
Prancha do livro Tabulae anatomicae, publicado em 1552 pelo anatomista italiano Bartolomeo Eustachio (c. 1500-1574), mostra o coração e os grandes vasos do corpo humanoTabulae anatomicae / Bartolomeo Eustachio
“Estamos desafiando um cânone.” Com a afirmação ousada e confiante, o médico e farmacologista Gilberto De Nucci encerrou o almoço em um restaurante italiano da capital paulista em outubro passado. A conversa tinha sido repleta de informações novas sobre a bioquímica e a fisiologia do coração e dos vasos sanguíneos e exigia tempo para ser digerida. Por mais de uma hora, o pesquisador havia relatado os achados de seu grupo na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que pretendem mudar o entendimento de como o organismo regula os batimentos cardíacos, a pressão arterial, a ereção peniana e a ejaculação.
Descritos em mais de 30 artigos científicos publicados de 2020 para cá, o mais recente em fevereiro na revista Life Sciences, os resultados da equipe de De Nucci sugerem que o revestimento interno dos vasos sanguíneos e das câmaras do coração é o principal produtor de uma família de compostos que controla desde a contração de artérias e veias até o ritmo e a força de pulsação do coração. Até então, cardiologistas e fisiologistas atribuíam a síntese e a liberação desses compostos, conhecidos como catecolaminas, a apenas certos conjuntos de nervos.
São três as catecolaminas mais conhecidas: dopamina, noradrenalina e adrenalina. Identificadas entre o fim do século XIX e meados do XX, são produzidas por diferentes áreas do cérebro e do sistema nervoso central, onde funcionam como neurotransmissores, enviando comandos de uma célula a outra. Em situações de perigo real, como um assalto a mão armada, ou imaginário, o receio de ser assaltado na rua, elas são sintetizadas e liberadas por fibras do sistema nervoso simpático, que saem da região torácica e lombar da medula espinhal e chegam a diferentes órgãos e tecidos. Nessas situações, as catecolaminas, em especial a noradrenalina, preparam o corpo para lutar ou fugir. Fazem o coração bater mais forte e rápido, o fígado liberar glicose, os vasos se contraírem e a pressão arterial aumentar, facilitando a chegada de sangue e energia aos músculos.
Foi em parte por acaso que o grupo da Unicamp encontrou o caminho para os achados que agora colocam em questão esse cânone da fisiologia cardiovascular. Em meados de 2010, em uma conversa com um zoólogo no Rio de Janeiro, De Nucci surpreendeu-se ao saber que os répteis teriam sido os primeiros animais a desenvolver pênis e que a cópula da cascavel (Crotalus durissus terrificus) podia durar até 28 horas. Fazia poucos anos que ele havia desenvolvido para o Laboratório Cristália, do interior de São Paulo, um composto para tratar a dificuldade de ter ou manter ereção: o lodenafil, comercializado com o nome de Helleva e de ação semelhante à do sildenafil (Viagra). Intrigado com as serpentes, De Nucci decidiu investigar o que proporcionava ereções tão prolongadas.
No ser humano, a ereção depende de fatores emocionais, do funcionamento neural e dos vasos. Em resposta a um estímulo sexual, os nervos que transmitem informações do cérebro ao pênis estimulam os vasos sanguíneos a produzir óxido nítrico (NO). Sintetizado pelas células do endotélio, a camada que reveste internamente as veias e as artérias, o NO inicia reações químicas que fazem a musculatura dos vasos relaxar. Resultado: o pênis se enche de sangue e enrijece. Fibras do sistema nervoso simpático, após certo tempo, liberam catecolaminas – a principal é a noradrenalina – que levam os músculos dos canais do aparelho genital a se contraírem, ocasionando a ejaculação. Simultaneamente, as catecolaminas causam constrição dos vasos sanguíneos do pênis e o órgão se torna flácido.
Em um primeiro trabalho, publicado em 2011 na revista The Journal of Sexual Medicine, De Nucci constatou que o mecanismo que produzia a ereção na cascavel era semelhante ao de humanos e outros mamíferos, dependente do NO.
A diferença surgiu nos experimentos que avaliaram a contração da musculatura dos vasos. Nos mamíferos, a perda da ereção era disparada pela liberação de catecolaminas por fibras do sistema nervoso simpático, que induzem os músculos a se contraírem e expulsar o sangue do pênis. Na cascavel, não.
Na serpente, o estímulo para a contração da musculatura dos vasos – e a consequente flacidez peniana – não vinha do sistema nervoso simpático, constataram os pesquisadores ao tratar o tecido com tetrodotoxina, um composto extraído do peixe baiacu. Nos mamíferos, a tetrodotoxina bloqueia a ação dos nervos e os impede de liberar catecolaminas, o que, nessa situação, manteria o pênis rijo. Na cascavel, porém, a contração dos vasos ocorria, causando a perda da ereção, mesmo com os nervos bloqueados, como mostrou o grupo em 2017 em um artigo na PLOS ONE. Era uma indicação de que a ordem para a contração vascular vinha de outro lugar.

Modulada por catecolaminas, a contração de ductos do aparelho genital provoca a ejaculaçãoTabulae anatomicae / Bartolomeo Eustachio
Usando anticorpos, os pesquisadores localizaram no endotélio do corpo cavernoso da cascavel, o cilindro de tecido erétil no interior do pênis, a enzima responsável por produzir um precursor da dopamina, catecolamina que também causa contração muscular. “A capacidade de contração desapareceu quando repetimos os experimentos depois de remover o endotélio do corpo cavernoso”, contou De Nucci, que também é professor da Universidade de São Paulo (USP), no almoço de 2024.
O mesmo efeito foi observado nos testes com o corpo cavernoso e a artéria aorta da cobra-do-milho (Pantherophis guttatus), da jararaca (Bothrops sp.) e do jabuti-piranga (Chelonoidis carbonaria). A capacidade de contrair a musculatura vascular desaparecia com a remoção do endotélio e a eliminação da dopamina.
Àquela altura, os pesquisadores pensavam que a síntese de dopamina pelo endotélio fosse uma peculiaridade dos répteis. Eles haviam procurado a enzima tirosina hidroxilase, que gera o precursor da dopamina, no corpo cavernoso dos saguis, mas não a tinham encontrado – ela estava só nos nervos simpáticos –, embora, anos antes, pesquisadores da Itália tivessem registrado a produção de catecolaminas por células do endotélio da aorta bovina cultivadas sob condições especiais.
O cenário começou a mudar com a chegada do farmacologista José Britto Júnior ao grupo. Na entrevista para o doutorado, em 2018, ele propôs: “Por que não estudar os vasos do cordão umbilical humano? É um tecido sem inervação e fácil de obter, descartado após o parto”.
Já nos primeiros testes, os pesquisadores viram que a dopamina estava no endotélio da artéria e da veia do cordão umbilical e que ela desaparecia quando essa camada de células era removida. Eles notaram ainda que o poder dessa catecolamina de induzir a contração da musculatura dos vasos aumentava quando, mesmo com o revestimento íntegro, bloqueavam a síntese de NO.
O resultado, publicado em 2020 na Pharmacology Research & Perspectives, levou à nova alteração de rumo. Em uma reunião do grupo, o farmacologista Edson Antunes, da Unicamp, apresentou a dúvida: “Se o endotélio produz NO e dopamina, será que não se combinam?”.
Não se sabia, embora fosse possível. Mais de 20 anos antes, um grupo da Universidade Federico II, na Itália, havia misturado em laboratório catecolaminas e NO e obtido um composto derivado, que se imaginava ser tóxico. Na mesma época, pesquisadores da Universidade Keio, no Japão, identificaram no cérebro de ratos uma forma de noradrenalina que incorporava o NO, a 6-nitronoradrenalina.
De Nucci foi atrás de indústrias químicas que sintetizassem esse tipo de material e encontrou uma no Canadá. Importou amostras de 6-nitrodopamina (6-ND), uma combinação de dopamina e NO, que Britto e outros integrantes da equipe usaram para calibrar o espectrômetro de massas, aparelho que separa e quantifica moléculas a partir de sua massa atômica, e testar os compostos extraídos do endotélio dos vasos umbilicais.

Vista em detalhe em outra prancha de Tabulae anatomicae, interior das câmaras do coração produz compostos que controlam o ritmo e a força de bombeamento do sangueTabulae anatomicae / Bartolomeo Eustachio
Bingo. A 6-nitrodopamina estava lá, como revelou o grupo em 2021 em um artigo na Life Sciences. Mais, a concentração de 6-ND diminuía quando os pesquisadores bloqueavam a síntese de NO, indicando que ele participava da rota bioquímica que a produz – mais tarde o grupo veria que essa é a via principal, responsável por 60% a 70% da 6-ND liberada pelo endotélio, e que há outra.
“A ideia de que as catecolaminas também são liberadas pelos vasos é atraente porque o endotélio está em contato com o sangue e bem situado para sentir a sinalização metabólica e mudanças de tensão da circulação”, afirmou a Pesquisa FAPESP o biólogo e fisiologista Tobias Wang, da Universidade Aarhus, na Dinamarca, colaborador recente da equipe da Unicamp. “Como essa proposta é provocativa, ainda é vista com ceticismo.”
Nos testes de contração e relaxamento dos vasos, Britto Júnior observou que o efeito da 6-ND se contrapunha ao da dopamina: enquanto esta promovia contração, aquela bloqueava. Aparentemente, nos vasos, ambas competem para se conectar a um mesmo receptor, o D2, que dispara a ação de contração da dopamina. Quando a 6-ND se liga ali, esse efeito é bloqueado.
“É possível ainda que a 6-nitrodopamina se ligue no mesmo receptor que a dopamina, mas em um local diferente, o que permitiria explicar a potencialização dos efeitos da dopamina em algumas situações”, propõe a biomédica e farmacologista Regina Markus, da USP, que não participou dos estudos.
Após esse achado, o grupo de Campinas passou a medir o nível da 6-nitrodopamina e a caracterizar sua ação em outros vasos e órgãos de répteis e mamíferos. Testes com veias e artérias confirmaram o poder da 6-ND de atenuar a contração disparada pela dopamina. Experimentos com ratos anestesiados mostraram também que ela é produzida no interior das câmaras do coração (átrios e ventrículos) em maior quantidade do que as catecolaminas clássicas. A 6-ND também se mostrou de 100 a 10 mil vezes mais potente do que elas.
No átrio, responsável pelo ritmo cardíaco, ela aumenta a frequência de contração. Já no ventrículo, a força de bombeamento do sangue. Seu efeito também é bem mais prolongado: dura até 1h, enquanto o das outras, usadas em emergências para tratar parada cardíaca, desaparece em minutos. “A 6-nitrodopamina”, conta Britto Júnior, “também potencializa o efeito das outras catecolaminas, o que, em princípio, poderia permitir usá-las em doses mais baixas que as atuais”.
Para De Nucci, os resultados mostram como os vasos sanguíneos e o coração são capazes de se autorregular. Caso ocorra de fato, esse efeito ajudaria a explicar por que quem passa por transplante de coração e pulmão consegue manter o ritmo cardíaco e a pressão arterial semelhante aos das pessoas saudáveis – no transplante, a inervação desses órgãos é eliminada.
“Minha impressão é que os efeitos vasculares da 6-nitrodopamina podem influenciar a autorregulação do fluxo sanguíneo em nível local e regional, atuando nos capilares, vasos sem inervação”, comenta o fisiologista cardiovascular Ruy Campos Júnior, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que investiga o papel da hipertensão nas doenças renais e não participou dos estudos. “O desafio é ir além dos experimentos e entender o papel dela no controle do coração em condições fisiológicas”, afirma.
“Os resultados indicam, de fato, que essas nitrocatecolaminas existem na parede vascular e podem desempenhar algum papel, mas ainda não permitem saber qual o peso delas no controle do relaxamento dos vasos in vivo”, avalia o cardiologista Francisco Laurindo, do Instituto do Coração (InCor) da USP, especialista no funcionamento do sistema vascular.
A 6-nitrodopamina também parece exercer um efeito importante no aparelho geniturinário. Ela é produzida no canal deferente, que transporta os espermatozoides dos testículos para a uretra, e na vesícula seminal, produtora do sêmen. Nessas estruturas, a 6-ND provoca as contrações necessárias para a ejaculação. Já no corpo cavernoso, é um potente relaxador dos vasos. “Estamos mostrando um novo mecanismo pelo qual o óxido nítrico causa vasodilatação. Além de relaxar diretamente os vasos, ele, por meio da 6-nitrodopamina, inibe o efeito vasoconstritor da dopamina”, afirma Britto Júnior, hoje pesquisador no King’s College London, no Reino Unido. Britto e a equipe de Campinas agora investigam o efeito de outra catecolamina achada por eles em mamíferos: a 6-cianocatecolamina, que contém cianeto, grupo altamente tóxico.
Projetos
1. Identificação e caracterização farmacológica, eletrofisiológica e morfológica de novo canal de sódio TTX-resistente acoplado à musculatura lisa de corpo cavernoso de cobra (nº 11/11828-4); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Gilberto De Nucci (Unicamp); Investimento R$ 2.247.830,77.
2. Modulação da guanilato ciclase solúvel e dos níveis intracelulares de nucleotídeos cíclicos em órgãos do trato urinário inferior e próstata (nº 17/15175-1); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Edson Antunes (Unicamp); Investimento R$ 4.687.065,45.
3. Avaliação do papel fisiopatológico das catecolaminas endoteliais (nº 19/16805-4); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Gilberto De Nucci (Unicamp); Investimento R$ 7.786.325,74.
4. Avaliação das ações da 6-Nitrodopamina sobre a função renal e geniturinária (nº 23/01376-6); Modalidade Auxílio à Pesquisa ‒ Regular; Pesquisador responsável Roberto Zatz (USP); Investimento R$ 187.275,98.
Artigos científicos
BRITTO-JUNIOR, J. et al. 6-cyanodopamine as an endogenous modulator of heart chronotropism and inotropism. Life Sciences. 19 fev. 2025.
CAPEL, R. O. et al. Role of a novel tetrodotoxin-resistant sodium channel in the nitrergic relaxation of corpus cavernosum from the South American rattlesnake Crotalus durissus terrificus. The Journal of Sexual Medicine. 1º jun. 2011.
CAMPOS, R. et al. Tetrodotoxin-insensitive electrical field stimulation-induced contractions on Crotalus durissus terrificus corpus cavernosum. PLOS ONE. 24 ago. 2017.
CAMPOS, R. et al. Electrical field stimulation-induced contractions on Pantherophis guttatus corpora cavernosa and aortae. PLOS ONE. 19 abr. 2018.
SORRIENTO, D. et al. Endothelial cells are able to synthesize and release catecholamines both in vitro and in vivo. Hypertension. 2012.
BRITTO-JUNIOR, J. et al. Endothelium-derived dopamine modulates EFS-induced contractions of human umbilical vessels. Pharmacology Research & Perspectives. 22 jun. 2020.
BRITTO-JUNIOR, J. et al. 6-nitrodopamine is released by human umbilical cord vessels and modulates vascular reactivity. Life Sciences. 1º jul. 2021.
BRITTO-JUNIOR, J. et al. GKT137831 and hydrogen peroxide increase the release of 6-nitrodopamine from the human umbilical artery, rat-isolated right atrium, and rat-isolated vas deferens. Frontiers in Pharmacology. 5 abr. 2024.
BRITTO-JUNIOR, J. et al. 6-nitrodopamine is an endogenous modulator of rat heart chronotropism. Life Sciences. 15 out. 2022.
BRITTO-JUNIOR, J. et al. 6-nitrodopamine is a major endogenous modulator of human vas deferens contractility. Andrology. 7 ago. 2022.
BRITTO-JUNIOR, J. et al. 6-nitrodopamine is the potent endogenous positive inotropic agent in the isolated rat heart. Life. 4 out. 2023.
LIMA, A. T. et al. 6-nitrodopamine is an endogenous mediator of the rabbit corpus cavernosum relaxation. Andrology. 19 dez. 2023.
BRITTO-JUNIOR, J. et al. Epithelium-derived 6-nitrodopamine modulates noradrenaline-induced contractions in human seminal vesicles. Life Sciences. 1º jul. 2024.
JÚNIOR, G. Q. et al. Measurement of 6-cyanodopamine, 6-nitrodopa, 6-nitrodopamine and 6-nitroadrenaline by LC-MS/MS in Krebs-Henseleit solution. Assessment of basal release from rabbit isolated right atrium and ventricles. Biomedical Chromatography. 10 jul. 2023.
DAL POZZO, C. F. S. et al. Basal release of 6‑cyanodopamine from rat isolated vas deferens and its role on the tissue contractility. European Journal of Physiology. 4 jul. 2024.