Pesquisa desenvolvida em 20 cidades de diferentes países latino-americanos constatou a emergência, nos últimos 15 anos, de um novo agente que se tornou central para desestabilizar a segurança da região: grupos armados que desempenham atividades ilegais, como narcotráfico ou contrabando. “Até a década de 1990, prevaleciam os conflitos entre os Estados. Hoje esses atores não estatais representam os principais geradores de violência na região, em uma situação que alguns pesquisadores denominam como ‘nova guerra’”, afirma o cientista político Rafael Antônio Duarte Villa, do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e coordenador da investigação.
Villa menciona estudo de 2017 do Banco Mundial, que indica que a região da América Latina e Caribe é, atualmente, a mais violenta do mundo, com 24,7 homicídios por 100 mil habitantes. “Em várias nações latino-americanas, a violência social aumentou para níveis de guerra. Das 50 principais cidades mais violentas do mundo, 42 se localizam na área”, informa. Villa destaca que em meados dos anos 1980 a emergência da economia do narcotráfico e a formação de cartéis de drogas ocorreram inicialmente em cidades da Colômbia e do México. “Porém, nas décadas seguintes, essa modalidade de comércio de drogas se generalizou”, diz.
Responsáveis por movimentar uma parcela significativa da economia ilegal, esses atores envolvem contrabandistas e narcotraficantes, entre eles os cartéis mexicanos; grupos paramilitares na Nicarágua e Venezuela; as Bacrim, ou gangues criminosas, na Colômbia; e facções como o Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Comando da Capital (PCC), no Brasil. “Eles também provocaram a geração de novas formas de governança em áreas em que os Estados têm falhado em suprir necessidades elementares da sociedade, principalmente entre a população mais vulnerável, em termos de proteção física e bem-estar social”, comenta o cientista político. Com isso, algumas regiões de cidades latino-americanas passaram a ter um modelo de governança que envolve, ao mesmo tempo, organizações estatais e não estatais. Para chegar às constatações, Villa e a cientista política Camila de Macedo Braga, membro da equipe do projeto, realizaram mais de 120 entrevistas desde 2018 com funcionários e agentes públicos como policiais federais, representantes das Forças Armadas, diplomatas, prefeitos, vereadores, secretários de Segurança Pública, integrantes do Ministério Público, da sociedade civil, lideranças sociais, pesquisadores e representantes de organizações não governamentais que trabalham com mediação de conflitos ou executando políticas públicas, em países como Venezuela, Colômbia, Bolívia, Nicarágua, Paraguai, México, Brasil e Honduras.
De acordo com o cientista político, apesar de narcotráfico e contrabando serem desafios comuns às nações da região, os problemas não têm sido tratados de forma cooperativa. Mesmo com a existência de fóruns de discussão de combate ao narcotráfico e outras atividades ilegais, como o Observatório Interamericano sobre Drogas – comitê estabelecido em 2000 na Organização dos Estados Americanos (OEA) –, não há atualmente uma instituição com poder decisório ou capaz de viabilizar a elaboração e adoção de medidas transnacionais para lidar com esses desafios. “Alguns países consideram que essas são questões internas e que o desenvolvimento de estratégias transnacionais de combate pode ferir sua soberania”, diz Villa.
Por outro lado, resposta recorrente de países como Brasil, México e Colômbia tem sido o uso das Forças Armadas para atuar no combate ao narcotráfico e contrabando. “A ocupação do Rio de Janeiro em 2018 é exemplo disso”, observa o pesquisador da USP. Héctor Luis Saint-Pierre, coordenador do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais e professor do programa interinstitucional de pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas, que envolve a Universidade Estadual Paulista (Unesp), a Universidade de Campinas (Unicamp) e a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), lembra que o Consenso de Washington, estabelecido em 1989 na capital dos Estados Unidos, defendia que os estados latino-americanos empregassem suas Forças Armadas para combater as chamadas “novas ameaças” de alcance continental, entre elas o narcotráfico, por meio de ajuda militar norte-americana.
“Inicialmente, os países tiveram reações diferentes em relação a essa diretriz. Enquanto a Colômbia, por exemplo, aceitou nos anos 2000 ajuda militar dos Estados Unidos para combater a atuação de narcotraficantes, o Brasil entendia que ela representava uma ameaça”, analisa Saint-Pierre. Segundo ele, hoje esse panorama mudou e há uma tendência crescente nos países de todo o continente em mobilizar o aparato militar para missões não específicas. “No entanto, penso que mais do que a presença ostensiva da polícia nas ruas, o problema do narcotráfico deve ser resolvido por meio do desenvolvimento de mecanismos internacionais de cooperação judicial, policial e de inteligência financeira, que permitam identificar operações transnacionais de lavagem de dinheiro, por exemplo”, avalia.
Bruno AlgarveEm relação ao papel do Brasil nesse contexto regional, Oliver Stuenkel, da Escola de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV) em São Paulo, explica que o país historicamente tende a ter uma participação pequena em assuntos que envolvem a região. Até meados da década de 1990, poucos chefes de Estado brasileiros visitavam nações sul-americanas. “É um dado significativo se pensarmos nos desafios históricos envolvendo os países da região em assuntos como narcotráfico, contrabando e meio ambiente”, diz. Contrariando a tradição histórica e estudos que demonstram que Estados com peso dominante em determinada região costumam articular um projeto de liderança, o Brasil apresentou pouca capacidade de atuar como protagonista na resolução de desafios que atingem nações da área, apesar de ocupar metade do território e representar a maior economia do continente.
Stuenkel investigou essa questão em pesquisa recém-concluída. Nela, analisou documentação oficial e entrevistou, em diferentes países da América do Sul, chanceleres e ex-chanceleres, ex-presidentes, diplomatas e políticos envolvidos com a formulação de políticas de relações exteriores. De acordo com o pesquisador da FGV, na década iniciada em 1995, mesmo o Brasil estando em um momento de crescimento econômico, estabilidade política e ascensão global, sua capacidade de influenciar a região foi limitada. O cientista político identificou que o protagonismo brasileiro na resolução de conflitos aconteceu de forma pontual, como no Acordo de Paz de Brasília, assinado em 1998 por Equador e Peru para encerrar disputa territorial que se estendia por décadas. “Ao mediar a resolução do conflito por vias pacíficas, o Brasil colaborou com a abertura do diálogo entre as duas nações. O país ajudou a criar um contexto normativo que estabelecia que as regras democráticas deveriam ser respeitadas na região”, informa.
Por outro lado, Stuenkel lembra a crise diplomática de 2010 entre Colômbia e Venezuela, que rompeu relações com Bogotá, ao ser acusada de abrigar guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) em seu território. “Havia uma expectativa de que o Brasil pudesse mediar a resolução dessa situação, algo que não aconteceu. Em entrevistas que realizamos com integrantes do governo colombiano, escutamos que naquela época o país se recusou a ajudar, mesmo quando a Colômbia solicitou apoio”, informa. De acordo com Stuenkel, a diplomacia brasileira nutria a percepção de que se o país fosse incisivo e pressionasse por obter liderança regional, poderia ser visto como ameaça pelos vizinhos. “Com isso, o protagonismo brasileiro na resolução de crises foi limitado e se desenvolveu conforme o tamanho do embate, os interesses geopolíticos e o alinhamento ideológico com o governo do país em questão”, afirma.
Tais conclusões resultam da análise de documentos do Ministério das Relações Exteriores brasileiro e de outros países como Bolívia, Paraguai, Uruguai e Argentina, além das entrevistas. No decorrer deste ano, esses depoimentos estarão disponíveis no banco de dados do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Escola de Ciências Sociais da FGV. Conforme Stuenkel, Paraguai, Equador, Bolívia e Venezuela não dispõem de arquivos organizados ou não oferecem acesso fácil a documentos oficiais, tanto históricos quanto recentes. A inclusão no CPDOC tem o objetivo de permitir que outros pesquisadores ampliem seus escopos de análise para além das fontes da diplomacia brasileira.
Os estudos de Villa, Braga e Stuenkel integram conjunto recente de investigações na área das relações internacionais (RI) que procuram diversificar os objetos e as fontes de pesquisa. Até a década de 1990, as análises brasileiras na área eram produzidas por diplomatas e se concentravam no exame de decisões do Ministério de Relações Exteriores (MRE), além de questões comerciais. Com o passar dos anos e a consolidação do processo democrático, os estudos passaram a abarcar a inserção internacional do país e iniciativas de integração regional.
O primeiro curso de graduação em RI do Brasil foi criado em 1974 na Universidade de Brasília (UnB), com diplomatas constituindo boa parte do corpo docente. A partir dos anos 1990, em um momento em que multinacionais aumentavam a presença no país, novos cursos foram criados, especialmente em universidades privadas. Na mesma época foram estruturados os primeiros programas de pós-graduação. Se nos anos 1980 os estudos envolviam análises de políticas formuladas pelo Itamaraty, a criação das primeiras áreas de pós-graduação, na década seguinte, motivou a elaboração de investigações para compreender a interação entre Estados, ou seja, as dinâmicas que se estabelecem para além de fronteiras nacionais. “Nos últimos 20 anos, os estudos passaram a trabalhar, também, com as interações entre o panorama externo e as políticas domésticas, tendência que se acentuou na última década”, informa o cientista político Marcelo de Almeida Medeiros, professor de política internacional comparada na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
“As investigações em RI saíram de temas mais tradicionais envolvendo questões de segurança e defesa dos Estados e passaram a abranger temas sociais, como migrações, trabalho, tecnologia e saúde”, observa Amâncio Jorge Silva Nunes de Oliveira, do Departamento de Ciência Política da FFLCH-USP e coordenador científico do Centro de Estudos das Negociações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais (Caeni-IRI-USP). De acordo com ele, a agenda de pesquisa acompanhou o desenvolvimento da estratégia diplomática brasileira. Nesse sentido, recorda que nos anos 1980 a prática da diplomacia se baseava na defesa de modelo econômico que buscava a substituição das importações. “O país apresentava pequena inserção no cenário internacional, mas, a partir de 1990, ampliou a participação na economia mundial, o que levou a uma mudança de padrão na diplomacia. O Itamaraty passou a ter novas prioridades, buscou criar um modelo econômico regional, a integrar-se com países do Cone Sul e a ampliar a participação em organismos multilaterais, como a Organização Mundial do Comércio [OMC]”, resume Oliveira. Nos últimos cinco anos, o cientista político afirma que o panorama mudou novamente e o país deixou de considerar prioritárias as relações com o Sul global. “Houve uma mudança drástica no alinhamento com parceiros globais e, atualmente, o Brasil vem se aproximando dos Estados Unidos”, conclui.
Projetos
1. Paz estável, formação e solução de conflitos na América Latina: representação de sistemas de segurança regional (nº 17/25163-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Rafael Antonio Duarte Villa (USP); Investimento R$ 125.436,00.
2. Pax Brasiliana? Um estudo da atuação brasileira em crises constitucionais e políticas na América Latina (1990-2015) (nº 16/18075-5); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Jan Oliver Della Costa Stunkel (CPDOC-FGV); Investimento R$ 51.406,58.
Artigos científicos
VILLA, R. D. et al. Hybrid Security Governance in South America: An Empirical Assessment. Latin America Politics and Society. v.61, p. 73-94, jan. 2019.
VILLA, R. D. et al. Violent non-state actors and the emergence of hybrid governance in South America. Latin American Research Review (LARR). No prelo.
FELDMANN, A. E. et al. Argentina, Brazil and Chile and democracy defence in Latin America: principled calculation. International Affairs. V. 95, n. 2, p. 447-467. mar. 2019.