No início deste ano, um grupo de pesquisadores do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP) identificou o gene responsável por uma doença degenerativa muscular conhecida como Distrofia de Cintura, enfermidade que deforma alguns músculos dos braços e das pernas, próximos à pélvis, impedindo que a pessoa ande. Esse foi o terceiro gene identificado pela equipe. Os dois primeiros foram mapeados em 1995. Um refere-se a outro tipo de Distrofia de Cintura, mais grave, que pode levar uma criança com 10 anos de idade para a cadeira de rodas, e o segundo é o que causa a Síndrome de Knobloch, um tipo raro de cegueira progressiva.
Esses estudos inserem o Brasil no Programa Genoma Humano, um grande esforço de vários laboratórios, em todo o mundo, para desvendar a função de cerca de 80 a 100 mil genes existentes nas células do homem e que são responsáveis pelas características hereditárias. Além de entender melhor o mecanismo genético do corpo humano, a importância desse trabalho está na identificação dos genes que determinam a existência de 7 mil doenças, muitas delas sem perspectivas de cura ou tratamento, como é o caso das dezenas de distrofias musculares que causam paralisias e deformidades. Atualmente, 1.600 genes correspondentes a doenças estão mapeados, representando apenas 20% do total.
Sob a coordenação da bióloga e professora Mayana Zatz, os estudos realizados nos laboratórios da USP, em São Paulo, fazem parte do Projeto Temático Correlações Gene-Fenótipo, Contribuições ao Genoma Humano, financiado pela FAPESP, que também inclui o aconselhamento e acompanhamento genético de indivíduos e famílias portadoras dessas doenças. O projeto teve início no ano passado, deverá estender-se até 1999 e é o segundo com o mesmo tema: o primeiro realizou-se de 1991 a 1995. Para cada um a FAPESP liberou recursos da ordem de R$ 300 mil.
Genes e proteínas
Para a professora Mayana Zatz, a descoberta de um gene responsável por uma enfermidade não significa que a cura esteja perto, mas já representa um grande avanço no entendimento do mecanismo interno do gene. “Depois de mapeado dentro do genoma, é preciso descobrir qual proteína está defeituosa”, explica. O primeiro gene da Distrofia de Cintura identificado pela equipe da cientista teve a sua proteína defeituosa reconhecida num trabalho entre a USP e pesquisadores da Universidade de Nápoles, na Itália. Ela chama-se Delta Sargoclicam. “Com o estudo da interação dessa proteína com as outras existentes no gene, será possível, no futuro, partir para a formulação de um tratamento”, explica Mayana. Sabendo-se como age a proteína defeituosa -de qualquer gene que provoque uma doença -será possível corrigí-la ou mesmo fazer a substituição do gene indesejável por outro saudável.
Hoje, o principal desafio dos cientistas é encontrar o gene certo de uma determinada doença. A busca é iniciada dentro das moléculas de DNA de um dos 46 cromossomos presentes em todas as células. A grande dificuldade neste trabalho deve-se ao tamanho dessa molécula. O DNA tem cerca de 2 metros de comprimento, e, se fosse possível juntar todas essas moléculas do corpo humano e esticá-las, o comprimento seria suficiente para se fazer 16 mil vezes a ligação entre a Terra e a Lua. Apesar de serem longas, as moléculas de DNA têm espessuras de quase de 2 nanômetros, ou 0,000002 milímetros.
“Achar um gene específico é como procurar uma casa cor-de-rosa de telhado verde numa cidade como São Paulo, sem saber a rua ou o bairro onde ela está localizada”, comenta Mayana. “O trabalho se inicia com a localização de uma família com pelo menos seis indivíduos afetados por uma dessas doenças”. É retirada uma amostra de sangue daqueles que têm a enfermidade e outras amostras dos indivíduos normais da mesma família.
De uma das células de cada pessoa, extrai-se o DNA, que é ampliado, por meio de técnicas como o PCR-Reação em Cadeia de Polimerase ou Polymerase Chain Reaction. Depois, essa molécula é levada para um aparelho, chamado eletroforese, onde recebe uma corrente elétrica que separa e amplia as bandas, ou pedaços de DNA. Posteriormente, essas bandas são transpostas para filmes fotográficos e impressas em acetatos, iniciando-se a análise dos genes.
Aconselhamento genético
Para encontrar o gene de uma determinada doença, a pesquisa é árdua, exige paciência e depende também do fator sorte. Sorte que ajudou a equipe da USP a localizar, no cromossomo 21, o gene responsável pela Síndrome de Knobloch. Ao se detectar uma família com Distrofia de Cintura na cidade de Euclides da Cunha, no Estado da Bahia, os pesquisadores perceberam que havia, também, muitos casos de cegueira nessa família formada por casais consangüíneos. Para saber o que acontecia naquela família, a professora e bióloga Maria Rita Passos Bueno foi até aquela cidade, conversou com os membros da família e coletou material para a pesquisa.
“Uma parte da família tem distrofia e a outra cegueira”, diz a professora Rita. Todas as famílias envolvidas nas pesquisas ou que procuram o Instituto de Biologia recebem orientações no Centro de Aconselhamento Genético. “Pesquisamos e fornecemos aconselhamento em mais de 40 genes diferentes que causam distrofias musculares e diversas outras doenças hereditárias, como a má formação de crânio ou defeitos nos lábios em recém-nascidos”, diz Mayana. Algumas dessas doenças, como a Distrofia de Duchenne, que degenera a musculatura esquelética da criança impedindo-a de pular e correr, não necessariamente são herdadas dos pais. “Cerca de um terço dos indivíduos têm essa doença decorrente de mutações novas”.
“No início da gravidez é possível saber se o feto herdou ou não algum gene defeituoso identificado na família”, diz Mayana. Grande parte dos casais opta pelo aborto. “Em muitos países do primeiro mundo, existe o aborto terapêutico e no Brasil há jurisprudência para esses casos”. Se os indivíduos dessas famílias com doenças genéticas fizerem um diagnóstico pré-natal é possível saber dos riscos. “Com os exames iniciais, o número de abortos em famílias de alto risco diminui”, afirma a pesquisadora. No ano passado, de 32 casos analisados de Distrofia de Duchenne em casais com possibilidade de ter filhos com essa doença, apenas dois foram positivos.
Há aqueles que procuram o Centro de Aconselhamento para problemas como os Defeitos de Função dos Lábios, quando as crianças nascem com os lábios segmentados. “Depois do nascimento de uma criança com esses problemas, que exigem cirurgias e difícil tratamento, os pais ficam receosos de terem mais um filho”, conta Mayana. “Mas hoje sabe-se que a chance desse problema aparecer num segundo filho é praticamente zero”. No Centro de Aconselhamento, dois outros grupos de estudo fornecem também orientações sobre formas de retardamento mental e má-formações congênitas.
Influência do ambiente
Outra linha de pesquisa do Laboratório de Genoma do Instituto de Biologia da USP é o estudo da relação genótipo-fenótipo, que analisa como as características genéticas e o ambiente influem no quadro clínico de cada pessoa. “Estudamos a razão de um determinado erro no gene nem sempre resultar num mesmo quadro clínico. Há pessoas que têm sintomas leves ou fortes para o mesmo tipo de gene defeituoso”, explica a pesquisadora. “Fazemos observações também de como um gene se correlaciona com outro e com o ambiente”. Isso é muito notado em doenças psiquiátricas com componentes genéticos, como a esquizofrenia e a psicose-maníaco-depressiva, que recebem forte influência do ambiente.
Mapeamento genético
O Projeto Genoma Humano é uma megaprojeto de pesquisas no campo da genética que pretende mapear e isolar todos os genes que compõem o material genético do homem. Além de determinar aqueles que estão relacionados com doenças, os pesquisadores querem determinar como os genes se intercomunicam e conhecer melhor a estrutura da casa dos genes, que é o DNA. É um trabalho demorado e caro. Todo o conjunto de pesquisas do genoma humano, que teve início em 1990, está orçado, inicialmente, em US$ 3 bilhões, para um período de 15 anos.
Esse megaprojeto tem âmbito internacional, porém, não tem uma coordenação central em alguma instituição ou laboratório. Existe apenas o instituto The Humam Genome Organization, nos Estados Unidos, que reúne as pesquisas, promove troca de informações e organiza congressos. “Como os trabalhos demoram um pouco para serem publicados, trocamos informações com outros grupos de trabalho, em todo o mundo, via Internet”, conta a professora Mayana.
No atual projeto temático do Instituto de Biologia da USP, estão envolvidos dois professores-doutores, seis pesquisadores-doutores, sete doutorandos, quatro mestrandos, três alunos com bolsas de iniciação científica e quatro técnicos. O grupo poderá contar futuramente com o Centro de Estudo do Genoma Humano, cuja implantação foi aprovada recentemente pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), dentro de um programa de apoio a centros de excelência, com a colaboração da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). O novo centro será construído ao lado do Instituto de Biologia da USP, na Cidade Universitária.
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