Até ser preso pela ditadura em 1970, Jacob Gorender tinha um perfil profissional fácil de definir: dirigente comunista. Solto dois anos depois, cansado dos 30 anos de lutas incessantes dentro do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), Gorender abraçou de vez sua vocação intelectual. Tornou-se um misto de escritor com historiador, embora jamais tenha terminado a graduação em direito. “Estamos homenageando um intelectual formado e amadurecido fora dos muros de toda e qualquer instituição acadêmica. Caso raríssimo de autodidatismo bem logrado tão mais digno de respeito e admiração por ter sofrido tantos reveses”, disse o professor Alfredo Bosi na reunião da Congregação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), no dia 20 de junho, ao analisar a trajetória do pensador marxista, morto em 12 de junho aos 90 anos, em São Paulo.
Jacob Gorender (1923-2013) nasceu em Salvador, o mais velho dos cinco filhos de um casal de judeus imigrantes pobres – o pai, Nathan, veio da Ucrânia, e a mãe, Anna, da Bessarábia. Aos 17 anos ele já estava trabalhando no jornal soteropolitano O Imparcial como arquivista, depois como repórter e redator. Foi o primeiro de muitos outros jornais nos quais escreveu, boa parte deles ligada ao PCB. Em 1941 começou o curso na Faculdade de Direito de Salvador e no ano seguinte foi recrutado pelo amigo Mário Alves para entrar no partido. Aos 20 anos se alistou para lutar na Segunda Guerra Mundial e por sete meses combateu em Apeninos e Monte Castelo, na Itália.
Na volta ao Brasil mergulhou de vez na militância. Largou a faculdade, foi para o Rio de Janeiro e se tornou “revolucionário profissional”, como dizia, dedicado às atividades do partido. Entre 1955 e 1957 esteve em Moscou fazendo o curso de formação de quadros. Durante sua estada na Rússia houve o congresso do PC em que surgiram as denúncias sobre os crimes de Stalin e a violenta repressão soviética às reformas da Hungria. Durante o curso conheceu sua futura mulher, Idealina.
Com a renúncia de Jânio Quadros e a posse de João Goulart em 1961, a direção do partido, liderada por Luís Carlos Prestes, adotou uma posição conciliadora e colaboracionista com o governo. A ala mais à esquerda, na qual estavam Gorender, Alves, Apolônio de Carvalho e Carlos Marighella, entre outros, criticava os “desvios de direita” da direção e pregava o aprofundamento da luta social e autonomia diante do governo de Goulart. Em 1964 veio o golpe, que ocorreu sem nenhuma resistência. A cisão entre os comunistas cresceu e a oposição à esquerda perdeu a disputa para o grupo prestista em 1966. Um ano depois foi expulsa do partido sem direito de defesa durante o sexto congresso do PCB.
Em 1968, Gorender fundou o PCBR com Alves e Apolônio, mas acabou preso e torturado no Presídio Tiradentes, em São Paulo, em 1970. Na cadeia era o mais velho da cela, com 47 anos, cercado por jovens. Decidiu então dar um curso de história do Brasil e fazer palestras sobre questões políticas.
Livros
Na prisão, Gorender fez também traduções de obras do francês e do alemão que eram contrabandeadas para fora do presídio por sua mulher e levadas à antiga Abril Cultural, que as publicava. “Logo após sair da cadeia ele continuou fazendo traduções para a editora e minha mãe servia como testa de ferro”, conta a filha Ethel, médica pediatra. Nos anos 1970 e 1980 teve participação importante na série Os Pensadores e coordenou Os Economistas, coleções de livros vendidos em banca com grande sucesso. “Além das traduções, Gorender escreveu duas apresentações notáveis para traduções de livros de Marx: em Para a crítica da economia política e outros textos e outra em O capital, ambas de 1982”, diz Marcelo Ridenti, professor e pesquisador de sociologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Em 1978, Gorender publicou O escravismo colonial (Ática, 1978; Perseu Abramo, 2011), no qual estudou a formação colonial do país. “Havia uma linha tradicional dentro do PCB, defendida por Nelson Werneck Sodré, para quem o Brasil tinha um passado feudal, representado pelo latifúndio, com uma economia voltada para dentro do país”, explica Bosi. O país seria apenas um fornecedor de produtos naturais (açúcar, café), o que teria atrasado sua industrialização. A outra tese foi formulada por Caio Prado Júnior, também comunista, e dizia que a produção era toda voltada para a venda no mercado externo. Ou seja, o capitalismo já estaria presente aqui desde o início do século XVI.
“Em seu livro, ele abre uma terceira via, que seria mais adequada ao Brasil, Caribe e mesmo ao sul dos Estados Unidos”, diz Bosi. Para Gorender, o sistema não poderia ser chamado de feudal porque era fornecedor e vendedor de produtos. E não poderia ser considerado capitalista porque não era operado por trabalhadores livres. “Sua tese era de que havia um modo próprio de produção escravista dentro da Colônia, o que representou um ganho teórico para a questão”, diz Bosi. A produção dos escravos era vendida, mas não havia contrato social. Para surpresa do autor e da editora, o livro provocou grande polêmica e tornou-se um sucesso entre o público acadêmico. Foi Bosi, então conselheiro da editora Ática, quem recomendou a publicação do livro.
Seu segundo livro importante foi Combate nas trevas (Ática, 1987, esgotado). Para Marcelo Ridenti, é o trabalho mais completo sobre o tema até hoje: “Ele uniu seus talentos: o de historiador, de memorialista e de jornalista”. Segundo o jornalista Alípio Freire, um dos jovens que assistiam às aulas de Gorender na prisão, a obra foi precursora no esforço de entender o período da “atomização da esquerda no pós-1964”, especialmente na época da luta armada, de um modo não fragmentado.
O pensador marxista escreveu outros seis livros e ganhou o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal da Bahia, em 1994, aos 71 anos. De 1994 a 1996 foi professor visitante no Instituto de Estudos Avançados da USP e na FFLCH. Dentro ou fora da universidade, o velho pensador marxista teve sua obra reconhecida.
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