Um primata bem conhecido, adotado inclusive como animal de estimação em muitas regiões do Brasil, o macaco-prego pode estar entre os responsáveis pela transmissão do vírus da raiva. É o que sugere um estudo publicado na revista Virus Research. Nele, um grupo de pesquisadores brasileiros e japoneses relata ter identificado uma possível nova variante do vírus em um macaco-prego no município de Marcelândia, no estado de Mato Grosso. Esta é a primeira vez que o vírus da raiva é detectado nesse primata. Até então, os pesquisadores haviam identificado uma variante do vírus circulando em saguis (Callitrix jacchus), que passaram, a partir daí, a ser considerados um reservatório natural da doença. Entre os anos de 1991 e 1998, os saguis-de-tufo-branco (Callitrix jacchus jacchus) causaram oito mortes de seres humanos no Ceará.
O aparecimento de casos de raiva transmitida por esses macacos revela certas particularidades do perfil epidemiológico de uma doença bastante difícil de se controlar. Por ter o RNA como material genético, e não o DNA, o vírus da raiva é muito suscetível a mutações. Assim surgem as novas variantes, que continuam a circular por meio de animais silvestres, sobretudo morcegos. A variante encontrada no macaco-prego — identificada como BRmk1358 — é resultado de mais uma dessas mutações.
A suspeita dos pesquisadores de que o animal poderia estar infectado surgiu quando empregados da fazenda onde ele foi abatido disseram que o macaco tinha mordido um cavalo, um comportamento agressivo muitas vezes causado pela doença. Durante o período de incubação, o vírus se multiplica nas fibras musculares locais, atingindo em seguida as células nervosas e os nervos periféricos, até chegar ao cérebro. A essa altura, a febre aumenta e o animal torna-se agressivo.
Os pesquisadores colheram amostras do cérebro do animal e as encaminharam para análise em laboratório, onde confirmaram que ele estava infectado. Em seguida, o material genético da amostra foi sequenciado e comparado com o de vírus encontrados em saguis e outros animais das Américas, cujas sequências estão em um banco de dados público.
O grupo verificou que a variante representava uma linhagem distinta da encontrada em saguis, mas com características genéticas semelhantes às encontradas em morcegos, provavelmente a fonte da infecção. “Isso nos permite sugerir que o vírus pode ter sido transmitido ao macaco-prego por um morcego, indicando que o ciclo de transmissão é diferente daquele dos saguis, que pode ocorrer sem a participação de morcegos”, explica a médica veterinária Adolorata Aparecida Bianco Carvalho, da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus Jaboticabal, e uma das autoras do artigo. Os morcegos são considerados uns dos principais reservatórios silvestres do vírus da raiva no Brasil. “Como o macaco-prego, além de frutas, folhas de plantas e invertebrados, também se alimenta de pequenos vertebrados, é possível que ele tenha sido exposto ao contato com algum morcego infectado”, diz a pesquisadora.
Apesar de até hoje não haver registros de transmissão de raiva para humanos por macacos-prego, a médica veterinária alerta para os riscos do contato com esse animal e destaca a importância da vacinação em caso de mordidas de macacos e outros animais silvestres. “Nosso estudo mostrou que o macaco-prego pode ser um potencial transmissor de raiva para o ser humano”, diz. “Existem casos de contato acidental entre as duas espécies, sem registros de transmissão do vírus. De qualquer forma, é importante identificar o ciclo infecioso da raiva em macacos para o controle da doença.” Como apenas uma amostra foi analisada no estudo, ainda não é possível saber se a descoberta se aplica a todos os macacos-prego. Pela localização geográfica, o animal encontrado em Marcelândia provavelmente era da espécie Sapajus libidinosus, conforme alterações recentes na classificação.
Pesquisas sobre a raiva em animais silvestres têm se tornado cada vez mais necessárias. Enquanto a variante do vírus que circula entre cães — por muito tempo a grande responsável pela raiva humana — está erradicada em muitos países e controlada na maioria dos estados brasileiros, a relacionada aos morcegos e outros animais silvestres continua circulando, principalmente em ambientes rurais. “O ciclo silvestre da raiva, que mantém o vírus na natureza, é o grande problema”, conta Adolorata. “Países como Estados Unidos e Canadá estão investindo milhões em pesquisas e na vacinação de animais silvestres. No Brasil, os estudos estão no início. Mas acredito que estamos longe de poder destinar recursos suficientes para o controle do vírus em animais silvestres, já que o controle da raiva canina ainda demanda grandes investimentos em alguns estados.”
O estudo é fruto de um convênio entre a Faculdade de Medicina Veterinária da USP e a Universidade Nihon, no Japão, voltado ao desenvolvimento de um projeto de caracterização genética de amostras de vírus da raiva isoladas no Brasil.
Artigo científico
KOBAYASHI, Y. et al. Isolation of a phylogenetically distinct rabies virus from a tufted capuchin monkey (Cebus apella) in Brazil. Virus Research. v. 178, n. 2, p. 535-38. dez 2013.