Imprimir PDF Republicar

Angelita Habr-Gama

Angelita Habr-Gama: Vitória em campo minado

A cirurgiã Angelita Habr-Gama, pioneira em muitas frentes, fala sobre o desenvolvimento e os avanços da coloproctologia no Brasil

MIGUEL BOYAYANA médica Angelita Habr-Gama tem três traços de personalidade comuns em profissionais de sucesso: perseverança, grande capacidade de trabalho e um otimismo contagiante. Juntar a essas qualidades um enorme talento na sua especialidade, a cirurgia do aparelho digestivo, é o suficiente para descolar Angelita do rol de pessoas bem-sucedidas e colocá-la num patamar superior, entre as que criam e fazem escola. Para chegar a tanto foi preciso alguma ousadia: ela foi a primeira mulher residente em cirurgia geral do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), em 1958, numa época em que esse era um reduto exclusivo dos homens. Esse pioneirismo foi só o primeiro de muitos. Ela também foi a primeira mulher a estagiar nessa especialidade médica no conservador e tradicional Saint Mark’s Hospital, da Inglaterra, em 1961, a primeira professora titular em cirurgia do Departamento de Gastroenterologia (FMUSP) e a responsável por tornar a coloproctologia uma disciplina própria, em 1995, em vez de deixá-la como uma subespecialização das cirurgias do aparelho digestivo.

Angelita aprimorou técnicas cirúrgicas e foi importante na estruturação, desenvolvimento e avanço da coloproctologia no Brasil. Foi ela, por exemplo, quem organizou o primeiro curso prático e teórico de colonoscopia, o exame do interior do cólon. Não descuida da clínica que tem com o marido, o cirurgião Joaquim José Gama Rodrigues, professor titular em cirurgia da FMUSP, com quem está casada desde 1964. Também mantém um pé na pesquisa. É participante de primeira hora dos projetos Genoma – seu laboratório trabalhou no seqüenciamento da bactéria Xylella fastidiosa e ela continua atuando no do Genoma Humano do Câncer. Nos últimos anos tem dado ênfase especial à prevenção do câncer de intestino. Criou até uma organização para isso, a Associação Brasileira de Prevenção do Câncer de Intestino, que promove eventos no Brasil inteiro.

Filha de imigrantes libaneses, nascida na Ilha de Marajó, no Pará, a cirurgiã recebeu em abril deste ano sua mais recente honraria em Zurique, na Suíça. Foi a primeira especialista latino-americana e a primeira mulher a ganhar o título de membro honorário da Associação Européia de Cirurgia pela carreira médica, prêmio só dado até hoje a 17 médicos no mundo. Angelita atribui boa parte da repercussão de seu trabalho à condição feminina. “Ainda hoje causa estranheza uma mulher ser tão bem-sucedida em uma especialidade dominada por homens”, diz ela.

O que a levou a escolher a cirurgia numa época em que tão poucas mulheres faziam o curso de medicina e praticamente nenhuma optava por essa especialidade?
Rodei por vários setores da ciência médica e minha idéia inicial era chegar à clínica. Comecei a fazer o rodízio do internato da Faculdade de Medicina, onde os alunos passam por várias especialidades. É importante ver tipos diferentes de doenças, de doentes, de médicos e de professores. O aluno vai sentindo qual é sua verdadeira vocação dentro da medicina. Tudo o influencia porque até o quinto ano ele não sabe exatamente o que quer fazer, se pediatria, dermatologia, ortopedia. Quando tinha aula de técnica cirúrgica eu não me interessava muito. Achava que nunca iria fazer cirurgia porque naquela época isso não era especialidade para mulher. Era clínica ou ginecologia, no máximo. Naquele tempo era permitido aos alunos estagiar na Casa Maternal de São Paulo. Fui para lá como acadêmica e comecei na obstetrícia. Mas entrei na sala de operação e me deram agulha para fechar uma parede abdominal. Naquele momento senti que o ato de operar era natural para mim.

Simples assim?
Foi. Senti imediatamente que eu poderia me desenvolver naquilo porque tenho um espírito prático, combativo. Os resultados dos tratamentos daquela época eram meio precários. Na cardiologia os medicamentos que existiam na época eram poucos, principalmente a digitoxina. Os doentes cardiopatas evoluíam mal, viviam com falta de ar. Na gastroclínica as doenças eram de longa duração, não se resolviam facilmente. Tenho temperamento de cirurgião, que gosta de tratar e ver o resultado. Você vê um doente mal, opera e ele, em geral, fica ótimo. É fantástico.

A senhora nasceu na Ilha de Marajó, no Pará, e veio para São Paulo aos 7 anos. Foi difícil conseguir chegar à FMUSP?
Eu tinha estudado alguma coisa lá, mas não sabia quase nada. Em São Paulo cursei apenas escolas públicas, que eram excepcionais naquele tempo. Quando fazia o científico [um dos cursos do período, em paralelo ao clássico, atual ensino médio], eu estava sem rumo. Sabia que tinha facilidade para estudar e que minha vocação seria na área biológica. Terminei influenciada pelo meu grupo de voleibol. Coincidentemente, aquelas pessoas queriam fazer medicina porque tinham médico na família. Eu não conhecia médicos, meus pais eram imigrantes libaneses com posses limitadas. Eu era um pé-rapado na vida. Mas isso não foi problema porque sou otimista. Cirurgião precisa ser otimista. Nunca digo para um doente que ele vai mal, que está mal. Acho que vai dar tudo certo. Faço todo o possível para dar certo e sempre acredito que vai dar.

Às vezes, não dá.
Realmente, às vezes não dá. A gente convive com uma realidade, muitas vezes penosa, em que o médico precisa ser otimista.

Imagino que esse seu espírito tenha contribuído para a senhora enfrentar algumas adversidades dentro da universidade.
Muito. Quando entrei na faculdade tinha apenas mais uma colega que se especializou em cirurgia plástica, mas foi para o interior e não tive mais notícias dela. Na faculdade e depois, já como cirurgiã, eu tinha um empuxo danado, trabalhava violentamente. Para demonstrar que tinha capacidade de vencer como cirurgiã sempre trabalhei mais do que a média dos que trabalhavam bem. Eu me mantenho entre os melhores do meu setor porque continuo trabalhando muito. Não foi fácil aqui no Brasil e foi ainda mais difícil no exterior. Na Inglaterra, o Saint Mark’s Hospital levou dois anos para me aceitar, em 1961. Eles diziam para mim que aquilo era um hospital de homens. Mas consegui convencê-los e fui a primeira mulher a estagiar lá. Eles não estavam acostumados, eu iria quebrar toda a rotina do Saint Mark’s. Lembro muito bem, na hora do almoço, sentavam todos os assistentes e o mais velho era quem servia a mesa. Eles me chamavam de “big mother”, ou seja, faz de conta que é a mãe e nos sirva. O hospital era muito famoso e muito convencional. De repente eu, mulher, cirurgiã, chegava lá e não tinha nem vestiário para trocar a roupa. Aliás, isso também ocorria no Brasil.

E como fazia?
Usava o vestiário das enfermeiras. Elas passaram logo a me aceitar, viraram minhas amigas e clientes. Aos poucos, consegui reverter a situação. Os doentes me viam e perguntavam “cadê o médico?”. Anos depois, quando ia às reuniões do Colégio Americano de Cirurgiões, ou na Europa, era a única mulher. Hoje não, está cheio.

A senhora ocupa postos de liderança há muitos anos. Sempre houve médicas e pesquisadoras de excelente nível que têm dificuldades em alcançar cargos de direção. Há perspectiva de mudança?
Aos poucos essa situação vem mudando. Na Faculdade de Medicina há várias titulares. A de moléstias infecciosas, de reumatologia, de endocrinologia. É algo recente, talvez de cinco ou dez anos para cá. Aquele era um mundo masculino, na Congregação da Faculdade não tinha mulher. Fui a primeira chefe de Departamento na Gastroenterologia, antes de ser titular, e a primeira titular em carreira cirúrgica. É preciso dizer que a faculdade sempre teve também um outro problema: existe uma concorrência enorme para ser titular, quando deveria ter número maior de vagas para titulares. No meu discurso de posse na Congregação pleiteei que o título de professor titular deveria ser aberto. O professor associado que está produzindo, fazendo escola, ensinando, deveria ter direito de concorrer à vaga de titular e não esperar alguém se aposentar ou morrer. Chegar ao final da carreira é fato ainda excepcional, não importa a boa qualidade dos docentes. Fiz o doutorado em 1966, a livre-docência em 1972 e virei titular em 1998. Você vê o gap? E já tinha prestígio, todo mundo sabia que eu tinha condições de ser professora titular. Mas não abria vaga. Deveria ser possível chegar ao final por méritos e não esperar eternamente por vagas.

Há possibilidade de isso vir a acontecer?
Acho que sim, porque já há alguns departamentos com um maior número de vagas para titulares. É uma tendência da universidade, em países como o nosso, para facilitar a progressão da carreira. Não confunda com vulgarizar a carreira. Deve-se permitir que os que têm valor alcancem o final da carreira. O meu sucesso, na vida profissional, bem como nas sociedades as quais pertenço, não é porque eu sou titular, mas porque trabalhei a vida inteira. Ensinei muitos residentes, alunos de pós-graduação, estagiários da América Latina inteira. Muitos dos médicos que ajudaram a mudar a coloproctologia na América Latina estagiaram comigo. Também pesquiso e escrevo trabalhos científicos. Nos últimos anos, talvez eu tenha adquirido um prestígio maior à custa de um trabalho pioneiro que comecei em 1991, sobre câncer de reto.

Do que se trata?
Dediquei muito da minha vida profissional ao câncer de reto. Minha tese de 1972, de livre-docente, já foi sobre uma técnica de conservação do ânus para câncer de reto. Naquela época era raro fazer esse tipo de operação. Eu achava que muitos doentes que tinham esse tipo de câncer não precisavam fazer a colostomia definitiva, após a retirada de todo o reto, ânus e esfincteres. Evito ao máximo a colostomia.

Por que o trabalho com esse tipo de câncer foi pioneiro?
Um cirurgião americano, Norman D. Nigro, introduziu em 1974 o conceito de que câncer de ânus pode ser tratado, de início, com um programa combinado de rádio e quimioterapia. Em uma boa parte dos casos o tumor desaparece e não é preciso operar. Pensei: se é possível curar o câncer de ânus, por que não o de reto baixo? Começamos a tratar o doente com radioquimioterapia antes da cirurgia. E diferentemente do que fazem outros cirurgiões, passei a não operar de imediato quando o tumor desaparecia. Outros médicos, europeus, sul e norte-americanos indicam sempre a cirurgia após o tratamento, mesmo quando há regressão total do tumor. Eu não. Tenho casuística [registros minuciosos de casos clínicos] que inclui 360 doentes com câncer de reto baixo. O reto tem 15 centímetros. Quando o câncer é no reto alto, não é preciso, em geral, fazer radioquimioterapia. Operamos de imediato. Agora, quando o câncer é bem perto do esfíncter, para curar o doente, se não fizer radioquimioterapia, tem de amputar o reto e os esfincteres e fazer a colostomia definitiva. Quando se faz radioquimioterapia, em cerca de  25% a 30% das vezes o tumor desaparece.

Sem operar?
Sem operar. No caso de câncer de ânus, 70% desaparece; de reto baixo, 30%. Operei alguns desses doentes com regressão completa e na peça cirúrgica não tinha tumor. Aí decidi: não vou mais operar doente se não tiver tumor. Como saber se o tumor desapareceu? Examinamos com toque e endoscopia na avaliação feita oito semanas depois do tratamento e fazemos uma tomografia. Como o doente também não quer amputar o reto, criamos uma parceria: o paciente e eu. Sigo esses doentes muito de perto. Eles voltam sempre para consulta porque sabem que só opero quando permanece lesão residual após o tratamento. Deixo claro que o tumor pode voltar e até piorar. Aviso: “Se voltar, teremos que operar”. De um grupo de 360 doentes, estou com 99 doentes que não operei e estou seguindo. Claro que já tive várias recidivas, os doentes foram operados e alguns fizeram colostomia. Nos 260 doentes em que o tumor não desapareceu, mas diminuiu muito depois da radioquimioterapia, muitas vezes em vez de amputar o reto, fazemos uma cirurgia de conservação esfincteriana protegendo a sutura com uma estomia [abertura feita cirurgicamente no abdome] temporária. Quando comecei a apresentar nossos trabalhos, a partir de 1991, tive dificuldades na sua aceitação.

Por quê?
Havia muita resistência por parte dos médicos, que achavam que não operar de imediato não era ético porque o tumor poderia voltar. Eu argumentava o seguinte: o que é ético para o doente? Seria operar quem clinicamente não tinha mais tumor, fazer uma colostomia definitiva e na peça cirúrgica que foi removida não encontrar tumor? Nossa equipe conversa claramente com o doente e diz: “Amigo, hoje o tumor desapareceu, mas a qualquer momento pode voltar. Se isso não acontecer, ficamos satisfeitos e você também. Mas, se voltar, teremos de operar”. Já operamos vários por causa de recidiva, mas na grande maioria o tumor não voltou. Agora, nossos trabalhos sobre esta estratégia de tratamento têm sido publicados em boas revistas. Em países como os Estados Unidos é diferente, os cirurgiões não têm o mesmo tipo de relacionamento com os doentes como aqui. Além disso, os processos médicos são muito freqüentes.

Essa foi uma contribuição importante para sua área?
Foi, a meu ver, uma boa contribuição demonstrar que alguns doentes com câncer de reto baixo com indicação inicial para fazer colostomia podem ser poupados de uma operação quando submetidos à radioquimioterapia. Não todos, uma minoria. Mas não importa. O doente que não foi operado ganhou muito com isso. Continuamos com as pesquisas nessa área. Mais recentemente temos aumentado a dose da radioquimioterapia e obtido maior número de resposta completa, isto é, a regressão do tumor.

Onde esse trabalho é feito?
No Hospital das Clínicas. Hoje a radioquimioterapia para câncer do reto baixo é consenso. Nossa conduta, de não operar, é que não é aceita em consenso nem mesmo no Brasil. É reservada para centros de pesquisa.  Porque, claro, se não houver disponibilidade de serviço especializado de radioquimioterapia e se o médico responsável pelo tratamento não seguir o doente com rigor poderá ser um grande problema.

A senhora trabalha também no sentido de reconstruir o esfincter, não é?
Sempre fui entusiasta da conservação da função esfincteriana. Minha tese de docência foi sobre isto. Já utilizei todas as técnicas descritas e melhorei algumas delas. Mas é raro fazer alguma coisa realmente nova. Quanto à incontinência fecal, há pessoas com defeitos congênitos, outras que têm seqüelas do parto ou de traumatismos etc. Nós conduzimos no HC uma pesquisa sobre implante de um esfíncter artificial. É um sistema simples: consiste em uma fita que envolve o canal anal e de um receptor no escroto ou no interior da vagina, e de uma bomba implantada na região pubiana. O conjunto funciona como um sistema de tubos comunicantes e o próprio indivíduo manipula quando precisa ir ao banheiro.

Do que é feito esse material?
De silicone. Mas é caro e só conseguimos fazer a pesquisa porque houve apoio da FAPESP. Custa atualmente cerca de US$ 7 mil. Há também outra técnica para restaurar incontinência, que é a neuroestimulação. É um sistema como um marca-passo. Para quem tem incontinência sem lesão grave esfincteriana funciona muito bem. Implantamos dois no HC porque a firma que produz a sutura nos forneceu. Já no exterior a experiência está se acumulando. A FAPESP é grande patrocinadora de nossas pesquisas.

A senhora participou do Projeto Genoma Humano do Câncer?
Participo do projeto genoma desde o primeiro deles, o da bactéria Xylella fastidiosa. Entrei junto com o José Eduardo Krieger, da cardiologia. Posteriormente a FAPESP iniciou o Projeto Genoma Humano do Câncer, do qual também participamos conjuntamente com os demais grupos da Gastroenterologia do HC-FMUSP. Temos coletado material de 450 peças de tumor no intestino. Acho que não há ninguém que tenha esse material no mundo. Aguardamos continuidade do patrocínio da FAPESP para avaliação dos genes.

Qual o peso da genética no tumor de intestino?
Muito grande. Hoje nós sabemos que, primeiro, todo câncer tem uma origem genética, mas o câncer de cólon tem uma influência genética importantíssima. Desde 1976, pertenço a um grupo de prevenção de câncer que atua nos Estados Unidos. Isso me entusiasmou a trabalhar aqui no Brasil. Nosso grupo criou, em maio de 2004, em parceria com diversas associações que lidam com câncer digestivo, a Associação Brasileira de Prevenção do Câncer de Intestino, a Abrapreci. Redigimos o material educativo para distribuição e construímos um modelo reproduzindo o intestino, de 30 metros. No interior da peça estão representadas patologias como hemorróidas, pólipos, divertículos e câncer. Expusemos o intestino gigante durante um congresso internacional no Recife e diversos colegas americanos e europeus responsáveis por programas de prevenção de câncer estiveram presentes e visitaram o intestino gigante. Eles gostaram tanto que pediram para a associação levar a Montreal, no Canadá, durante o congresso mundial de gastroenterologia, no ano passado. Durante um mês a peça circulou por várias cidades canadenses.

Quem bolou isso?
Eu tinha visto um modelo pequeno, nos Estados Unidos. E, aqui, já tinha gente jovem com excelentes idéias. Fizemos o primeiro modelo e depois um segundo, maior, de 30 metros, desmontável, para facilitar o transporte. Já foram levados para o Rio de Janeiro, Maceió, Goiânia, Belo Horizonte, Vitória, São José dos Campos, São Bernardo do Campo e Fortaleza. Essa ação de conscientização é importante porque, se há um câncer cuja prevenção deve ser enfatizada, este é o câncer de intestino.

Por quê?
Nos demais tipos de câncer, na mama, no pulmão, no pâncreas, por exemplo, quando se faz campanha de prevenção, na realidade o que se faz é o diagnóstico precoce. No caso da campanha contra o câncer de mama, por exemplo, quando se faz a mamografia, pode-se detectar um tumor. Se for pequenino, dá para tratar bem. No câncer de intestino, quando se faz uma colonoscopia preventiva e se encontra um pólipo, basta tirá-lo para prevenir o câncer. Diferentemente de câncer de mama ou de pulmão, sabe-se que o de intestino começa com uma pequena lesão benigna, que é o pólipo. E é tão camarada que leva 10 anos, 12 anos para crescer e virar um tumor. É altamente curável. A parte ruim da história é que a incidência de câncer de intestino aumenta no mundo inteiro.

Como saber se os pólipos existem, se não há sintomas?
Quem tem 50 anos de idade e não tiver nenhum antecedente na família deve fazer uma colonoscopia, mesmo que não tenha sintomas. Agora, se tiver na família pai, mãe, irmão, avô ou avó com câncer de intestino, deve fazer o exame aos 40 anos porque a influência, da genética é muito importante. Se tiver pólipo aos 40 anos, dá para detectar. Se fizer aos 50 anos, é muito possível que já tenha um câncer.

Por que a incidência cresce no mundo?
Se você pegar as estatísticas, o Sul do Brasil é o segundo colocado, só perdendo, no caso da mulher, para o câncer de mama. O problema é a qualidade de vida da gente. Comemos mal, com muita gordura. A maioria dos alimentos que consumimos atualmente têm de ser conservados e, para isso, exigem aditivos, conservantes e corantes. Os embutidos – salame, mortadela – causam um belo estrago. Eu comia e achava delicioso, mas não como mais. É preciso ensinar a população a se alimentar melhor e isso faz parte do programa da Abrapreci, que abrange principalmente a juventude. Quando montamos o intestino gigante no parque do Ibirapuera, em São Paulo, numerosas escolas levaram seus alunos para visitar a peça e ouvir instruções de  enfermeiros, nutricionistas e médicos.

Sabe-se que a saúde da mulher não foi tão estudada quanto a do homem, historicamente, o que ocorre em especial na área cardiológica. Isso vale para a gastroenterologia?
Não. Na nossa área as doenças são igualmente estudadas. Em operações como a do reto, por exemplo, a mortalidade no sexo feminino é menor. Quando eu disse que queria fazer cirurgia para meu estimado professor Alípio Correa Neto, ele pensou um pouco e disse: “Menina, acho que você pode fazer cirurgia sim, e vai ter muita sorte. No começo da sua carreira só vai operar mulher, os homens não vão querer ser operados por você. Mas como mulher não morre, mulher é resistente, você quase não vai ter óbito”.

Um conselho estimulante.
E muito engraçado também. Minha carreira foi logo bem-sucedida. Opero igualmente homens e mulheres. Talvez até mais homens do que mulheres.

A senhora é otimista com relação ao uso futuro das células-tronco?
Acho que esse é o caminho até chegar a ponto de fazer novos órgãos a partir de células-tronco. A tecnologia proporciona coisas incríveis, com cirurgias minimamente invasivas. Hoje já há projetos de salas de operação totalmente virtuais, como um lugar sem médicos ou enfermeiras, só o paciente com robôs que farão toda a cirurgia. Daqui a 15, 20 anos, muito do que se faz hoje será substituído por robôs. Cápsulas endoscópicas, que percorrem o tubo digestivo, por exemplo. O doente vai para casa e a cápsula percorre seu interior captando informações. Operações feitas sem abrir a barriga e outras coisas inacreditáveis. Vi coisas incríveis em um congresso de tecnologia avançada virtual, recentemente nos Estados Unidos.

A senhora não fica um pouco frustrada pela possibilidade de vir a ser substituída por máquinas?
Eu gostaria de ter nascido de novo agora, isso sim. A cada dia vemos algo diferente que achamos absurdo para, dali a pouco, ficar provado que não é absurdo. Mas às vezes penso se foi bom ter trabalhado numa época em que a cirurgia era só arte, em que fazíamos suturas pontinho por pontinho. Agora fazemos muita sutura com aparelhos por grampeamento. O que diferenciava um cirurgião do outro, basicamente, era a habilidade em fazer suturas. Hoje é a habilidade em utilizar um equipamento. O cirurgião acaba tendo que estudar bioengenharia. Vejo ainda a cirurgia como uma arte. Mas tudo muda depressa: já existe programa de computador em que são colocados os dados do doente e realizadas todas as hipóteses para chegar ao diagnóstico e até a receita. Vi um desses programas nos Estados Unidos.

Não é perigoso acreditar que o programa tomará a decisão correta?
Acho perigoso. Para quem está acostumado a ser médico de verdade é difícil aceitar. Entretanto, quando vi a primeira cirurgia laparoscópica de vesícula, alguns anos atrás, disse para outros colegas, “que absurdo, tirar a vesícula por meio de laparoscopia”. Logo depois tivemos de aprender a técnica.

Quantas cirurgias a senhora faz por semana?
Em média oito. Muitas são operações de grande porte. Há dias em que me dedico inteiramente a operar.

E consegue tempo para fazer pesquisa?
Faço com meus colaboradores que são competentes e dedicados. Mesmo aqui no meu instituto sempre há acadêmicos trabalhando.

A senhora optou por não ter filhos para investir na carreira. Como foi essa decisão?
Quando decidi pela cirurgia, diziam o seguinte na faculdade: “Para quê? Ela vai ocupar uma vaga de residente para depois abandonar e não trabalhar mais?”. Dos 80 médicos que se formavam, acho que metade queria ser cirurgião. Tinha um concurso para oito vagas. Havia esse medo de eu ganhar uma vaga, casar, ter filhos e largar a cirurgia. De fato, naquela época acontecia de a mulher se formar e largar quase tudo para cuidar da família. Hoje mulher tem filho e continua a carreira. Porque tem assistência e o marido moderno é diferente do antigo. Os meus sobrinhos cuidam dos filhos tanto quanto as mulheres. Eles trocam fralda, dão banho, levam na escola, ao médico, dão comida, sabem até cozinhar. Antigamente não era assim. Então passei no concurso em primeiro lugar e quando casei eu e meu marido concordamos em não ter filhos.

Se fosse hoje a senhora teria filhos?
Talvez. Com toda a assistência e mudança de costumes, acho que até poderia ter. Família é essencial. Tenho muitos sobrinhos, sobrinhos-netos e uma vida familiar muito boa. Meu marido é excepcional, no mesmo nível acadêmico que o meu. Senão também não teria dado certo.

Por quê?
Não há ciúme nem inveja entre nós. Ele é cirurgião do aparelho digestivo, dos melhores que tem no Brasil. Também é professor titular. Mas, como ele, há vários cirurgiões do mesmo gabarito. Como eu, do meu gabarito, da minha faixa, sendo mulher, só tinha eu. Meu trabalho alcançou muita repercussão. Trabalhei muito e minha glória parece muito maior do que dos meus pares igualmente capazes. Mas não sou melhor do que meus pares nem melhor que meu marido. O que acontece é que o meu trabalho aparece mais.

A que credita esse reconhecimento?
Muito ao fato de ser mulher. O pessoal diz: “Foi mulher quem fez esse negócio? Como é que essa mulher foi pensar nisso? Como é que ela opera tão bem?”. Eu, modéstia à parte, opero bem e tenho excelentes resultados.

A senhora nunca diz sua idade. Ela não pesa?
Quando perguntam, digo: “Não sei, é desconhecida”. Não sei mesmo. Porque o tempo passou e não senti. Posso operar o dia inteiro e ser capaz de à noite ir ao cinema, ao restaurante, a uma festa e, mesmo, dançar.

Republicar