Estou no segundo ano de doutorado no Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo [ECA-USP]. Fiz bacharelado em música e mestrado no Departamento de Artes da Universidade Estadual Paulista [Unesp], no campus de São Paulo. Desde o mestrado, pesquiso o funk – um objeto de estudo incomum na minha área acadêmica, onde geralmente predominam temas relacionados à música clássica.
O funk brasileiro, antes conhecido como funk carioca, é um gênero de música eletrônica dançante, geralmente produzido por jovens sem treino musical formal. É um fenômeno sonoro que se alimenta de ritmos de origens diversas, como a afro-brasileira, por meio do uso de sons de berimbau, ritmos do maculelê ou congo de ouro, mas também de melodias de música de concerto.
Como parte de uma linha de pesquisa chamada “Processos e procedimentos artísticos”, do Departamento de Artes da Unesp, meu mestrado teve um caráter prático e envolveu a produção de vídeos para o YouTube no meu canal, o Canal do Thiagson. A dissertação deu suporte teórico à minha produção prática. Por meio de uma linguagem acessível, nesses vídeos eu discuto a legitimidade musical do funk. Penso que a falta de um estudo profundo e sério sobre esse gênero. Sua linguagem tem levado à reprodução de preconceitos, disfarçados de crítica estética e musical.
No doutorado, procuro entender a relação dos MCs [sigla de “mestre de cerimônia” utilizada para denominar os artistas que compõem e cantam suas próprias letras e músicas] com a teoria musical e investigo como, no país, a área de musicologia se relaciona com o funk. Há muitos estudos sobre música popular que tomam como base as teorias criadas para analisar música de concerto. Mas é impossível refletir sobre o funk com as mesmas diretrizes teóricas que utilizamos para pensar o trabalho de Wolfgang Amadeus Mozart [1756-1791], por exemplo.
Como parte do doutorado, desenvolvo pesquisa de campo em favelas de São Paulo, como no Capão Redondo, em Paraisópolis e em uma ocupação nova no ABC Paulista, além de conversar com DJs, MCs e produtores. Frequento bailes e locais de produção musical. Quando a pandemia chegou, impactou minha pesquisa de campo. Vivenciei um conflito ético, porque os bailes funks seguiram acontecendo, mesmo nos primeiros momentos, quando muitos estavam assustados. Por questões éticas e epidemiológicas, decidi deixar de frequentá-los. Sinto medo de me contaminar ou de contaminar meu pai, que tem 81 anos e saúde frágil. Não moro com ele, mas faço visitas regulares e, por causa disso, preciso me preservar. Então, nos primeiros meses de pandemia, não saí de casa. Vivia de modo restrito e com medo.
Aos poucos, voltei a frequentar favelas, mas somente para acompanhar gravações musicais ou atuações em estúdio, com o propósito de conhecer os bastidores desses processos de produção. Trabalhei, por exemplo, com MC Fioti, autor da música e do clipe que viralizaram sobre a vacina no Butantan. Nessas situações, tem sido possível tomar os cuidados necessários. Todos usam máscaras e mantêm distanciamento. A vida precisa seguir e minha pesquisa se alimenta da realidade, por isso busquei maneiras de retomar meu trabalho. Sempre gostei de ambientes festivos e deixar de ir aos bailes me afetou emocionalmente. Durante a pandemia, fui morar com a minha namorada, que é advogada. Fazemos acordos para coordenar a realização das tarefas domésticas. Enquanto um cozinha, o outro organiza a roupa, por exemplo.
Por outro lado, a visibilidade do meu trabalho aumentou durante a pandemia. O canal que criei como parte da pesquisa de mestrado assim como meu perfil no Instagram ganharam novos seguidores. Muitas pessoas começaram a pedir para eu escrever mais textos explorando questões do funk. O senso comum afirma que o jovem de hoje não lê, mas vejo o contrário. O jovem lê muito, só que pelas redes sociais. Outras páginas que levam conhecimento acadêmico para as periferias, como a Funkeiros Cult, no Facebook, ou mesmo o Chavoso da USP, em seu canal do YouTube, também ampliaram seu raio de alcance. As cotas e políticas de acessibilidade estão mudando a cara da universidade brasileira e o fato de minha pesquisa sobre o funk ter sido aceita na academia é uma evidência disso.
Sou de origem muito pobre. Nasci no sertão da Bahia e nem sequer conheço Salvador. Em algumas favelas de São Paulo poucos usam máscaras. Condenar e proibir essa atitude é um gesto que não interfere na realidade, ou seja, não gera poder de ação. Campanhas midiáticas com intelectuais da área de saúde tampouco costumam causar impacto significativo porque a vida nas favelas segue outra lógica. Apesar de cada uma ter suas peculiaridades, de modo geral as favelas são lugares em que as pessoas lidam com a morte e a vida de forma diferente. A morte está presente no cotidiano pela convivência diária com situações de violência. Há um texto do filósofo Walter Benjamin [1892-1940] em que ele afirma que as condições materiais influenciam nossa relação com a vida e vejo como isso acontece nas favelas. A máscara é um elemento de proteção. Em lugares com condições materiais precárias, muitos andam de moto sem capacete ou dirigem sem cinto de segurança. Além disso, a maioria das pessoas precisa sair para trabalhar e usa transporte público lotado, arriscando-se diariamente. Não faz sentido para muitas delas a ideia de que precisam se isolar em casa. O pedido fica fora de contexto.
Quando a vacina estiver disponível para nós, a primeira coisa que pretendo fazer, depois de tomá-la, é abraçar meus pais. Desde que a pandemia começou, eu os visitei diversas vezes, mas não consigo chegar perto por medo de contaminá-los. Também espero poder voltar a frequentar festas e bailes sem medo de contrair ou disseminar o vírus. A dança faz parte da minha vida e estou cansado de dançar sozinho em casa.
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