Estou em home office desde o dia 15 de março porque tenho uma filhinha de 2 anos, a Laura. Sou sozinha com ela, então tenho tentado me virar para conciliar trabalho, bebê e tarefas da casa. Desde que nasceu ela dorme menos do que a média dos bebês, então quando vou dormir ponho o despertador para dali a cinco horas, para dar conta de tudo – inclusive aos sábados e domingos.
Desde que ingressei na UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro] e montei o Laboratório de Engenharia de Cultivos Celulares nos dedicamos à biotecnologia farmacêutica, com atuação concentrada em biofármacos e vacinas. Nos últimos anos nosso foco vinha sendo a produção de um conjunto de proteínas recombinantes, que, quando produzidas juntas, formam a estrutura tridimensional de um dado vírus e o imitam, como se fosse um vírus oco que não é capaz de se replicar nem de causar doença. Estávamos fazendo isso para zika, febre amarela e dengue, sorotipos 1 a 4. Chamamos essas estruturas de partículas pseudovirais, ou VLPs, do inglês virus-like particles.
Vínhamos desenvolvendo as VLPs para usar não só como vacina, mas também como iscas para detectar anticorpos monoclonais a partir de amostras de pacientes de zika convalescentes ou de voluntários que foram vacinados contra febre amarela, em parceria com Brandon DeKosky, um colega da Universidade do Kansas, nos Estados Unidos. Nessa colaboração, nosso laboratório fornece as VLPs e depois trabalha na modificação genética de células, para passar a produzir os anticorpos descobertos.
Mas no início deste ano a UFRJ criou um grupo de trabalho sobre o novo coronavírus e fui convidada a participar. Em uma das primeiras reuniões dessa força-tarefa ficou estabelecido como prioridade desenvolver testes, que naquele momento eram uma lacuna séria. Como sou engenheira química – ou engenheira bioquímica, como dizemos, que é o profissional que tenta levar um produto biotecnológico para uma escala grande de produção –, a principal forma pela qual meu laboratório podia contribuir era produzindo na forma recombinante a proteína da espícula do coronavírus, conhecida como proteína S, devido ao nome em inglês (spike). Esta é a proteína que forma as pontinhas externas do vírus e a maioria dos anticorpos neutralizantes que uma pessoa passa a produzir quando infectada pelo vírus é voltada para essa proteína.
Já no final de fevereiro, dois dias antes do Carnaval, conseguimos comprovar a expressão da proteína S em uma linhagem de células de mamíferos de laboratório. Em seguida, fizemos outro tipo de modificação genética para garantir que as células ficassem estáveis e transferissem aquela nova informação genética para as células-filhas. Desde abril começamos a distribuir amostras da proteína S para pesquisadores de todo o Brasil que nos procuraram, para os mais diversos tipos de pesquisa.
De lá para cá, desenvolvemos a tecnologia de produção da proteína em biorreatores e o processo de purificação por cromatografia de afinidade. Parte do trabalho recebeu apoio da Faperj [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro], do Senai [Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial] e da empresa CTG. Agora, com apoio da Embrapii [Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação], Sebrae [Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas], FK Biotecnologia/Immunobiotech e Biomanguinhos/Fiocruz, buscamos ampliar a escala para biorreatores de 50 litros e colunas cromatográficas de 200 mililitros. Usávamos biorreatores de 1 litro e colunas de 5 mililitros, então é uma ampliação de escala de 40 a 50 vezes. Essa contribuição tem tudo a ver com o principal foco de um laboratório localizado em um programa dedicado à engenharia química na Coppe [Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia].
Com a proteína S, desenvolvemos, com colegas da biofísica e da biologia da UFRJ, um teste para detecção de anticorpos – chamado teste S-UFRJ – de alta sensibilidade e especificidade e custo, em termos de insumos, entre R$1 e R$2 por amostra. O teste pode ser implementado mesmo em regiões remotas ou sem laboratórios de análises clínicas, pois envolve um furo no dedo para coletar algumas gotas de sangue em uma tira de papel-filtro, que pode ser enviada em temperatura ambiente, até pelo correio, para ser analisada. Nosso princípio foi desenvolver o teste na UFRJ e, depois de validar contra mil amostras positivas e negativas, publicar, para que fosse possível produzi-lo e aplicá-lo em qualquer lugar do mundo.
Em paralelo, desde abril distribuímos a proteína para empresas públicas e privadas brasileiras, assim como para um laboratório do Ministério da Agricultura e outro da Organização Pan-americana de Saúde. Algumas empresas já estão comercializando testes desenvolvidos com nossa proteína, outras estão no estágio de validação, preparando o pedido de registro para a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Esperamos que isso contribua para que o Brasil faça uma testagem mais ampla de sua população, como recomenda a OMS [Organização Mundial da Saúde].
Em maio, começamos a participar de um projeto coordenado pelo colega Jerson Lima, do Instituto de Bioquímica Médica da UFRJ, visando desenvolver, junto com o Instituto Vital Brazil, um soro de cavalo anti-Covid, para ser usado no tratamento de pacientes. Os animais foram vacinados com a nossa proteína S, de modo a estimular seu sistema imunológico por meio dessas cópias da proteína do vírus. Eles passaram a produzir anticorpos específicos, com elevada capacidade de neutralizar o coronavírus em ensaios de laboratório. A expectativa é que seja possível iniciar os testes clínicos em voluntários humanos ainda este ano.
O Vital Brazil está para o Rio de Janeiro assim como o Butantan está para São Paulo: é um instituto de produção de insumos para a saúde que pertence ao governo do estado. Produz soro contra raiva, tétano e picadas de cobra e de aranha. É uma plataforma de produção na qual a única coisa que muda é o que há dentro da injeção dada aos cavalos. Há décadas o Instituto Vital Brazil produz soros muito seguros, sem histórico de reações adversas. Vários produtos praticamente idênticos fabricados lá são usados em seres humanos – só muda uma porção ínfima do anticorpo, que garante a especificidade de qual vírus ou patógeno será reconhecido.
Em outra frente, estamos desenvolvendo, com colegas de várias unidades do Centro de Ciências da Saúde da UFRJ, uma vacina a partir da proteína S. Estamos obtendo resultados muito interessantes nos testes pré-clínicos em camundongos. O projeto paralelo dos cavalos também nos mostrou que funciona bem, porque eles produzem muitos anticorpos neutralizantes quando vacinados com essa proteína. Por isso, temos indícios de que tem potencial muito interessante.
Por fim, além da expressão da proteína S, começamos em julho a trabalhar na modificação genética de células de mamíferos para produzir um anticorpo monoclonal humano anti-Covid-19, descoberto por Brandon DeKosky. O imunologista André Vale, do Instituto de Biofísica da UFRJ, também está em busca de anticorpos monoclonais contra a doença a partir de amostras de pacientes convalescentes. No futuro, esses anticorpos poderiam se tornar mais um tratamento contra a Covid-19.
Temos uma equipe bem enxuta trabalhando no laboratório durante a pandemia. No início de fevereiro, eu disse ao grupo em um de nossos seminários: “Vamos ter que trabalhar com coronavírus, não dá para fugir dessa responsabilidade”. Três dos doutorandos se ofereceram para ajudar e, mais recentemente, um recém-doutor oriundo de outra universidade se ofereceu como voluntário e acabou se tornando nosso pesquisador em estágio de pós-doutorado. Os demais pós-graduandos estão de quarentena, trabalhando em artigos, redigindo as teses ou cursando disciplinas virtualmente.
Os quatro que estão fazendo tudo no laboratório se desdobram e também não dormem muito, como eu. Renata Alvim, que trabalhou na geração da célula recombinante, foi ao laboratório inclusive durante o Carnaval. Aqueles que trabalham com os biorreatores não têm finais de semana há meses. Como as células se reproduzem continuamente, é preciso acompanhar diariamente os experimentos em biorreatores.
De casa, faço muitas reuniões remotas para planejar os experimentos e discutir os resultados. Também tenho contactado potenciais colaboradores para viabilizar etapas futuras das pesquisas nas quais não temos internamente a infraestrutura ou a expertise. Com os resultados da quarentena já temos duas publicações e uma solicitação de patente. O resto do trabalho como pesquisadora também continua, com orientação de alunos, palestras, relatórios, teses e outros afazeres. Como o conhecimento sobre coronavírus muda o tempo todo, também temos que ler muito para nos manter atualizados.
Nas universidades federais, além do nosso salário, só recebemos o teto, a água e a luz. Os pesquisadores não recebem verba orçamentária para comprar reagentes para as pesquisas, por isso precisamos constantemente submeter projetos e obter verbas para pesquisa. O uso dessas verbas para aquisição do material de laboratório também envolve uma boa dose de burocracia, que tem consumido parte do meu tempo e de uma das doutorandas.
Quem coordena um laboratório em uma universidade de pesquisa vai do poço ao posto, como dizia uma propaganda da Petrobras quando eu era criança. Às vezes digo que sou do office boy à professora titular da UFRJ, de tudo um pouco. O mesmo vale para todos os meus colegas de universidades públicas. E nossos pós-graduandos são os jovens cientistas. São eles a força motriz que realiza 95% de toda a produção científica brasileira. E o fazem com bolsas que, considerando o custo de vida nas grandes cidades brasileiras, são muito baixas.
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