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Cosmologia

Universo invisível

Astrônomos e físicos do mundo todo tentam desvendar do que são feitos 96% do Cosmo

XMM-Newton/ESA/CosmosAquarela cósmica: cada círculo representa um agrupamento de galáxias, as mais próximas em azul e as mais distantes em vemelhoXMM-Newton/ESA/Cosmos

A Agência Espacial Europeia (ESA, na sigla em inglês) divulgou no final de janeiro uma imagem mostrando a concentração de galáxias a diferentes distâncias em uma pequena região do Universo. Cada ponto colorido da imagem (veja acima) corresponde a um agrupamento com centenas a milhares de galáxias – cada uma delas formada por centenas de bilhões de estrelas e uma quantidade elevada de gás muito quente. São o que os astrônomos chamam de aglomerados de galáxias, as estruturas em equilíbrio de maior dimensão e massa já identificadas no Cosmo. Calculando o número de corpos celestes que podem existir ali, fica difícil imaginar que eles contribuam para compor apenas 4,6% de tudo o que existe no Universo. O restante, na verdade quase tudo, não pode ser visto. Os outros 95,6% são formados, de acordo com a vasta maioria dos físicos e dos astrônomos, por dois tipos de elementos descobertos apenas nos últimos 80 anos: a matéria escura e a energia escura, sobre as quais quase nada se sabe além do fato de que precisam existir para que o Universo seja como se imagina que é. Alvo de uma série de experimentos internacionais que contam com a participação de brasileiros, alguns já em andamento e outros previstos para iniciar nos próximos anos, essa forma de matéria e de energia não absorve nem emite luz e, portanto, é invisível ao olho humano.

Nenhum equipamento em atividade até o momento foi capaz de detectá-las diretamente. Mas os físicos preveem a existência das duas em seus modelos de evolução do Cosmo, e os astrônomos inferem a presença delas a partir de assinaturas que deixam na estrutura do Universo, identificáveis em imagens como essa produzida pela ESA, resultado do Levantamento sobre a Evolução Cosmológica (Cosmos) – esse projeto usa os maiores telescópios em terra e no espaço para vasculhar uma região do céu do tamanho de oito luas cheias.

Foi apenas no último século que a compreensão do Universo se complicou tanto. Na década de 1920 o astrônomo norte-americano Edwin Hubble percebeu que o Cosmo era formado por grandes agrupamentos de estrelas – as galáxias – e que elas estavam se afastando umas das outras. A constatação de que o Universo estava se expandindo levou físicos e astrônomos a reverem suas ideias, pois até então acreditava-se que ele fosse estático e finito.

Estudando as galáxias, o astrônomo búlgaro Fritz Zwicky, considerado por muitos um mal-humorado, notou em 1933 que elas precisariam de 10 vezes mais massa do que tinham para se unirem em aglomerados apenas pela atração gravitacional, a força proposta por Isaac Newton para explicar a atração de corpos de massa elevada a distâncias muito grandes, como os planetas e as estrelas. A massa que não se conseguiu enxergar foi chamada de matéria escura. A energia escura só seria proposta cerca de 70 anos mais tarde, quando os grupos de Adam Riess e Saul Perlmutter, que investigavam supernovas, estrelas que explodiram passando a emitir um brilho milhões de vezes mais intenso, estavam se afastando de nós cada vez mais rapidamente. O Universo não se encontrava apenas em expansão, mas em expansão acelerada. Algo desconhecido, uma espécie de força contrária à da gravidade – mais tarde chamada de energia escura –, fazia o Cosmo crescer a velocidades cada vez maiores como um lençol de borracha puxado pelas pontas.

hst/cxc/nasaColisão de titãs: o choque de dois aglomerados de galáxias separou a matéria comum (rosa) da matéria escura (azul)hst/cxc/nasa

Poucos cientistas duvidam hoje da existência da matéria escura e da energia escura, também conhecidas como a componente escura do Universo. O principal desafio – muitos pesquisadores a consideram uma das questões mais importantes a serem resolvidas – é determinar a natureza de ambas, ou seja, o que de fato as compõem.

Sobre esse ponto, físicos e astrônomos nada sabem com segurança. Quando muito, têm bons palpites. E, como os demais habitantes do planeta, devem continuar às escuras até que uma avalanche de dados sobre mais agrupamentos de galáxias e outras estruturas do Universo mais antigas do que as observadas hoje comece a alimentar seus computadores.

“Nunca nossa ignorância foi quantificada com tamanha precisão”, comenta o astrônomo Laerte Sodré Júnior, da Universidade de São Paulo (USP), referindo-se aos cálculos mais aceitos hoje da quantidade de matéria escura e de energia escura existentes no Cosmo: 22,6% e 72,8%, respectivamente. Há quase 30 anos Sodré estuda os aglomerados de galáxias, que reúnem cerca de 10% das galáxias existentes e podem ser compreendidos como sendo as metrópoles cósmicas: assim como as metrópoles da Terra, são poucas, mas têm dimensões absurdas e são muito populosas.

Com base em informações sobre aglomerados de galáxias e outros astros muito antigos e distantes, os físicos teóricos Élcio Abdalla, Luis Raul Abramo e Sandro Micheletti, todos do Instituto de Física (IF) da USP, em parceria com o físico chinês Bin Wang, decidiram recentemente verificar se os dados dessas observações astronômicas confirmavam uma ideia apresentada anos antes por outro brasileiro, o físico Orfeu Bertolami, pesquisador do Instituto Superior Técnico de Lisboa, em Portugal. Quase uma década atrás, pouco depois de identificadas as primeiras evidências de que a energia escura existe, Bertolami propôs que, se a matéria escura e a energia escura interagissem, como havia sugerido o astrônomo italiano Luca Amendola, essa influência mútua deixaria sinais em estruturas muito grandes do Cosmo, a exemplo dos aglomerados de galáxias.

Partículas
Para quem não está habituado, pode parecer estranho imaginar que algo que não se sabe muito bem o que é afete de alguma forma outra coisa sobre a qual não se tem o menor conhecimento. Mas não é o que os físicos pensam. Seja qual for a natureza da matéria escura e da energia escura, espera-se que o comportamento de ambas na escala do infinitamente pequeno (o mundo das partículas atômicas) influencie o mundo do infinitamente grande. Por isso, conhecer a interação entre elas – e delas com a matéria visível – pode ajudar a compreender como e em quanto tempo o Universo se formou e se tornou o que é, possibilitando inclusive a existência de vida. “Se acreditarmos minimamente no modelo padrão da física de partículas, que explica a composição da matéria bariônica [a matéria comum, composta de prótons, nêutrons e elétrons, e formadora das estrelas, dos planetas e de tudo o mais que se conhece] e, como as partículas que a formam interagem entre si, não há motivo para duvidar que também possa existir interação entre a matéria escura e a energia escura”, afirma Abdalla.

nasa/wmap science teamInicialmente Abdalla, Micheletti e Bin Wang, da Universidade Fudan, em Xangai, elaboraram um modelo rudimentar no qual descreveram a matéria escura e a energia escura com propriedades semelhantes às de líquidos e gases como a água e o ar – os físicos os chamam de fluidos, materias formados por camadas que se movimentam continuamente umas em relação às outras e, nesse deslocamento, podem se deformar reciprocamente. Na construção do modelo, uma série de equações matemáticas que tentam descrever o que aconteceu no passado e predizer o que ocorrerá no futuro levou em consideração informações obtidas durante anos por meio da observação de quasares, núcleos de galáxias muito brilhantes e antigos; supernovas, estrelas que explodiram e passaram a emitir uma luz milhões de vezes mais intensa que o normal; e da radiação cósmica de fundo em micro-ondas, uma forma de energia eletromagnética produzida nos instantes iniciais após o Big Bang, a explosão inicial que gerou o Universo e o próprio tempo 13,7 bilhões de anos atrás.

Mesmo sem determinar o modo como a matéria escura e a energia escura interagiam – apenas supuseram que a interação ocorreria –, eles verificaram que, ao resolver essas equações mais as formuladas por Einstein na teoria da relatividade geral, obtinham um Universo semelhante ao que se conhece hoje: em expansão acelerada, com tudo o que existe nele se afastando cada vez mais rapidamente, segundo artigo apresentado em junho de 2009 na Physical Review D. Na interação, de acordo com esse modelo, a energia escura liberaria radiação e se converteria em matéria escura – uma consequência da famosa equação E=m.c2, segundo a qual, em determinadas condições, matéria pode se transformar em energia e energia em matéria.

Interação
Mas não era o suficiente. Com o físico Luis Raul Abramo, Abdalla aprimorou o modelo e, dessa vez, procurou uma assinatura da interação entre energia escura e matéria escura nas informações obtidas de 33 aglomerados de galáxias, 25 deles estudados anos atrás em detalhes por Laerte Sodré e Eduardo Cypriano, pesquisadores do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP. Em colaboração com Sodré, Abdalla, Abramo e Wang usaram três métodos conhecidos para estimar a quantidade de matéria (massa) dos aglomerados de galáxias. Se não houvesse interação, os resultados teriam de ser iguais ou, no mínimo, muito próximos. Já se a matéria escura se transformasse em energia escura, ou vice-versa, um desses valores, sensível a essa conversão, diferiria dos demais. No trabalho publicado em 2009 na Physics Letters B, eles afirmam que há uma possibilidade real, ainda que pequena, de que a interação de fato ocorra, com a energia escura se convertendo em matéria escura.

high-z supernova search team/hst/nasaNos confins do Universo: observação de supernovas, explosões estelares como esta (ponto brilhante abaixo da galáxia), revelou expansão acelerada do Cosmohigh-z supernova search team/hst/nasa

Mesmo o próprio grupo vê esse resultado com cautela, porque há uma série de incertezas na medição das massas dos aglomerados de galáxias. Algumas dessas técnicas dependem de que esses agrupamentos estejam em equilíbrio e não interajam com outras galáxias ou aglomerados. Mas isso é pouco provável porque a massa dos aglomerados é muito elevada e atrai tudo o que está por perto. “A incerteza na medição da massa de cada aglomerado é grande”, comenta Abramo. “Esse modelo terá de ser testado por alguns anos. Analisamos 33 aglomerados de galáxias, mas, para ter segurança, teríamos de avaliar de centenas a milhares deles”, afirma Sodré, que atualmente negocia com astrônomos e físicos espanhóis a participação brasileira no projeto Javalambre Physics of the Accelerating Universe Survey (J-PAS), destinado a entender melhor as propriedades da energia escura e a evolução das galáxias medindo com mais precisão a que distância se encontram.

Estruturas do Universo
Abdalla, que teve a iniciativa de verificar os sinais dessa interação alguns anos atrás, sabe que muitos discordam de sua proposta. “Uma vez um referee [revisor científico] mal-educado disse que esse trabalho era especulação ao quadrado”, lembra o físico da USP. “Mas, se estivermos certos e essa interação for bem definida, poderá ser verificada em experimentos de física de partículas.”

Há cerca de cinco anos os físicos teóricos brasileiros Gabriela Camargo Campos e Rogério Rosenfeld, ambos do Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista (IFT-Unesp), criaram um modelo de interação entre matéria escura e energia escura que também as tratava como fluidos. No trabalho – feito em parceria com Luca Amendola, do Observatório Astronômico de Roma, o autor da ideia de interação entre esses elementos –, a dupla brasileira levou em consideração tanto informações sobre supernovas como sobre a radiação cósmica de fundo. Feitas as contas, concluíram que essa conversão não deve ocorrer, de acordo com artigo de 2007 na Physical Review D.

Com as informações disponíveis hoje sobre as estruturas do Universo, porém, fica difícil saber quem tem razão. “Há poucos dados e eles são fragmentados”, comenta Cypriano, astrônomo do IAG-USP. “Necessitamos de dados homogêneos e em grande quantidade.” Por esse motivo, mais de uma dúzia de projetos internacionais de grande porte já passaram pelo menos do estágio de planejamento.

O estudo da estrutura e da evolução das galáxias leva boa parte dos físicos e astrônomos a darem por certo que a matéria escura de fato existe – e que sua composição será descoberta em breve, talvez em até uma década. “Se for composta por partículas frias de massa muito elevada, vários modelos de física de partículas preveem que poderá ser produzida no Large Hadron Collider [LHC]”, afirma Abramo. Instalado na fronteira da Suíça com a França, o LHC começou a funcionar em fase experimental no final de 2009 e deve lançar, umas contra as outras, partículas atômicas viajando a velocidades próximas à da luz, desfazendo-as nos seus menores componentes. Já a resposta para a natureza da energia escura deve levar bem mais tempo, pois depende de levantamentos extensos das galáxias e estrelas encontradas em diferentes regiões do céu.

MPE/V.SpringelEm 12 bilhões de anos: sob a ação da matéria escura, gás se aglomera e forma estrelas e galáxias (áreas brilhantes), que passam a se afastar empurradas pela energia escuraMPE/V.Springel

Um desses levantamentos, previsto para começar no segundo semestre de 2011, é o Dark Energy Surgey (DES), do qual devem participar cerca de 30 brasileiros (entre pesquisadores, estudantes e técnicos) de instituições no Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul. Esse projeto pretende usar uma supercâmera digital – com capacidade de produzir imagens de altíssima resolução (500 megapixels), 40 vezes maior do que as das câmeras comuns – acoplada ao telescópio Blanco do Observatório Interamericano de Cerro Tololo, no Chile, para coletar ao longo de quatro anos informações de aproximadamente 400 milhões de galáxias. “Queremos estudar a distribuição de massa dos aglomerados de galáxias a diferentes distâncias”, conta Luiz Alberto Nicolaci da Costa, astrônomo do Observatório Nacional (ON), no Rio de Janeiro, coordenador da participação brasileira no DES. Dependendo da massa total do Universo e da existência ou não de interação entre matéria escura e energia escura, pode haver um número maior ou menor desses aglomerados a determinadas distâncias.

Força repulsiva
Mesmo antes de o experimento começar, Nicolaci sabe que ele não trará uma resposta definitiva sobre a natureza da energia escura, a força repulsiva, uma espécie de antigravidade, que faz os objetos se afastarem a velocidades cada vez maiores no Universo. “No início desta década um grupo internacional de pesquisadores se reuniu e tentou delinear os experimentos mais adequados a serem realizados em quatro fases para tentar descobrir o que é a energia escura”, explica o astrônomo do Observatório Nacional. Os mais simples já terminaram e o DES é da fase três. “Com o DES, esperamos restringir os candidatos a energia escura”, conta Nicolaci.

Uma das mais cotadas é a chamada energia do vácuo, que, ao contrário do que se pensa, não é vazio. O vácuo é rico em partículas muito fugazes que surgem e desaparecem antes que possam ser detectadas e poderiam fornecer a força antigravitacional que faz os corpos celestes se afastarem. Para a física de partículas, a força do vácuo é o correspondente à constante cosmológica, termo que Albert Einstein acrescentou às equações da relatividade geral para que sua teoria representasse um Universo estático. “Mas essa seria uma solução feia, porque a densidade de energia do vácuo teria de ser 10120 [o número um seguido de 120 zeros] maior do que a observada pelos astrônomos”, comenta Élcio Abdalla.

Nasa/ESA/STSclA cruz de Einstein: galáxia no centro da imagem curva o espaço e transforma em quatro um único quasar, comprovando efeito previsto pelo físico alemãoNasa/ESA/STScl

Pode ser também que a energia escura seja uma espécie de fluido desconhecido, chamado pelos astrônomos de quintessência, em alusão aos quatro elementos que se acreditava que compunham o Universo (ar, água, fogo e terra). Ou ainda, que ela não exista, e os efeitos atribuídos a ela sejam consequência de o Universo não ser homogêneo como se imagina e a Via Láctea se encontrar em uma região contendo muito pouca matéria. O astrofísico Filipe Abdalla, pesquisador da University College London e filho de Élcio Abdalla, trabalha em dois experimentos mais avançados, que integram a quarta fase da busca da energia escura e só devem começar a funcionar em alguns anos: o do satélite Euclid e o do telescópio de micro-ondas Square Kilometre Array, a ser construído na África do Sul ou na Austrália. “Se for alguma incorreção nas equações de Einstein, que explicam bem a atração gravitacional nas galáxias”, comentou Filipe durante uma visita a São Paulo em agosto de 2009, “esses experimentos nos permitirão saber”.

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