A dependência do uso de cocaína e seus derivados, como o crack, é um problema de saúde pública de dimensões globais para o qual a medicina ainda busca um tratamento efetivo. Um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) aposta na imunologia para encontrar essa solução. A equipe está desenvolvendo uma vacina contra a droga e busca financiamento para viabilizar a realização dos primeiros testes em seres humanos. Os ensaios iniciais em animais revelaram que o potencial imunizante conseguiu estimular a produção de anticorpos contra a molécula da cocaína, mas ainda não há evidências científicas de que realmente reduza a dependência da droga. Essa hipótese será verificada em novos testes com animais, que deverão ocorrer antes da fase de ensaios clínicos, com voluntários humanos, ainda sem previsão de data para a realização.
“Nos ensaios com roedores e primatas não humanos ‒ saguis da espécie Callithrix penicillata —, nossa vacina, denominada Calixcoca, não provocou efeitos colaterais significativos, apenas uma reação leve no local da injeção, sem comprometer a saúde geral dos animais”, afirma o médico psiquiatra Frederico Duarte Garcia, professor do Departamento de Saúde Mental da Faculdade de Medicina da UFMG e líder do estudo.
O nome Calixcoca, diz o pesquisador, é inspirado na estrutura química que compõe o imunizante, do tipo calixareno, que tem formato semelhante a um cálice e serve como carreador do antígeno, um hapteno análogo de cocaína ‒ carreadores são substâncias de peso molecular maior, capaz de provocar uma resposta imunológica.
O farmacêutico Paulo Sérgio de Almeida Augusto, que integra o grupo da UFMG, explica que haptenos são moléculas que, por conta do tamanho reduzido, não são reconhecidas como invasoras pelo sistema imunológico, necessitando ser combinadas a uma macromolécula carreadora para induzir uma resposta imune do organismo. É o que acontece com a cocaína. “A cocaína é uma molécula estranha ao organismo humano, mas geralmente não possui o peso molecular e a complexidade química necessários para induzir uma resposta imunológica considerável”, diz Augusto. “A resposta até pode ser induzida quando a pessoa utiliza altas doses da droga e com elevada frequência, mas isso não ocorre com todo indivíduo.”
Para criar o novo imunizante, os pesquisadores desenvolveram um hapteno a partir de uma molécula de cocaína, modificada para se ligar ao carreador. Conjugado ao calixareno, ele ganha maior peso molecular e é, então, capaz de provocar uma resposta imunológica. A ideia é que se a pessoa vacinada voltar a consumir cocaína ou crack, os anticorpos liguem-se às moléculas da droga na corrente sanguínea, impedindo, ou ao menos reduzindo, sua passagem pela barreira hematoencefálica. Essa estrutura reveste os vasos sanguíneos que irrigam o sistema nervoso central e funciona como uma espécie de filtro, controlando o transporte de substâncias que chegam ao cérebro.
Estudo conduzido pelo grupo mineiro com a molécula sintetizada pela UFMG demonstrou por meio de um ensaio de radioatividade que a vacina reduz a passagem da droga pela barreira hematoencefálica em animais. “Os animais imunizados foram tratados com um radiofármaco de estrutura e mecanismo de ação semelhante ao da cocaína. Por meio de cintilografia, detectamos menor concentração desse composto no cérebro dos imunizados e maior concentração no sangue em relação aos animais que receberam apenas placebo”, informa Augusto. Os resultados do trabalho foram publicados recentemente no Journal of Advanced Research.
A hipótese dos pesquisadores mineiros é de que, uma vez que a vacina impedirá que as moléculas da cocaína atravessem a barreira hematoencefálica e cheguem ao cérebro, a pessoa não sentirá os mesmos efeitos prazerosos que, antes, acionavam o circuito de recompensa cerebral, provocando a compulsão. Essa teoria, contudo, ainda precisa ser comprovada na fase de exames clínicos. “Sem a compulsão, o paciente ganha tempo para retomar a vida familiar, profissional e os outros prazeres e interesses que foram substituídos pela droga”, explica Garcia.
Histórico desafiador
A nova abordagem terapêutica é vista com contida esperança por especialistas em dependência química. “A medicina ainda não dispõe de um fármaco aprovado para o enfrentamento dessa doença. O tratamento atual se limita ao manejo dos sinais e sintomas da síndrome de abstinência e dos transtornos associados, juntamente com terapias comportamentais”, explica o farmacêutico bioquímico Fábio Cardoso Cruz, professor do Departamento de Farmacologia da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que não participou dos estudos.
Cruz estuda o mecanismo neurobiológico da recaída ao uso de cocaína e crack, em projeto apoiado pela FAPESP. Ele busca entender por que cerca de 70% a 80% dos indivíduos recaem durante o tratamento. “Esses dados ressaltam a urgência do desenvolvimento de novas estratégias terapêuticas. Nesse contexto, as vacinas têm sido apontadas como uma nova e promissora abordagem farmacológica”, comenta o pesquisador.
A Calixcoca, contudo, não é a primeira formulação terapêutica baseada na imunologia para combater a dependência química. “O potencial terapêutico das vacinas contra drogas foi demonstrado pela primeira vez em meados dos anos 1970, quando um conjugado de morfina-albumina sérica bovina foi capaz de reduzir levemente a autoadministração de heroína em um macaco rhesus. Na década de 1990 surgiram os primeiros relatos sobre tentativas de desenvolvimento de vacinas contra cocaína e nicotina”, afirma Cruz. O experimento com o macaco rhesus foi relatado na revista Molecular Psychiatry, em 1974.
Até o momento, nenhuma candidata a vacina para tratamento de dependentes de cocaína obteve bons resultados nos testes clínicos em humanos
A despeito de resultados promissores em estudos pré-clínicos e alguns ensaios clínicos iniciais, até agora não existe nenhuma vacina antidroga registrada no mundo. “Ainda há desafios a serem superados. Nem todos os indivíduos respondem da mesma maneira às vacinas e alguns não produzem níveis suficientes de anticorpos para alcançar a eficácia clínica desejada”, explica o pesquisador da Unifesp.
“Em geral as vacinas são eficientes em modelo animal. Mas quando vão para a fase de ensaios clínicos não apresentam bons resultados”, confirma a imunologista Denise Morais da Fonseca, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP). Em março, ela fez parte de um curso promovido pelo ICB sobre tratamento farmacológico da dependência. Para preparar as aulas, resolveu pesquisar revisões de literatura a respeito de vacinas, e o resultado foi frustrante. “Uma revisão de 2022 levantou 23 ensaios clínicos já concluídos sobre vacinas antidrogas, dos quais seis voltados ao tratamento da cocaína ‒ a maioria era contra nicotina”, conta. “Todos falharam.”
Algumas vacinas, ressalta a imunologista, não produziram anticorpos em número suficiente ou a resposta imune caiu muito rapidamente. As razões para esses resultados ainda não estão claras, mas podem se relacionar à variabilidade genética dos indivíduos testados, algo que não existe quando se usa modelo animal. “Em geral as pesquisas usam camundongos isogênicos, ou seja, geneticamente uniformes”, informa Fonseca.
Outra possível explicação pode estar no próprio comportamento do voluntário submetido à vacina. “Em alguns testes que falharam, o dependente usou doses maiores da droga até conseguir obter o efeito desejado”, diz a pesquisadora.
Os pesquisadores da UFMG reconhecem que, teoricamente, existe o risco do consumo de maior dosagem na tentativa de reativar o circuito de recompensa cerebral. Segundo Augusto, essa questão será estudada posteriormente, com modelos experimentais que permitirão estimar a quantidade de droga que a vacina é capaz de bloquear. “Na prática, o que pretendemos é criar obstáculos ao mecanismo de compulsão. A partir de certa medida, o aumento do consumo elevaria muito o custo para o usuário, o que poderia trazer uma limitação financeira”, considera Garcia.
O grupo mineiro confia, sobretudo, na maior eficácia da Calixcoca quando comparada a projetos anteriores. Essa confiança está amparada na constituição química da formulação. “A diferença da nossa proposta é que a vacina não tem nenhuma base proteica. O calixareno é uma substância orgânica sintética”, resume o professor do Departamento de Química da UFMG Ângelo de Fátima, que desenvolveu a plataforma imunogênica da vacina.
Os projetos anteriores de vacinas antidrogas utilizavam como carreadores proteínas que já haviam sido empregadas em outras formulações de vacinas utilizadas pela população, o que gerava certo nível de sensibilização. “O organismo reagia contra as proteínas também, e não apenas contra a droga. Nossa vacina induz uma resposta melhor porque é uma molécula completamente nova para o organismo”, afirma Garcia.
Outra vantagem da nova formulação, segundo seus desenvolvedores, estaria no processo produtivo. “O calixareno é uma substância mais estável e não exige cadeia fria para produção e armazenamento. O processo seria mais barato”, diz o químico da UFMG. Cadeia fria é a logística de manuseio, armazenamento, distribuição e transporte em temperatura controlada de medicamentos termolábeis (sensíveis à ação da temperatura).
Proteção ao feto
Mesmo que a Calixcoca demonstre, nos estudos clínicos futuros, ser eficaz no papel de criar anticorpos contra a cocaína, precisará ser acompanhada de outros suportes terapêuticos. É o que adverte Cruz, com base em suas pesquisas sobre os mecanismos biológicos da dependência. Ele explica que existe uma memória associativa relacionada à droga, que pode ser disparada por diferentes gatilhos, como situações de estresse ou exposição do indivíduo a ambientes e contextos associados ao consumo.
Quando uma pessoa faz uso crônico de determinada substância, explica o pesquisador, seu encéfalo associa o efeito da droga com o local onde o indivíduo costuma consumi-la, os objetos que utiliza, as pessoas em volta e, até mesmo, roupas que normalmente usa na ocasião. A simples exposição a esses elementos pode despertar o desejo incontrolável pela substância. “As vacinas podem ser utilizadas como parte de uma abordagem integrada de tratamento, combinando terapia comportamental, suporte psicossocial e outras intervenções, a fim de auxiliar as pessoas a superar a dependência”, considera Cruz.
“É fundamental pensar o emprego de uma vacina antidrogas junto com políticas públicas”, acrescenta Fonseca, do ICB-USP. Ela avalia que existem diversas questões éticas envolvidas no emprego do recurso. “Vamos utilizá-las como vacinas terapêuticas ou profiláticas? Seriam escolhidos grupos de risco para serem vacinados?”, questiona. Uma possibilidade de uso do novo fármaco, considera a imunologista, seria a proteção materno-fetal contra os males causados pela exposição pré-natal à droga. Essa é outra vertente do trabalho da UFMG, tema da tese de doutorado em medicina molecular do farmacêutico Paulo Augusto, defendida em 2020.
O pesquisador lembra que a exposição à cocaína durante a gestação traz riscos não apenas às mães, que podem sofrer aborto espontâneo e complicações no parto, mas também aos fetos e bebês, com repercussões para a vida da criança. Prematuridade, baixo peso, danos ao desenvolvimento neurobiológico, malformações e maior risco de surgimento de transtornos psiquiátricos na adolescência são alguns dos efeitos deletérios relacionados ao consumo de cocaína durante a gestação. “A melhor abordagem para prevenir a exposição pré-natal à cocaína é interromper o consumo. No entanto, apenas 25% das usuárias conseguem parar durante a gravidez”, informa Augusto.