Duas semanas antes do Natal do ano passado, como uma recompensa ao esforço incessante do grupo de pesquisa que coordena, Antonio Carlos Martins de Camargo – um médico de formação que enveredou pela pesquisa em bioquímica e há oito anos instalou-se no Instituto Butantan – assinou um contrato de parceria com a indústria farmacêutica multinacional Merck Sharp&Dohme.
O acordo de apenas duas páginas estabelece um objetivo comum para as equipes do Butantan e da empresa com sede em Essex, Inglaterra: desenvolver medicamentos a partir de uma proteína que representa uma das ramificações de um trabalho iniciado ainda nos anos 40 por um dos maiores cientistas brasileiros, Maurício Rocha e Silva. O que nasceu discreto logo se mostrou promissor e, nos últimos anos, essencial, à medida que sucessivos artigos científicos assinados por pesquisadores não só no Brasil, mas também nos Estados Unidos, na Europa e no Japão, comprovaram o papel crucial dessa proteína na regulação de uma série de funções, da transmissão da dor à formação do cérebro durante a gestação.
Ainda não há previsão de que medicamentos possam surgir, nem quando, mas a perspectiva de trabalho conjunto abre um capítulo novo de uma história que nasceu no final dos 60, como desdobramento das descobertas de Rocha e Silva, e está longe de acabar. Em um dos próximos episódios deve se desenrolar um embate com figurões da ciência mundial em busca do reconhecimento da autoria da descoberta da proteína à qual Camargo dedicou quase metade de sua vida.
Se possível este mês, o pesquisador do Butantan pretende demonstrar, de uma vez por todas, que a proteína que ele próprio descobriu e chamou de endooligopeptidase A ou endoA – apresentada em dois artigos, um publicado em 1969 na Biochemical Pharmacology e outro, dois anos depois, no Journal of Neurochemistry – é a mesma que os norte-americanos, alemães e japoneses redescobriram em 2000 e batizaram de Nudel, nuclear distributing-like protein, descrevendo sua atividade na formação do córtex cerebral em artigos independentes publicados em dezembro daquele ano na Neuron. “Não basta sermos e parecermos honestos, como a mulher de César”, diz ele. “Nós, brasileiros, temos de provar nossa honestidade a todo momento.”
Mas Camargo aprendeu a esperar, como demonstra o acordo com a indústria farmacêutica, articulado com o mesmo senso diplomático que, aliado ao empenho ao trabalho, lhe permitiu ser contratado na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) no final dos anos 60, transferir-se para o Instituto de Ciências Biomédicas da USP em São Paulo, em 1984, formar um núcleo de pesquisas no Butantan e tornar-se o coordenador do Centro de Toxinologia Aplicada (CAT), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) que compõe um programa especial da FAPESP.
“Só aceitamos a proposta da Merck depois que a patente da proteína estava depositada”, diz. “Não podemos ter pressa, para não perdermos tudo o que já fizemos.” E não é pouco o que já se conseguiu. O estudo das propriedades dessa proteína permitiu a formação de quase 30 mestres e doutores, além de representar uma das mais antigas linhas de pesquisa apoiadas de modo contínuo pela FAPESP. O primeiro projeto financiado em nome de Camargo, sem contar os anteriores, assinado por seus orientadores, data de 1970. Seguiram-se outros 45 projetos apoiados na forma de auxílios à pesquisa, à infra-estrutura de laboratório, a viagens ao exterior ou por meio de bolsas para os alunos.
Aos 66 anos, o médico nascido em São Carlos faz parte de uma geração de pesquisadores que se mostram engajados em seus próprios problemas científicos, sem esperar reconhecimento imediato. “É difícil resistir à tentação das novas tecnologias, que dão resultados rápidos, mas não podemos descuidar da ciência de fato, que é demorada”, diz o discípulo de Rocha e Silva. Os cientistas dessa linhagem, hoje na casa dos 60, 70 ou mesmo 80 anos, adotam o estilo Darwin de fazer ciência: valorizam a formulação de hipóteses que possam explicar o que foi verificado e a busca de evidências que sustentem ou derrubem a hipótese inicial. Tempos atrás, porém, havia um sério risco de o estilo darwiniano ser confundido até mesmo com arrogância. “Eu estava tão envolvido com um programa de pesquisa que não me preocupava com o que as outras pessoas achavam”, reconhece. “Não queria agradar, mas explorar as minhas idéias e fazer um bom trabalho, que, cedo ou tarde, eu sabia, teria importância.”
Em 1962, quando pisou pela primeira vez num laboratório, Camargo cursava o segundo ano de Medicina. Teve de fazer partos e auxiliar cirurgias, mas queria mesmo era fazer pesquisa. Consciente de sua real vocação, bateu à porta de um assistente de Rocha e Silva, Sérgio Steiner Cardoso, que lhe deu a chance de participar de um estudo sobre o controle da regeneração dos tecidos do corpo humano. Camargo trabalhou nessa linha até 1966, quando entrou na pista da proteína que chamou a atenção da Merck. Era então ele próprio um assistente de Maurício Rocha e Silva, conhecido por ser tão brilhante quanto espontâneo, a ponto de não medir as palavras ao se dirigir aos colegas.
Rocha e Silva convenceu-o em segundos a esquecer a regeneração dos tecidos e participar da busca dos mecanismos de funcionamento da bradicinina, molécula reguladora da pressão arterial descoberta em 1948 pelo próprio Rocha e Silva e por Wilson Beraldo (a bradicinina reduz a pressão na circulação sangüínea e a eleva no sistema nervoso central). Naquele momento, a prioridade era identificar um grupo de proteínas especiais, as enzimas, responsáveis pelo efeito passageiro da bradicinina. Aplicada no cérebro de um coelho, a bradicinina deixava o animal com hipertensão, inquieto e ofegante por um ou dois minutos. Depois, o coelho ficava em catatonia, estirado sobre a mesa, incapaz de se mover.
As evidências sugeriam a existência de enzimas capazes de inativar a bradicinina – se contidas, poderiam permitir que a bradicinina agisse por mais tempo. Mesmo hoje não seria muito fácil provar essa idéia, já que as proteínas se misturam e agem sozinhas ou em conjunto quando ativam ou desativam outras proteínas. Camargo pediu emprestado um dos peptídeos (fragmentos de proteínas) que outro assistente de Rocha e Silva, Sérgio Henrique Ferreira, ainda hoje na Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão, acabava de descobrir no veneno de jararaca. Conhecida como fator potencializador da bradicinina (BPF), essa molécula bloqueia a ação da enzima que destrói a bradicinina. Anos depois, em um dos mais notáveis resultados desse grupo de pesquisa, o BPF inspirou a criação do captopril, um dos anti-hipertensivos mais vendidos no mundo, que rende cerca de US$ 5 bilhões por ano para o laboratório norte-americano Bristol-Myers Squibb, que desde 1977 detém a patente da versão sintética desse peptídeo.
A recusa
Uma das enzimas que anulam a ação da bradicinina era a endoA, como se veria mais tarde. Naquele momento, viu-se apenas que o peptídeo de Ferreira deixava o coelho com hipertensão, inquieto e ofegante por até uma hora. Mas ainda faltava descobrir qual enzima cortava – ou degradava – a bradicinina. Foram-se anos até a equipe de Camargo purificar a endoA, às vezes correndo o risco de morrer eletrocutado. “Vinte anos atrás, um dos meios de separar peptídeos era utilizar a eletroforese de alta voltagem, aplicando uma tensão elétrica de 3.000 volts em uma folha de papel com as proteínas”, conta ele, sem saudade nenhuma desses métodos, que tomavam de quatro a cinco horas de trabalho. Hoje é possível separar peptídeos em minutos, sem perigo de choques imprevistos.
Mesmo conhecendo as dificuldades que teria de superar, Camargo evita os caminhos fáceis. Em 1972, ele terminava o pós-doutorado com Lewis Greene no Laboratório Nacional de Brookhaven, em Nova York, quando reencontrou Sérgio Cardoso, o mesmo que lhe havia aberto as portas do mundo da ciência. Cardoso, que havia se transferido para os Estados Unidos, deu-lhe outra chance: seguir com ele, como seu braço direito, na tarefa de montar um laboratório de proteínas na Universidade do Tennessee. Seu ex-aluno receberia um salário cinco vezes maior do que no Brasil, além de ganhar uma casa pronta para instalar a mulher e os três filhos pequenos. Camargo disse não. Preferiu voltar, decidido a criar um centro de proteínas no Brasil.
Ele deixou Brookhaven sem esquecer um comentário que tivera de engolir semanas após ter chegado, dois anos antes, em 1970. Desembrulhava alguns pacotes de equipamentos quando uma técnica comentou para Greene, o chefe do laboratório: “Esse é o trabalho que um médico latino-americano pode fazer nos Estados Unidos”. Meses depois, em Ribeirão, formou uma equipe que aceitou o desafio de montar os equipamentos em vez de comprar tudo pronto. Não apenas pela economia, que de eles fato conseguiram, reduzindo os custos à metade, mas também por que queriam descobrir como funcionava e como consertar especialmente o analisador de proteínas, o aparelho mais importante de todos. Foi um desafio só vencido com a ajuda de dois técnicos de Brookhaven, Nicholas Alonso e Rosalyn Shapanka, que já haviam participado dos estudos iniciais da endoA – ambos aparecem como co-autores dos primeiros artigos de caracterização da proteína.
Se há um conselho que Camargo oferece de bom grado à sua equipe é: não ter medo de perseguir suas próprias idéias. “Nunca acreditei que o papel biológico da endoA fosse destruir a bradicinina”, confessa. Com o tempo, seu grupo demonstrou que havia, na verdade, uma família de proteínas semelhantes – e assim surgiu a endoB, alguns anos depois da endoA. As duas bastaram para alimentar a suspeita de que teriam uma ação mais ampla, atuando na formação ou destruição de outras proteínas e na regulação não apenas da dor e pressão arterial, como se pensou no início, mas também no controle hormonal, crescimento celular, interação entre células nervosas ou equilíbrio de água no organismo, conforme se verificou, ao longo dos anos, à medida que essas moléculas passaram a ser estudadas no mundo inteiro.
A endoA e a endoB fazem parte de um grupo de enzimas chamadas oligopepetidases, que destroem apenas peptídeos e não proteínas inteiras, como é comum. Camargo propôs esse conceito em 1976 na Biochemistry e no Journal of Biological Chemistry, ao descrever a endoB, mas, de imediato, ninguém lhe deu atenção. O reconhecimento chegou 19 anos depois, quando o polonês Vilmos Fulop, da Universidade de Warwick, na Inglaterra, citou seus estudos ao relatar a cristalização da endoB na revista Cell. Em outro artigo polêmico, publicado em 1996 no Biochemical Journal, Camargo demonstrou que a proteína isolada em testículo de rato por uma equipe da Faculdade de Medicina de Mont Sinai, Estados Unidos, não era a mesma que ele havia extraído de cérebro de coelho, já com a suspeita de que a mesma molécula poderia ter mais de uma função no organismo.
A herança
Hoje, quem se dedica de corpo e alma às proteínas é Miriam Hayashi, que Camargo conheceu em Tóquio em 1990. Formada em Farmácia, ela trabalhava em pesquisa em drogas anticâncer na filial japonesa da Roche. Depois de um ano por lá, já pensava em voltar ao Brasil. No Butantan desde 1993, ela lida com a endoA e a endoB por meio da biologia molecular, complementando o que havia sido feito antes.
Foi Miriam quem seqüenciou a endoA, formada por 345 unidades – ou aminoácidos. Foi ela também quem atestou a importância dessa proteína, por meio de um experimento feito com embrião de rã africana (Xenopus laevis). Em quatro das oito células do embrião – as que vão formar o lado direito ou esquerdo, enquanto as outras quatro vão formar o lado oposto do corpo –, ela aplicou uma dose alta do gene que induz a produção dessa proteína. Houve deformação do olho e do cérebro dos girinos, mas apenas no lado em que a proteína apareceu em excesso, indicando que qualquer desequilíbrio em sua quantidade pode ser prejudicial.
Eram evidências importantes, mas chegavam acompanhadas de uma decepção. Tão logo concluiu o experimento, no final de 2000, Miriam leu na Neuron um artigo de pesquisadores norte-americanos que ficavam com o mérito da descoberta por terem publicado primeiro os mesmos resultados a que ela havia chegado meses antes. Não foi o bastante, porém, para tirar-lhe o fôlego. Além do objeto de estudo, ela parece ter herdado de Camargo o gosto de apostar em seus próprios caminhos.
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