Espelhando o que ocorre em outras partes do mundo, universidades e centros de pesquisa do país se mobilizam para ajudar no combate ao vírus Sars-CoV-2, causador da Covid-19, em diversas frentes, inclusive na produção dos chamados equipamentos de proteção individual (EPIs). Esses dispositivos são essenciais para a segurança de médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, fisioterapeutas, dentistas e demais profissionais da saúde que atuam na linha de frente em hospitais e unidades de saúde.
Até o dia 12 de abril, a Associação Médica Brasileira (AMB) havia recebido mais de 3 mil denúncias provenientes de todas as regiões brasileiras sobre a falta de EPIs. Havia escassez principalmente de equipamentos de proteção para o rosto, conhecidos como face shields, óculos, capotes impermeáveis e máscaras do tipo N95, mais seguras do que as máscaras cirúrgicas e cujo uso é indicado para o tratamento de pacientes de Covid-19, principalmente para coleta de amostras para realização do teste para detecção do vírus e em processos de intubação de pacientes. Milhares de profissionais da saúde já foram afastados do trabalho por suspeita ou confirmação de estarem com a Covid-19.
Boa parte dos EPIs usados no país e no mundo é proveniente da China ou de empresas norte-americanas, como a 3M, mas o aumento da procura mundial tem dificultado a compra. Enquanto governos e indústria começam a se organizar para responder à demanda, pesquisadores da academia propõem alternativas emergenciais. De acordo com o site do Ministério da Educação, pelo menos 80 instituições de ensino superior do país dedicavam-se à produção de EPIs na última semana de abril.
“Não somos uma fábrica de máscaras. A nossa ideia é entregar uma solução rápida, enquanto as grandes empresas não fornecem os produtos”, afirma o engenheiro civil Vanderley John, da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), que lidera com colegas uma força tarefa para a produção de máscaras cirúrgicas. Ao lado de estudantes, professores e pesquisadores de áreas tão díspares quanto arquitetura, administração de empresas, física e medicina, John é um dos responsáveis pelo projeto (respire!, coordenado pelo Centro de Inovação da USP (InovaUSP), que planeja viabilizar a produção, até o início do segundo semestre, de ao menos 1 milhão de máscaras cirúrgicas para abastecer os 8 mil médicos que atuam nos hospitais da universidade.
O InovaUSP também organizou um mutirão para a confecção de 8 mil escudos faciais transparentes (face shields), iniciativa coordenada pelo engenheiro mecânico Eduardo Zancul, da Poli-USP. Esses protetores são considerados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) como complementos de EPIs.
“Está sendo um grande aprendizado”, conta o professor da Poli, que afirma nunca ter pensado que um dia estaria empenhado em produzir máscaras cirúrgicas. As dificuldades, segundo ele, começaram logo no início, na busca pela matéria-prima para fazer o produto, já que o TNT (tecido não tecido) usado tradicionalmente estava em falta no mercado. Equipamentos do Laboratório de Física Atmosférica do Instituto de Física da USP foram adaptados para testar qual seria a alternativa de TNT ideal para substituir o tradicional.
Uma vez encontrado o TNT adequado e comprovada sua eficiência, o desafio seguinte foi montar a logística para a fabricação das máscaras cirúrgicas. Cerca de 100 costureiras, espalhadas pela zona leste da capital paulista, foram mobilizadas. “Tivemos o apoio da empresa Tecido Social, que fez a ponte com as cooperativas de costureiras”, diz John.
O grupo agora estuda diferentes protótipos para a confecção de máscaras N95, mais complexas. “É um desafio mais complicado, porque, além de precisar de um ótimo tecido, é necessário fazer um modelo que vede bem o rosto”, destaca. A iniciativa da Poli-USP, bem como das diversas universidades pelo país engajadas em produzir voluntariamente EPIs, é viabilizada por meio de doações de materiais ou dinheiro feitas por empresas e pessoas físicas.
Face shields
Produzir rapidamente os equipamentos também é uma preocupação do bacharel em informática, doutor em engenharia elétrica e da computação Rafael Vidal Aroca, diretor da Agência de Inovação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), que coordena uma iniciativa na universidade para confeccionar face shields. Até meados de abril, 300 unidades haviam sido distribuídas para o Hospital Universitário de São Carlos e para municípios vizinhos. Outros 470 protetores foram encaminhados a instituições como Guarda Civil, Bombeiros e Instituto Médico Legal.
O projeto teve origem em uma iniciativa do engenheiro mecatrônico Marcos Tan Endo, da UFSCar, que, percebendo a carência de protetores faciais no mercado, começou a produzi-los na própria casa com uma impressora 3D. “É muito legal ver o engajamento da população em um projeto como esse. No início, era uma, duas pessoas, e agora temos 24 voluntários, entre alunos e professores”, conta Aroca. Em meados de abril, 10 impressoras 3D espalhadas por São Carlos trabalhavam simultaneamente na fabricação dos itens.
Um empresário local doou chapas do polímero PETG – resultante de uma mistura entre o PET tradicional com o composto orgânico glicol –, que foram usadas para fazer o suporte na cabeça, uma das três partes do face shield, composto também pela viseira transparente e um elástico para fixação. “O suporte geralmente é fabricado com o plástico PLA, mas optamos por um material que pudesse ser esterilizado mais facilmente, usando apenas álcool 70%”, explica Aroca. “O equipamento é seguro e foi homologado em hospital, mas não passou pelo mesmo ciclo de desenvolvimento de um EPI clássico. Por isso, preferimos chamá-lo de equipamento complementar de proteção individual.”
O grupo da UFSCar atua em colaboração com a engenheira mecânica Zilda de Castro Silveira, professora do Departamento de Engenharia Mecânica da Escola de Engenharia de São Carlos (EESC) da USP e pesquisadora do Núcleo de Manufatura Avançada da instituição. A rede de cientistas coordenada por ela já desenvolveu e doou 600 protetores face shield para a Santa Casa de Misericórdia de São Carlos. Em conjunto com o engenheiro de produção Daniel Moura, do Departamento de Engenharia de Produção da UFSCar, tem planos de chegar a 3 mil. O material será distribuído entre unidades de saúde de São Carlos e região.
“Esse movimento rápido e intensivo impulsionou a indústria de plásticos a adotar o mesmo modelo de projeto para atender em larga escala a demanda do hospital”, declarou Silveira à Agência FAPESP. De acordo com ela, empresas de cinco estados ligadas à Associação Brasileira de Indústria de Ferramentais (Abinfer) planejam produzir e doar 400 mil máscaras desse tipo para o Ministério da Saúde.
Ainda na USP de São Carlos, pesquisadores do Centro de Óptica e Fotônica do Instituto de Física (IFSC), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP, estudam criar uma central de descontaminação de EPIs e máscaras respiratórias usados pelos profissionais da saúde da região. Eles já desenvolveram uma câmara de ozônio para essa finalidade. As máscaras são colocadas no interior da câmara em um saco de poliéster trançado e passam por sete ciclos de vácuo e injeção de ozônio, conhecido agente microbicida, antes de serem liberadas para a reutilização, segundo reportagem do Jornal da USP. O projeto foi idealizado pelo físico e engenheiro de materiais Vanderlei Salvador Bagnato, diretor do IFSC-USP.
Inspiração no exterior
A Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Campinas foi outra instituição que se engajou no desenvolvimento e produção de face shields. Inicialmente, os pesquisadores da instituição utilizaram um projeto de código aberto do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) para confeccionar os protetores faciais em impressoras 3D da própria universidade e de uma empresa parceira. “Decidimos rever a forma de produção, pesquisamos outras iniciativas que usavam cortadora a laser – e não impressora 3D – e adaptamos o projeto para nossa realidade”, diz o engenheiro mecatrônico César Cordova Quiroz, da Faculdade de Engenharia Mecânica.
Os professores da PUC-Campinas acabaram optando por outro modelo de face shield, cuja produção se mostrou mais rápida, baseada em projetos do Instituto de Tecnologia da Georgia (Georgia Tech), de Atlanta, Estados Unidos, que prevê o corte a laser para a produção da tiara (suporte que segura a viseira), e da Universidade Católica de Pelotas (UCPel), no Rio Grande do Sul, que utiliza impressão 3D – nesse caso, a impressão ficou a cargo apenas da empresa parceira.
“O tempo de produção de uma única tiara de policarbonato, usada para compor a máscara, caiu de mais de duas horas e meia para apenas dois minutos”, conta Quiroz. No lugar do acetato, que está em falta, para compor a viseira da máscara, o grupo tem usado PVC, com aprovação médica. No total, já foram doadas 800 máscaras aos hospitais da região. “A demanda é grande. Queremos chegar a 5 mil protetores faciais doados até a primeira quinzena de maio”, afirma Quiroz, que disponibiliza o próprio email (cesar.quiroz@puc-campinas.edu.br) para quem quiser saber detalhes do projeto.
Alta demanda
No Centro-Oeste, a Universidade Federal de Goiás (UFG) reuniu uma equipe multidisciplinar no Projeto EPI-UFG, coordenado pelos professores Luana Miranda Ribeiro e Carlos Gustavo Hoelzel, e fez parcerias com organizações da sociedade civil para entregar 200 mil máscaras cirúrgicas e 6 mil aventais para os profissionais da saúde do estado. Mais de 17 mil metros de TNT e aviamentos foram doados pela Organização das Voluntárias de Goiás para a produção dos aventais e das máscaras, a cargo da Faculdade de Artes Visuais da UFG. “Ao receber o material doado, primeiro avaliamos se ele pode ser utilizado na confecção dos EPIs. Em seguida, traçamos fluxos de produção, controle e aprovação do produto final”, explica a engenheira têxtil Dorivalda Medeiros.
No Ceará, um dos estados até o momento mais afetados pela epidemia de Covid-19, uma equipe do Departamento de Arquitetura e Urbanismo e Design da Universidade Federal do Ceará (UFC) também se engajou na fabricação de EPIs. Para isso, criaram um canal na internet para o cadastro de instituições interessadas em receber os equipamento e para o recebimento de doações de dinheiro ou material (acetato, filamento ou elástico).
No início de abril, a UFC contabilizava uma demanda por 4 mil protetores faciais, com pedidos de 30 locais diferentes. “Vamos correr para atender todas as encomendas”, diz o cientista da computação Roberto César Cavalcante Vieira, coordenador do projeto. “Estamos trabalhando com dois modelos de face shield. Um deles tem a estrutura impressa em 3D e a viseira em acetato cortado em uma máquina de precisão milimétrica conhecida como plotter de recorte. O outro modelo é feito todo em acetato na máquina de corte a laser.” Os pesquisadores superaram a produção de mil máscaras em meados de abril.
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