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Obituário

Uma referência em estudos sobre Galileu

Pablo Mariconda, da USP, ajudou a consolidar a filosofia da ciência como campo crítico e interdisciplinar no Brasil

Leticia Freire Mariconda / Família Mariconda / Acervo pessoalMariconda com o manuscrito de seu último livro, que deve ser lançado em 2025Leticia Freire Mariconda / Família Mariconda / Acervo pessoal

Conhecido por suas traduções e análises de obras do cientista italiano Galileu Galilei (1564-1642), o filósofo Pablo Rubén Mariconda morreu no dia 15 de maio aos 75 anos, em São Paulo. Professor aposentado da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), ele ajudou a consolidar a filosofia da ciência como campo de estudos no Brasil e formou dezenas de pesquisadores que, hoje, ocupam cargos em universidades de todo o país.

Nascido na Argentina, Mariconda mudou-se para o Brasil com a família aos 5 anos. Estudou em escola pública e, após concluir a educação básica, ingressou no final dos anos 1960 na graduação em engenharia aeronáutica no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), em São José dos Campos, no interior de São Paulo.

Abandonou o curso para tornar-se aluno de graduação em filosofia na FFLCH, formação que concluiu em 1971. Fez mestrado (1979) e doutorado (1986) em filosofia na instituição sob orientação de Oswaldo Porchat (1933-2017) e João Paulo Monteiro (1938-2016), respectivamente. Durante mais de quatro décadas, lecionou em cursos de graduação e pós-graduação da FFLCH.

A filósofa Luciana Zaterka, da Universidade Federal do ABC (UFABC), recorda que, inicialmente, Mariconda se dedicou ao estudo de autores clássicos da filosofia da ciência, como o austríaco Karl Popper (1902-1994) e o francês Pierre Duhem (1861-1916). Posteriormente, aprofundou-se em pesquisas sobre a chamada revolução científica moderna, período entre os séculos XVI e XVIII marcado por transformações na forma como as pessoas compreendiam o mundo.

“Além de estudos sobre filosofia moderna, ele adquiriu um vasto conhecimento de filosofia antiga, estudando autores como Aristóteles [384-322 a.C.] e Galeno [129-216 d.C.], assim como temas do Renascimento”, comenta Zaterka. O Renascimento foi um período de profunda mudança cultural e intelectual ocorrido na Europa, que se estendeu de meados do século XIV até o fim do século XVI. De acordo com a pesquisadora, os estudos de Mariconda sobre o Renascimento serão publicados em um livro póstumo, previsto para sair ainda em 2025.

O pesquisador orientou dezenas de alunos, tanto em estudos envolvendo a teoria do conhecimento e da ciência moderna quanto na investigação das relações entre ciência e valores sociais, políticos e ambientais. “A partir da década de 1980, ele passou a coordenar um grupo de estudos composto por orientandos e colaboradores que, desde então, nunca deixou de se reunir. Muitos de seus ex-alunos, hoje, ocupam posições de docência e de pesquisa em universidades de todo o Brasil”, destaca Zaterka.

Mariconda organizou e publicou mais de 20 obras, além de ter escrito numerosos artigos acadêmicos e capítulos de livros em títulos do Brasil e do exterior. Um dos destaques de sua produção é a tradução bilíngue comentada do Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo, de Galilei, que saiu em 2011 pela Editora 34. “A obra, que deriva de sua tese de livre-docência, tornou-se um marco para os estudos sobre o autor italiano em língua portuguesa”, afirma Zaterka.

Em 2018, Mariconda traduziu, com colaboradores, a primeira edição completa em português do Discurso do método & ensaios, do filósofo e matemático francês René Descartes (1596-1650). O livro, publicado pela Editora Unesp, foi reconhecido no ano seguinte com um prêmio da Associação Brasileira de Editoras Universitárias (Abeu). Para o filósofo Silvio Seno Chibeni, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), esse trabalho preencheu uma lacuna na literatura de história e filosofia da ciência disponível em língua portuguesa.

Na avaliação de Zaterka, Mariconda desempenhou papel decisivo na consolidação da filosofia da ciência como campo de pesquisa no Brasil, especialmente por meio da criação, em 2003, da Associação Filosófica Scientiae Studia. Para abrigar a associação, o filósofo reformou, com recursos próprios, uma casa no bairro do Butantã, em São Paulo, criando um centro de estudos que hoje reúne mais de 5 mil livros, além de promover palestras, aulas e seminários. “A instituição constitui um espaço importante para a discussão de problemas da ciência no mundo contemporâneo”, enfatiza Zaterka.

Antes da fundação da Scientiae Studia, Mariconda criou uma revista de mesmo nome, inicialmente elaborada no âmbito das atividades do Departamento de Filosofia da USP. Quando a associação foi instituída, assumiu a edição da publicação. Entre 2003 e 2017, foram editados mais de 60 números da revista.

Além disso, a associação lançou mais de 25 livros, incluindo obras das coleções Domínio Público, dedicadas à publicação de traduções de textos filosóficos e científicos clássicos, e Estudos sobre a Ciência e a Tecnologia. Esta última tem como finalidade difundir escritos que promovam reflexões sobre práticas científicas, entre eles os livros Filosofia da ciência engajada, do filósofo da ciência Kevin Elliott, da Universidade do Estado de Michigan, nos Estados Unidos, e Dicotomia fato/valor, do filósofo e matemático norte-americano Hilary Putnam (1926-2016).

Um diferencial da abordagem de Mariconda, segundo Chibeni, foi integrar não apenas a filosofia da ciência à história da ciência, mas também à história da filosofia. “Ele defendia que não existe uma distinção estanque entre ciência e filosofia, entendendo-se por esta última mais a postura de permanente crítica de ideias e argumentos do que a defesa de sistemas teóricos fechados”, comenta.

De acordo com Chibeni, nos últimos anos, o filósofo vinha se dedicando a um novo campo de estudos, envolvendo as implicações éticas, sociais e ambientais da ciência contemporânea. Ele participou da elaboração do Modelo de Interação entre Ciência e Valores, desenvolvido em parceria com Hugh Lacey, filósofo da ciência do Swarthmore College, universidade privada focada na oferta de cursos nas áreas de humanidades, ciências sociais, ciências naturais, artes e música, que fica na Pensilvânia, nos Estados Unidos. “O modelo, que foi publicado em 2014 em um artigo na revista Scientiae Studia, propõe uma compreensão da ciência a partir de perspectivas de valor que orientam a produção e a aplicação do conhecimento”, explica Lacey, em entrevista a Pesquisa FAPESP.

O filósofo Valter Alnis Bezerra, da USP, que conviveu com Mariconda por mais de quatro décadas, acrescenta que se trata de uma ferramenta filosófica, historiográfica e crítica por meio da qual se pode obter resultados em duas frentes. “Por um lado, é possível equacionar questões teóricas referentes à racionalidade científica, à estrutura de teorias, à imparcialidade e não neutralidade da ciência, assim como à objetividade, e à inserção da ciência na sociedade e na cultura”, diz. Por outro lado, explica Bezerra, é possível interpretar desde episódios históricos até debates contemporâneos, como o uso de transgênicos ou a emergência da inteligência artificial.

O modelo tem sido aplicado por pesquisadores como a filósofa Ligia Lopes Gomes, que em sua tese de doutorado defendida em 2021 na USP usou a ferramenta para investigar a revolução química ocorrida no século XVIII. O período foi caracterizado por mudanças na compreensão da matéria e das reações químicas. Outro exemplo é o da economista Brena Paula Magno Fernandez, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que utilizou o modelo em pesquisas para analisar a teoria econômica neoclássica, a economia feminista e a ecológica.

“Mariconda foi uma pessoa sempre bem-informada sobre o mundo contemporâneo e motivado por justiça social. Erudito, tornou-se um especialista conhecido internacionalmente em estudos de Galileu”, avalia Lacey. Entre 2002 e 2015, Mariconda coordenou três projetos temáticos financiados pela FAPESP.

Bezerra destaca que, mesmo aposentado, o pesquisador permaneceu participando de bancas, seminários e orientações. “Ele tinha uma voz de barítono tonitruante, uma presença marcante e posições claras em debates acadêmicos”, conta o pesquisador. “No plano pessoal, era generoso e agregador. Costumava receber os orientandos em casa, além de promover almoços e reuniões, quando cozinhava para os convidados.”

O filósofo morreu em decorrência de um traumatismo craniano, provocado por um acidente doméstico. Deixa três filhos, Letícia, Pedro e Antonio.

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