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Física Aplicada

Van Dyck – falso ou verdadeiro?

Físicos da USP tentam descobrir se pintura que mostra o calvário de Jesus é mesmo do mestre dos retratos do século 17

MIGUEL BOYAYAN Estátua africana: análise da corrosãoMIGUEL BOYAYAN

Às 8 horas da manhã de 17 de dezembro do ano passado, um sábado, dia em que as atividades acadêmicas naturalmente cessam ou diminuem no vasto campus da Universidade de São Paulo, no bairro paulistano do Butantã, um carro conduzido por um motorista particular, e escoltado por seguranças, estacionou em frente ao Instituto de Física. De seu interior saiu a restauradora Marcia Rizzo com uma tela de 1 metro de largura por 1,18 metro de altura, que rapidamente foi levada para as dependências do Laboratório de Análise de Materiais por Feixes Iônicos (Lamfi), onde uma equipe de pesquisadores a aguardava para o início dos trabalhos.

Naquela data, em vez de fornecer dados para estudos de poluição do ar ou de finos filmes semicondutores ou magnéticos, duas de suas principais áreas de atuação, os equipamentos e os físicos do laboratório estiveram por horas a fio a serviço de uma iniciativa para desvendar um tipo de mistério corriqueiro, mas muito interessante, do mundo das artes plásticas: a origem e, se possível, a autoria de um quadro – no caso, uma pintura atribuída por seu dono, um colecionador particular, ao belga Anthony van Dyck (1599-1641), pintor flamengo que ganhou fama na primeira metade do século 17 por seus retratos de reis e rainhas da Europa, em especial da Corte inglesa.

Branco-de-chumbo
Com o auxílio de uma técnica de emissão de raios X conhecida por Pixe, que permite identificar a composição química elementar de boa parte dos pigmentos usados numa pintura sem promover danos à obra de arte, os cientistas produziram informações importantes sobre como e quando a tela deve ter sido originalmente confeccionada e até mesmo de que maneira foi restaurada ou modificada ao longo de sua história.

Descobriram, por exemplo, que os tons alvos originalmente presentes no quadro, que mostra a crucificação de Jesus, provêm do chamado branco-de- chumbo, o pigmento dessa cor mais usado pelos pintores entre a Antiguidade e o fim do século 18. As partes brancas retocadas da pintura, como pedaços do tecido que cobre a cintura de Jesus, apresentam outro pigmento, o branco-de-titânio, que só começou a ser utilizado a partir do século 20, tornando-se o favorito dos artistas.

“Por ora, o estudo dos pigmentos parece indicar que se trata de um quadro realmente antigo, não contemporâneo”, afirma Paulo Pascholati, um dos físicos que participaram das análises. “Mas não podemos precisar a época, tampouco a identidade do pintor”.

Também foram detectadas quantidades significativas de pigmentos castanhos, ricos em manganês e comumente empregados por pintores que viveram há 400 anos, como o marrom de Van Dyck (terra betuminosa mais ferro e manganês), encontrado no cabelo do soldado ao lado de Jesus. Havia ainda a expectativa de flagrar na pintura um tipo de pigmento azul muito valorizado durante a Renascença, o azul ultramarino, um complexo de enxofre derivado de uma pedra ornamental, o lápis-lazúli.

Embora hoje apareça extremamente escurecido pelo processo de oxidação de sua camada de proteção (ou verniz), o manto da Virgem Maria, uma das personagens do quadro, é da cor azul – e os pesquisadores achavam que ali poderia haver azul ultramarino. Mas os exames iniciais ainda não conseguiram confirmar, nem descartar por completo, a presença do nobre pigmento. Novas análises deverão ser feitas para elucidar a questão.

A pintura retrata uma cena clássica do cristianismo, o calvário de Jesus. Num fundo bastante escurecido pela ação do tempo, a tela mostra o filho de Deus crucificado ao centro, Maria Madalena agarrada aos seus pés, São João Evangelista e a Virgem Maria de um lado, e um soldado, uma pessoa e um cavalo de outro. O quadro candidato a um Van Dyck apresenta evidências de que, ao longo de sua história, sofreu modificações, restauros e avarias de toda sorte. No canto inferior direito há um rasgo.

A tela trocou de moldura várias vezes, sendo obrigada a se adaptar a chassis de diferentes dimensões. Foi ainda dobrada quase ao meio, deixando marcas dessa agressão perto do braço direito de Jesus. E apresenta duas emendas: pedaços do tecido foram cortados e posteriormente reencaixados à pintura. “O quadro também passou pelo que chamamos de uma limpeza seletiva”, afirma Marcia Rizzo, restauradora há mais de 20 anos e aluna de mestrado em química na USP. O verniz original do quadro – do tipo Dammar, o mais usado pelos pintores antigos, que tem como característica escurecer em demasia com a passagem do tempo – foi removido apenas de certos trechos do quadro, como na figura do Cristo.

Tempo e espaço
Ninguém tinha a ilusão de que, isoladamente, o estudo com a metodologia Pixe iria resolver a questão central sobre a duvidosa autoria do quadro. A técnica não faz mágica. Na verdade, com a nova abordagem, o que os pesquisadores queriam era proporcionar mais dados que, somados às informações obtidas com outras análises científicas e artísticas, talvez ajudem a elucidar o mistério das mãos que pintaram a tela. “O uso dos conhecimentos da física e da química para estudar os elementos de uma obra de arte não fornece respostas definitivas”, pondera Marcia Rizzo.

“Apenas ajuda a situá-lo no tempo e espaço”. Sempre que há uma controvérsia sobre a autoria de uma tela ou escultura, a palavra final sobre a sua autenticidade fica a cargo de estudiosos da obra dos grandes pintores. Pessoalmente, Marcia acredita que a tela com o calvário de Cristo seja um trabalho da escola flamenga renascentista e deve ter uns 400 anos de idade. Mas, se é mesmo um Van Dyck, ela não arrisca dizer. Alguns especialistas em pintura especulam que o quadro tem um estilo mais próximo ao do pintor flamengo Jacob Jordaens (1593-1678), também nascido em Antuérpia como Van Dyck, que trabalhou os temas religiosos com grande freqüência.

Sigla que em inglês significa Particle Induced X-Ray Emission, a técnica Pixe consiste em expor o objeto a ser analisado a um feixe de prótons produzido por um acelerador de partículas. Os prótons colidem com a superfície do artefato à sua frente, mais precisamente com os átomos das substâncias que compõem o objeto em estudo, e retornam ao equipamento na forma de raios X característicos dos elementos químicos da amostra. Cada elemento (o ferro, o alumínio etc.) emite uma radiação específica, uma espécie de assinatura em raios X. Dessa forma, os pesquisadores conseguem identificar a composição química dos materiais presentes em pontos da amostra extremamente pequenos, com diâmetro de 1 ou 2 micrômetros.

A Pixe apresenta algumas vantagens quando comparada com outros métodos não-destrutivos igualmente capazes de fornecer a composição química dos materiais: não precisa ser realizada num ambiente sob vácuo, como acontece nos estudos produzidos com microscópios de varredura eletrônica, e dá resultados um pouco mais refinados que os da espectroscopia de fluorescência de raios X (EDXRF). “Esta última técnica, no entanto, pode ser feita por um equipamento fácil de transportar, que pode ser levado a museus”, diz Manfredo Tabacniks, do Lamfi/USP.

“Com a Pixe, o objeto da análise tem de ser levado até o equipamento”. No caso da possível tela flamenga, os cientistas chegaram a eleger 30 pontos de análise, que cobriam os distintos pigmentos que dão cor à obra de arte, mas só tiveram tempo de realizar o estudo em pouco mais de uma dezena deles. Cada ponto foi bombardeado pelas partículas atômicas por cerca de 20 minutos. O feixe de prótons atravessa o verniz que protege a pintura, chega até as camadas de tinta e retorna com as assinaturas em raios X dos elementos químicos que constituem os pigmentos usados na tela. Tudo isso sem promover nenhum dano ao quadro.

Não são só os quadros que podem se beneficiar das análises por raios X. Técnicas como a Pixe e a EDXRF também são úteis para estudar os materiais constituintes de esculturas. “Além de caracterizarmos a liga que compõe objetos e estátuas, podemos identificar os compostos que provocam a corrosão e levam ao acúmulo de depósitos nas peças”, afirma a física Márcia Rizzutto, que examinou quatros itens da coleção do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP com o auxílio de ambas as técnicas.

Entre os resultados mais expressivos do trabalho Márcia percebeu que uma estátua da coleção africana do museu – um Edans, produzido basicamente com uma liga de cobre e zinco pela antiga sociedade secreta Ogboni – apresentava uma corrosão bastante seletiva. O elemento zinco de sua liga era mais atacado que o cobre. Esse tipo de dado é importante para os administradores de museus, que têm de se preocupar com a conservação de seu acervo. Num projeto que conta com financiamento da FAPESP, Márcia ainda emprega as técnicas para a caracterização de dentes e vestígios arqueológicos encontrados em sambaquis.

Da Vinci oculto
Em alguns grandes museus, como o Louvre em Paris, o emprego de métodos cada vez mais refinados de análise das propriedades físicas ou químicas das obras de arte tornou-se corriqueiro nas últimas décadas. A área de conservação e restauro desses templos das artes plásticas possui equipamentos similares aos encontrados nas melhores universidades da Europa e dos Estados Unidos. E quem não os tem freqüentemente abre suas portas para que os cientistas realizem suas medições. Com o auxílio da ciência, um pouco de sorte e muito trabalho, os especialistas em pintura e escultura podem descobrir detalhes até então ignorados da obra de um autor. Mesmo quadros extensivamente esquadrinhados pelos olhos treinados de especialistas em pintura revelam facetas insuspeitas quando submetidos a novas formas de análise.

Em julho de 2005, os curadores da National Gallery, de Londres, divulgaram a informação de que, escondidos embaixo das camadas de tinta do famoso quadro A Madona das rochas, de Leonardo da Vinci, há dois desenhos feitos pelo mestre da Renascença. O primeiro mostra uma Virgem Maria numa pose distinta da que efetivamente acabou sendo pintada na versão da tela que faz parte da coleção do museu inglês. Trata-se de uma idéia inicial, um rascunho, que, por algum motivo, Da Vinci não levou adiante. O segundo é o esboço dos contornos finais da cena que acabou imortalizada no quadro.

Esse trabalho oculto do pintor só veio à tona porque A Madona das rochas foi filmada por meio de uma técnica complementar à fotografia em infravermelho, a chamada reflectografia em infravermelho, que realça desenhos não visíveis a olhos situados sob o conjunto de pigmentos de uma pintura. A reflectografia é boa para salientar desenhos em preto feitos com material rico em carbono, como o grafite. “No Brasil, infelizmente, usamos com pouca freqüência as análises físicas e químicas no estudo da arte”, comenta Pascholati. Trabalhos como o realizado com o quadro candidato a Van Dyck ainda são exceções.

O projeto
Elementos traço em biomateriais (nº 03/00311-4); Modalidade Projeto Regular de Auxílio à Pesquisa; Coordenador Márcia Rizzutto – IF/USP; Investimento R$ 22.000,00 e US$ 5.000,00 (FAPESP)

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