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Boas práticas

“Vejo casos demais em que nada acontece”

Criador do blog Retraction Watch, o jornalista Ivan Oransky conta como o combate à má conduta científica evoluiu nos últimos anos

Elizabeth Solaka Oransky criou um banco de dados que se tornou referência em pesquisas sobre integridade científicaElizabeth Solaka

O jornalista norte-americano Ivan Oransky já tinha vários anos de carreira quando decidiu, com o colega Adam Marcus, também especializado em saúde, lançar um blog sobre um tema quase obscuro: as retratações de artigos científicos. A publicação de resultados é uma parte fundamental da ciência moderna: milhões de papers são publicados anualmente no mundo e, às vezes, esses documentos contêm erros. Para retificá-los, existem recursos como erratas e, em casos extremos, um artigo pode ser retratado, isto é, a revista que o publicou anuncia que os resultados nele descritos são cientificamente inexistentes. Uma parcela das retratações se deve à má conduta científica, como plágio, fabricação ou falsificação de dados.

Assim nasceu o blog Retraction Watch, hoje no radar de publicações acadêmicas e jornalísticas, cientistas e pessoas interessadas em questões relacionadas às boas práticas científicas, que alcança 150 mil visitantes únicos por mês. No primeiro post, em agosto de 2010, Oransky e Marcus justificaram a empreitada. Apesar de a ciência ter importantes mecanismos de autocorreção, eles diziam, esse processo pode ser muito demorado. Citaram como exemplo os 12 anos entre a publicação do notório paper de Andrew Wakefield, que ligava autismo a vacinas, e sua retratação pela The Lancet, seis anos depois que suspeitas importantes sobre o trabalho haviam sido trazidas a público por um jornalista. Em segundo lugar, argumentaram que, exceto em casos como o de Wakefield, o espectro das retratações permanece obscuro, daí a ideia de formar um repositório informal, que evoluiu para um banco de dados, hoje com 19,5 mil retratações. Em terceiro lugar, serviria como fonte para jornalistas interessados em reportar fraudes e o mau uso de recursos, além ajudar pessoas preocupadas em corrigir condutas inadequadas na ciência. Por último, a dupla queria saber como as revistas tratavam essa questão: quanto tempo esperavam antes de publicar uma retratação, se periódicos com poucas retratações tinham uma revisão por pares de melhor qualidade ou se os erros eram escondidos.

Oransky, 46 anos, graduou-se em biologia na Universidade Harvard em 1994, onde entrou para o jornalismo pelo The Harvard Crimson, que editou. Também se formou em medicina na Universidade de Nova York, em 1998, na qual dá aulas de jornalismo. Com uma carreira de editor em veículos como Reuters Health, Scientific American e The Scientist, hoje é vice-presidente e diretor editorial da Medscape, organização que oferece notícias e treinamento na internet para médicos e profissionais da saúde. Frequentemente viaja para falar de seu trabalho – já esteve no Brasil quatro vezes, nas reuniões do Brispe (Brazilian Meeting on Research Integrity, Science Publication Ethics). Em Lausanne, na Suíça, para participar de um debate sobre como reportar fraudes científicas, na 11ª Conferência Mundial de Jornalistas Científicos, ele conversou com Pesquisa FAPESP sobre seu trabalho.

Como foi a reação no início do Retraction Watch? Houve resistência?
Teve gente desconfiada, mas sempre contatamos os autores dos artigos científicos, desde o primeiro dia. Nem sempre querem falar conosco, mas nós os procuramos, assim como as instituições, quando isso é apropriado. O problema não era o nosso método, mas mais o foco em más notícias. Não sei se as pessoas mudaram ou se nós mudamos. Se olharmos os grandes casos, como o de Stapel [Diederick Stapel, professor de psicologia social da Universidade de Tilburg, na Holanda, teve 58 artigos retratados por manipulação de dados], ou, voltando um pouco, o de Hwang [o veterinário sul-coreano Hwang Woo-suk publicou dois artigos fraudulentos na revista Science, em 2004 e 2005, sobre clonagem de embriões humanos], vemos que acontece em todos os países. As pessoas notam que esses casos, apesar de raros, não são incrivelmente raros, então se acostumaram a falar disso. Mesmo a editora Elsevier, que não foi tratada favoravelmente em nossas reportagens, depois de um tempo declarou que o Retraction Watch era bom para a ciência. Há uma percepção de que não falar no assunto faz as pessoas confiarem menos na ciência. Se há disposição de dizer que essas coisas acontecem e providências estão sendo tomadas para que não se repitam, isso deveria aumentar a confiança.

Isso implica que as instituições façam algo a respeito da má conduta. A sua percepção é de que isso melhorou?
Sim, no caso de algumas retratações, o que é bom. Algumas universidades estão sendo mais transparentes e soltando relatórios das investigações – mas muitas ainda não. Estão sob mais pressão por conta de canais como o PubPeer [site que permite a usuários discutir e revisar artigos científicos] e nós. Hoje há jornais importantes, revistas, rádio e TV tratando desses assuntos. É mais difícil para as universidades não fazerem nada, pois alguém vai notar. Um ponto interessante para mim é que, em alguns desses casos, as evidências de má conduta eram claras e ninguém questionava. Todos tratavam como algo menor, até haver algum acontecimento externo que expusesse o problema. Veja Anil Potti, da Universidade Duke, um caso grande [médico indiano que teve 11 artigos retratados e seis corrigidos por má conduta em pesquisa sobre tratamentos contra câncer; a universidade foi acusada de desprezar evidências de manipulação de dados em uma investigação realizada em 2010]. Todos ignoraram os indícios de má conduta até que um repórter da revista Cancer Letter recebeu a documentação de uma proposta de auxílio à pesquisa no qual Potti mentiu que havia sido um Rhodes Scholar [bolsista de programa internacional da Universidade de Oxford, no Reino Unido] e pensou que talvez ele estivesse mentindo também sobre outras coisas. Daí o novelo se desfez. Gostaria que isso não fosse necessário,  que fosse suficiente tratar de problemas com a pesquisa, mas frequentemente não é o bastante.

Qual é a real extensão do problema?
Vejo casos demais em que nada acontece. Há milhares de comentários no PubPeer sobre problemas encontrados em artigos. Há correspondências entre as revistas e as instituições, em que as instituições pedem retratações e as revistas não fazem nada ou demoram dois ou três anos para agir. Não conseguimos cobrir nem uma fração, ninguém consegue. Sem publicidade, sem pressão do público, nada acontece.

A retratação diz mais respeito aos pesquisadores e às revistas, mas e o papel das instituições que deveriam estar coibindo esses comportamentos?
Começamos a trabalhar com C. K. Gunsalus, professora da Universidade de Illinois, para analisar os relatórios das investigações institucionais. Muitos são terríveis: não fazem as perguntas que deveriam, não respondem adequadamente às questões, não têm as pessoas certas nos comitês. Publicamos no ano passado no JAMA [The Journal of the American Medical Association] um checklist sobre como investigar alegações de má conduta. Muita gente começou a usar nosso checklist para avaliar os relatórios e a usar nossa base de dados, isso é muito gratificante.

Como vocês se tornaram um banco de dados, além de um site de jornalismo?
Éramos bem conhecidos no ramo da saúde, então imediatamente começamos a produzir artigos de interesse para outros veículos, que passaram a nos entrevistar uma semana depois de lançarmos o site. Nos tornamos fonte – foi uma estratégia muito eficaz, não intencional. Isso foi na mesma época do caso Stapel. Havia muito interesse. Demos sorte. O nosso legado é o banco de dados. Só tivemos a ideia depois de quatro anos. Mantínhamos listas imensas de retratações para cobrir, mas não estávamos dando conta. No início, eram cinco, seis dúzias de retratações por ano, agora são 1.400. Quando aceitamos a ideia de que não conseguiríamos cobrir tudo, ficou muito mais fácil porque passamos a focar no que considerávamos importante.

Em alguns casos, as evidências de má conduta eram claras e ninguém questionava. Todos tratavam como algo menor

Como alimentam o banco de dados? Usam inteligência artificial?
Não, é tudo manual. Temos uma pesquisadora, atualmente apenas em meio período, que fez uma tese de doutorado sobre retratação. Ela sabe mais disso do que eu. Tem de ser assim, manual, porque as editoras são muito ruins nisso.

É intencional?
Dou a eles o benefício da dúvida. Eu aviso os problemas que vejo: às vezes corrigem, às vezes pioram, ou ignoram. Muitas retratações não estão corretamente identificadas. As editoras poderiam fazer isso muito facilmente, mas aparentemente não querem ou não é uma prioridade. Então tem que ser feito à mão. Se um algoritmo capturasse a maior parte dos casos, não precisaríamos do banco de dados. Dois anos atrás um programador disse que faria uma captura de casos para nós. Algum tempo depois ele disse ter descoberto algo fascinante: a revista Annals of Surgery teria mais retratações do que qualquer outra. Não batia com o que víamos, então pedi para ver os dados. Em cirurgias, faz-se uma retração dos tecidos [em inglês, retraction, mesma palavra para retratação], então nessa revista de cirurgia havia uma grande incidência de papers com “retraction” no título. O trabalho não é simples, teria que refinar muito a busca. Queríamos que o banco de dados cobrisse tudo, que não tivesse que ser à mão, até porque temos outras coisas para fazer.

Vocês organizam e oferecem o banco de dados de retratações, fazem reportagens sobre esses temas e ainda uma curadoria sobre o que outros veículos estão publicando. Vocês procuram um equilíbrio?
Tem que ter um equilíbrio. Por isso temos o banco de dados, fizemos a checklist, criamos um prêmio [DiRT Award – dirt significa sujeira, ao mesmo tempo é acrônimo para Doing the right thing, fazendo a coisa certa], geralmente concedido a cientistas honestos que retrataram artigos por erro involuntário ou por fraudes cometidas por terceiros em seus trabalhos, erros que eles quiseram corrigir. Queremos incentivar as pessoas a agirem corretamente.

Nesses quase 10 anos, o que mudou no mundo da má conduta?
Em 2010, uma retratação era suficiente para render uma reportagem. Em 2014, já tinha que ser um número grande de retratações, ou uma tendência, como revisão por pares fake. Hoje em dia, é um acordo entre as partes de US$ 112 milhões. É fácil ver o aumento das retratações e achar que a má conduta está aumentando. Acontece que as pessoas estão olhando mais para isso. A incidência de autismo vem subindo substancialmente nos Estados Unidos e no mundo: pode estar aumentando, mas claramente isso também ocorre porque as pessoas estão prestando mais atenção nessa questão. Mudou a definição.

Como vocês organizam seu trabalho?
Já recebemos financiamento, o que nos permitia ter uma equipe, fazer mais reportagens. Hoje, somos Adam, Alison Abritis, nossa pesquisadora em regime de meio período, e eu. Adam faz boa parte dos textos, fizemos essa divisão. Eu faço a newsletter todos os dias. Amo, não parece trabalho, mas toma muito tempo e há algum estresse envolvido. A busca por financiamento é cansativa. Hoje estamos sem tempo. Eu tenho um novo trabalho, no Medscape. Mas, de alguma maneira, o Retraction Watch se tornou a minha identidade.

Para onde o Retraction Watch quer ir agora?
O objetivo é a sustentabilidade. Adam e eu podemos continuar a fazer isso de graça. Foi assim que começamos, por algum tempo recebemos alguma remuneração, mas estamos de volta ao voluntariado. Há outros custos, não muitos: o site, o banco de dados – cuja aparência é de 1988, mas mesmo assim precisa de manutenção, às vezes, novas funções –, uma remuneração para nossa pesquisadora. Quero chegar a um ponto em que não precisemos procurar financiamento. É a meta de toda organização sem fins lucrativos. Acho que estamos fazendo algo valioso, então continuar a fazê-lo seria muito bom. Gostaria de expandir, ter mais repórteres, entrar mais nas questões legais, que têm um potencial enorme de crescimento, advogados estão cada vez mais envolvidos nessa área. Gostaríamos de fazer uma newsletter, um website para eles. Seria poderoso. O importante é que seja sustentável. Se alguém assumisse, eu já estaria feliz. O que quero é que esse trabalho continue.

O site da revista Pesquisa FAPESP traz uma versão ampliada desta entrevista.

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