Decreto nº 5.884 determinava também a instalação de escolas maternais em estabelecimentos fabris para filhos de operários. Segundo Chaloba, o Anuário do ensino do estado de São Paulo 1936-1937, organizado pelo diretor de Ensino Antonio Ferreira de Almeida Júnior (1892-1971), citou apenas quatro escolas maternais em fábricas, auxiliadas pelo estado.
Um dos destaques do Código é a organização do Instituto de Educação, criado apenas dois meses antes (em fevereiro de 1933), pelo Decreto nº 5.846, que transformava a Escola Normal Caetano de Campos em instituição para formação de professores em nível universitário. De acordo com o artigo 629, o Instituto de Educação Caetano de Campos tinha por fim formar professores primários e secundários, além de diretores e inspetores de escolas, e manter cursos de aperfeiçoamento para os membros do magistério. Foi a primeira instituição a promover a formação de professores em nível universitário em São Paulo.
Além da Escola de Professores, o Caetano de Campos compunha-se de uma biblioteca e das escolas de aplicação: jardim da infância, escola primária e escola secundária. Em 1934, a Escola de Professores passou a integrar a recém-criada USP. Concretizava-se, assim, o plano exposto no Manifesto dos pioneiros, que afirmava estar a universidade “no ápice de todas as instituições educativas” e “destinada, nas sociedades modernas, a desenvolver um papel cada vez mais importante na formação das elites de pensadores, sábios, cientistas, técnicos e educadores”. Para os escolanovistas, o professorado de todos os graus deveria fazer parte dessa elite intelectual, preparando-se “em cursos universitários, em faculdades ou escolas normais elevadas ao nível superior e incorporadas às universidades”.
Do ideal à realidade
Segundo Chaloba, o modelo de ensino da capital paulista multiplicou-se por todo o estado, que chegou a ter 126 institutos de educação, formando professores sob as orientações da Escola Nova. Os ideais escolanovistas, no entanto, esbarraram na realidade. “A pedagogia nova encantou a maioria dos professores, mas a estrutura do ensino permaneceu tradicional, até mesmo na organização física das escolas, com carteiras voltadas para a mesa do professor, como centro do processo. E poucas unidades escolares conseguiram instalar a infraestrutura que a Escola Nova requeria”, afirma o filósofo Dermeval Saviani, docente aposentado e colaborador da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Ele avalia que, a despeito dos esforços de Fernando de Azevedo, os ideais da Escola Nova se efetivaram, basicamente, em escolas experimentais ou em instituições de ensino voltadas à elite.
Para Ecar, do IEA-USP, dos 15 serviços técnicos estabelecidos pelo Código de Educação (além do Serviço de Prédios, havia aqueles destinados à instalação das bibliotecas e museus, rádio e cinema, extensão cultural para adultos etc.), o que mais se consolidou foi o Serviço de Obras Sociais Escolares. Competia ao diretor desse serviço, por exemplo, o apoio à Associação de Pais e Mestres e à organização de caixas e cooperativas escolares para apoiar os alunos mais carentes. “A intervenção social era uma forma de garantir a frequência e evitar a evasão”, diz a pesquisadora. O Serviço de Higiene e Educação Sanitária Escolar também logrou algum êxito na área de assistência médica e dentária: “Nem todas as escolas tinham consultórios, mas havia itinerância de médicos e dentistas na rede”, informa Ecar.
“O Código tem um simbolismo histórico pela renovação que propunha, mas a concretização dele foi difícil. Para a implantação dos serviços previstos teria sido necessário contratar muito mais gente, o que não foi possível em todas as escolas. Ainda assim, houve esforços individuais, por diretores e professores entusiasmados com os ideais escolanovistas”, considera Chaloba.
Os princípios da Escola Nova permaneceram como orientação oficial do ensino paulista até 1971, quando o governo militar instituiu uma reforma na estrutura e no currículo da educação básica. “Foi uma reforma muito drástica, implantada em um contexto autoritário. Ela estabeleceu uma grande expansão do número de vagas, mas com precarização do trabalho docente”, afirma Chaloba. Para Saviani, essa reforma também se baseou em uma significativa mudança de ordem conceitual: “A reforma da década de 1970 mudou o eixo da educação”. Ele explica que, se a Escola Nova buscava deslocar o centro do ensino do professor para o aluno, agora ambos teriam que se subordinar a métodos e técnicas que visavam à eficiência e à produtividade. Foi o que se chamou de “pedagogia tecnicista”. “A pedagogia tecnicista é a transposição da organização fabril para o ensino”, resume.
A reforma de 1971 criou cursos profissionalizantes no segundo grau (atual ensino médio), mas depois o governo revogou a medida, que exigia investimentos em infraestrutura. Meio século depois, o currículo da educação secundária voltaria à discussão no bojo da Reforma do Ensino Médio (Lei nº 13.415/2017), que instituiu disciplinas voltadas ao mercado de trabalho, em detrimento da formação básica.
Carmen Sylvia Vidigal Moraes, professora da Faculdade de Educação e coordenadora do Centro de Memória da Educação da USP, lembra que a reforma, afastando-se do ideal proclamado pelo Manifesto dos pioneiros, estabeleceria a cisão entre a educação geral propedêutica (introdutória, preparando o aluno para prosseguir nos estudos de nível superior) e a profissional, voltada à preparação para o mercado de trabalho.
O Código de Educação apenas aponta a possibilidade de bifurcação da escola secundária para “preparação às profissões de preferência de base intelectual ou manual e mecânica”. “A dualidade no ensino não apenas persistirá no estado de São Paulo como será depois adotada no plano federal por meio das Leis Orgânicas do Ensino de 1942, cujo modelo é o da organização do ensino médio definida no Código de Educação do Estado de São Paulo”, comenta Moraes.
Para Chaloba, o Brasil conseguiu avançar na expansão do acesso à escola, mas ainda tem o desafio do acesso ao conhecimento. A escola pública de qualidade, universal e gratuita, que inspirou o Código de 1933, e a estruturação de um ensino médio de formação de ampla e consistente continuam sendo ideais a serem perseguidos.
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