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Botânica

Uma outra forma de se alimentar

Bromélias absorvem nitrogênio da urina de anfíbios arbóreos

Lia Chaer / uspÁgua do tanque nutre plante e abriga animaisLia Chaer / usp

As bromélias Vriesea gigantea vivem no alto de árvores e acumulam água entre suas folhas – por isso são chamadas de epífitas com tanque. Até onde se tem notícia, as plantas desse tipo são as únicas que de preferência extraem nitrogênio diretamente da ureia, abundante na urina das pererecas que usam a água empoçada para se abrigar e depositar seus ovos. O grupo coordenado pela botânica Helenice Mercier, da Universidade de São Paulo (USP), recentemente descobriu que essas bromélias têm duas estratégias para captar a ureia e desvendou mecanismos fisiológicos únicos.

Em busca de esmiuçar a descoberta de Helenice de que as bromélias de tanque utilizam ureia, Cassia Takahashi picou muitas folhas de vríseas em busca de detalhar como elas absorvem nitrogênio, elemento químico essencial para construir as proteínas, fundamentais para crescer e se reproduzir. Observou em detalhes, ao microscópio, que a base de cada folha tem uma maior densidade de pequenos pelos que funcionam como raízes em miniatura, os tricomas. Já a ponta das folhas, com 70% do número de tricomas encontrados na base, tem o dobro de estômatos, as estruturas que se abrem e fecham para permitir a respiração e a fotossíntese, segundo relata o artigo publicado em 2007 no Brazilian Journal of Plant Physiology.

A morfologia externa indica que a base das folhas funciona como raiz, absorvendo água e nutrientes, e as pontas como folhas propriamente ditas, onde acontece a maior parte da fotossíntese. Mas Cassia estava interessada na fisiologia, no que acontece dentro da planta que lhe permite absorver esse nitrogênio orgânico. Era preciso localizar e quantificar as enzimas responsáveis pelo processamento da ureia e seus subprodutos. Quando essa substância encontrada na urina dos animais entra na planta, a enzima urease a quebra em amônio e gás carbônico (CO2). Em seguida entram em ação outras enzimas, sobretudo a glutamina sintetase (GS), que tem grande afinidade por amônio e o integra no aminoácido glutamina. No início a jovem botânica se concentrou na base das folhas, que fica submersa na água onde estão os nutrientes, e jogava fora todo o resto. Parecia um desperdício. “Resolvi ver se a folha era toda igual para saber se seria possível usá-la por inteiro, e descobri que estava procurando no lugar errado”, conta. A maior parte da glutamina sintetase estava nas pontas das folhas, mostrando que o nitrogênio é na verdade assimilado ali.

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A surpresa deu novo ímpeto à pesquisa. “Foi a primeira vez que se mostrou uma divisão funcional, fisiológica, numa folha”, conta Helenice. Uma organização que faz sentido: o nitrogênio é assimilado onde acontece a fotossíntese e há energia de sobra para alimentar esse processo e se fazem proteínas. O resultado sugere também que o amônio é transportado da base para a ponta das folhas, outra surpresa. “O amônio é uma substância muito tóxica que as plantas costumam assimilar  em moléculas orgânicas assim que o absorvem”, explica Helenice. Em grande concentração, o amônio pode parar a cadeia respiratória das plantas, um problema sério nas folhas, responsáveis justamente pela fotossíntese e respiração. Ela ainda não sabe como a Vriesea gigantea evita esses problemas.

Ambiente controlado
Um problema que as pesquisadoras encontraram é que as bactérias, habitantes naturais dos tanques das bromélias, também precisam de nitrogênio e o transformam em diferentes compostos, por isso é preciso cultivar as plantas em frascos esterilizados. O grupo descobriu também que é preciso conhecer a idade das plantas. Aos 2 anos de idade, as bromélias dessa espécie têm cerca de dois centímetros de altura e só então suas folhas se alargam e formam o tanque. Nesse momento a distribuição dos tricomas e a fisiologia se modificam, de maneira que misturar plantas de idades diferentes num mesmo experimento conduz a erros. Além disso, para se ter controle sobre o aporte de nitrogênio na casa de vegetação, é preciso também não permitir que pererecas se instalem. O mesmo vale para aranhas, cujas fezes também são fonte de nitrogênio para as bromélias. Em 2006 o ecólogo Gustavo Romero, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em São José do Rio Preto, mostrou que 18% do nitrogênio consumido pela espécie Bromelia balansae vem da aranha Psecas chapoda. Por isso a equipe da USP tenta manter suas plantas impecáveis. Cassia chegou a lavar folha por folha das centenas de bromélias que mantém na casa de vegetação com uma escova de dentes, para combater uma praga. E no laboratório elas são cultivadas em ambiente estéril que exclui bactérias.

Na natureza a água acumulada na bromélia é um cenário de competição entre planta e bactérias. Em artigo publicado em 2007 na New Phytologist, o austríaco Erich Inselsbacher, que fez parte de seu mestrado no laboratório da USP, mostrou que as vríseas têm duas maneiras de tirar vantagem da urina dos anfíbios. Na presença de ureia, a planta libera urease para o tanque e em seguida absorve o amônio produzido pela reação, que é então processado por enzimas internas. “Quem tiver a enzima mais ávida por amônio ganha”, diz Helenice. A glutamina sintetase da vrísea é ávida, mas o visitante da Áustria mostrou que a bromélia também absorve ureia inteira de maneira muito mais eficiente do que se observa com outras substâncias nitrogenadas.

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As plantas costumam ter um ponto de saturação na capacidade de absorver substâncias, mas não é o que acontece com a ureia. Quanto mais os pesquisadores põem no tanque, mais a V. gigantea absorve. A observação levou a equipe da USP a inferir que existe um poro proteico especializado em absorver o composto nitrogenado da urina. Durante o doutorado, Camila Cambuí procurou um candidato entre os genes das aquaporinas, proteínas que formam poros para entrada de água e outras substâncias. Em colaboração com a botânica Marília Gaspar, do Instituto de Botânica de São Paulo, ela encontrou a porta de entrada da ureia nas vríseas, uma aquaporina nova que agora busca produzir em laboratório para fazer experimentos e detalhar seu funcionamento. Por enquanto, parte do mistério está elucidado: “A ureia parece entrar inteira na folha e ser diretamente assimilada, além de poder ser quebrada em amônio”, explica Helenice.

Para ela, essa aquaporina da vrísea deve ter surgido nessas bromélias que coevoluíram com os anfíbios que ali depositam ovos e urina. As plantas desenvolveram também estratégias para usar ao máximo essa fonte de nutrição: quando o tanque da bromélia recebe uma dose de ureia, nas primeiras 24 horas a planta dá preferência a essa substância, mesmo que outras fontes de nitrogênio como amônio ou nitrato estejam presentes. Essa preferência é importante porque a ureia é um recurso inconstante, as pererecas procuram os tanques das bromélias quando chove mais e bastante água se acumula. Nessa época a planta precisa absorver o máximo possível, competindo com as bactérias. Em períodos mais secos, as fontes de nitrogênio passam a ser restos vegetais e insetos em decomposição.

Em artigo a ser publicado em breve na revista Physiologia Plantarum, Camila detalhou um pouco mais como a ureia é processada quando entra na planta: 40% da atividade da urease em V. gigantea acontece fora das células, nas paredes e membranas celulares, ao contrário de espécies sem tanque, onde a urease se concentra dentro delas. Além de mais rica em nitrogênio, a ureia processada também dá origem a gás carbônico. Camila mostrou que esse carbono imediatamente se agrega aos cloroplastos, onde acontece a fotossíntese, e é logo usado para construir celulose, que faz a planta crescer. Por isso, bromélias de tanque fertilizadas com ureia crescem mais depressa – observação que já tinha sido feita por produtores comerciais dessas plantas. Saber, por exemplo, que basta pôr ureia no tanque das bromélias, e não no resto das folhas ou nas raízes, ajuda a reduzir exageros no uso de nitrogênio no cultivo comercial. Em parceria com Helenice, Gustavo Romero agora busca comprovar que a ureia absorvida pelas bromélias na natureza vem de fato da urina das pererecas.

Artigos científicos
CAMBUÍ, C.A. et al. Detection of urease in the cell wall and membranes from leaf tissues of bromeliad species. Physiologia Plantarum. No prelo.
INSELSBACHER, E. et al. Microbial activities and foliar uptake of nitrogen in the epiphytic bromeliad Vriesea gigantea. New Phytologist. v. 175, n. 2, p. 311-320. jul. 2007.
TAKAHASHI, C.A. et al. Differential capacity of nitrogen assimilation between apical and basal leaf portions of a tank epiphytic bromeliad. Brazilian Journal of Plant Physiology. v. 19, n. 2, p. 119-126. abr.-jun. 2007.

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