Nos anos 1920, Oswald de Andrade ironizava a vocação paulistana de ser uma “torcida indígena a favor de um imperialismo ‘civilizador’”, antecipando que esse entusiasmo paulistano seria fonte tanto de suas grandezas como de suas mazelas. “Nos anos 1990, São Paulo já era o centro econômico nacional e reagiu mais rapidamente do que as outras regiões para abraçar e se adaptar à internacionalização da economia, a globalização”, observa a professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) Sueli Schiffer. “Por um lado, isso trouxe uma concentração crescente de atividades tecnológicas e especializadas muito avançadas, com os benefícios de investimentos massivos em infraestrutura em determinadas áreas e a criação de uma força de trabalho qualificada”, conta. “Mas essa rápida aceitação da globalização auxiliou no deslocamento da população pobre para as áreas periféricas, aumentando a já existente segregação social. Sem falar do aumento do desemprego para os menos qualificados, maior informalidade no mercado de trabalho, violência crescente e aumento das favelas”, observa a pesquisadora, coordenadora do estudo Projetos urbanos e desenvolvimento local: financiamento e gestão.
O estudo é uma continuação do projeto temático São Paulo: globalização da economia e estrutura urbana, que Sueli realizou com apoio da FAPESP (1998). Em pleno processo de globalização, a pesquisadora analisou, com notável pioneirismo, de que forma, no Brasil, se dava a relação entre a nova estrutura econômica adotada e a organização espacial. “Numa economia desigual, a estrutura espacial acaba sendo afetada e fica desigual. Houve um aumento da renda concentrada na cidade. Ao mesmo tempo, porém, se deu a expulsão de uma grande parcela da população para áreas distantes e sem estrutura apropriada de moradia, uma redefinição forçada das prioridades urbanas, o aumento da deficiência dos problemas de infraestrutura urbana, em especial no transporte e no meio ambiente, num quadro de miséria e desigualdade crescentes, geradoras de uma violência urbana séria”, observa. A “torcida indígena” acabou gerando esplendor e decadência.
“O planejamento urbano dos anos 1950 e 1960 atuava em cidades com acelerado crescimento e intensos fluxos migratórios, em sua grande maioria vindos da área rural, de população de baixa renda e qualificação. A carência de todos os tipos de infraestrutura, mesmo as básicas como água, energia, saneamento e transportes públicos, eram os desafios mais gritantes da gestão e dos planos urbanos”, explica Sueli.
Segundo a pesquisadora, o controle sobre a produção e a alteração do espaço sempre foram mecanismos usados pela elite nacional para assegurar sua dominância interna, criando áreas de segregação, algumas muito bem servidas por todo o tipo de facilidades urbanas instaladas pelo Estado e outras sem a mínima estrutura de moradia e serviços públicos. “Isso é parte da vida paulista desde o século XIX, mas a globalização elevou esse procedimento a níveis muito altos”, avalia Sueli. “Não é um espaço construído a partir de um planejamento oficial para a melhoria de vida da população, mas uma miscelânea de desenvolvimentos modernos de negócios misturados com velhas moradias, criando um fluxo de transporte confuso e a aparência geral de um ‘arranjo forçado’, apesar do alto custo do trabalho envolvido”, analisa.
Tudo em nome de se fazer parte das chamadas “cidades-globais”, embora com um status menor do que as localizadas nos países avançados. “Essas cidades-líderes de países periféricos, como São Paulo, Cingapura ou Hong Kong, realizam tarefas subordinadas nessa cadeia de acumulação internacional, locus em que o capital estrangeiro é internalizado em territórios nacionais. E como essas cidades servem para concentrar atividades econômicas para a economia global, são desconectadas da realidade da economia doméstica”, avalia. Não sem razão, em 1997 São Paulo já abrigava 96,9% das sedes dos bancos privados estrangeiros do país e 67,5% das sedes dos grupos privados internacionais, ao mesmo tempo que 19% da sua população vivia em favelas e 16% dos paulistanos estavam desempregados. “A provisão de infraestrutura realizada pelo poder público desde então tem como objetivo tão somente atender às condições mínimas de organização do espaço urbano para sustentar a produção condizente com esse padrão globalizado da sociedade brasileira”, avalia Sueli. Mesmo as concessões fiscais feitas para atrair o capital estrangeiro são tão extremadas que drenam boa parte do orçamento municipal, que fica comprometido por décadas.
“O crescimento das ‘cidades-globais’ dos países periféricos aumentou a segregação espacial e a exclusão social preexistente. Isso porque há uma exigência de uma força de trabalho mais qualificada, para dar conta das exigências ‘globais’, e a redução de oportunidades de emprego no setor industrial, em face da modernização deste setor, não é totalmente compensada por novos empregos no setor terciário”, diz a pesquisadora. Num contexto espacial em que apenas os “melhores” têm lugar, os “menos capacitados” são “convidados” a deixar a cidade e morar em regiões cada vez mais distantes, seja pelo preço elevado das moradias, seja pelo novo perfil profissional exigido, voltado apenas para exercer funções de “menor qualificação”. Assim, segundo a pesquisadora, ao se avaliar as precondições às possíveis realizações de projetos urbanos no Brasil, e em especial em São Paulo, e os fatores que induzem o desenvolvimento de projetos urbanos tão usuais em outros países, pode-se afirmar que estes projetos não parecem constituir uma possibilidade de planejamento urbano a curto prazo para o nosso país.
“Uma exclusão social crescente exige uma maior intervenção estatal, mas segundo o ideário neoliberal da globalização isso não deve ser feito. Por anos, tudo o que a cidade ganhou em benefícios foi contrabalançado por perversidades sociais resultantes dos efeitos colaterais da globalização. O desemprego crescente, a pauperização, a informalidade, a violência se transformaram, cada vez mais, em efeitos visíveis das novas formas urbanas.” Para fugir dessa realidade, partes da elite se “encastelaram” em regiões da cidade e foram criados novos “centros” que promoveram um processo de dispersão do tecido urbano. “No passado isso já se verificava, mas em outro formato, como na mudança do velho centro para a avenida Paulista. Posteriormente criaram-se os centros das avenidas Faria Lima, Carlos Berrini e Nova Faria Lima, voltados para atividades dinâmicas e internacionais. Cada novo centro envolvia um investimento municipal pesado, já que foi preciso instalar serviços de comunicação, infraestrutura e transporte, novos acessos como túneis e avenidas, perturbando o tecido urbano tradicional, tudo em grande velocidade e sem planejamento voltado para o coletivo da cidade, mas privilegiando áreas específicas”, avalia. Sobrou pouco para investir em habitação e serviço para os de menor renda.
“Com a globalização, viu-se a migração forçada para as periferias, uma concentração maior de pessoas por domicílio, a favelização, a invasão de áreas de mananciais, como as encostas da represa Billings, uma degradação dramática da qualidade de vida e uma insuficiência crescente de infraestrutura”, analisa. E hoje? “Num primeiro momento a Região Metropolitana de São Paulo parece ter melhorado. Os fluxos migratórios praticamente zeraram para São Paulo, que agora cresce em ritmo menor que o do país . Está havendo uma redução na participação relativa da parcela mais pobre e menos escolarizada da população no mercado de trabalho local. Entre 2003 e 2007 o crescimento do emprego formal foi de 4,15% ao ano e, em 2012, pela primeira vez, o número de pessoas com carteira assinada supera os 50%”, afirma o sociólogo Álvaro Comim, do Centro de Estudos da Metrópole (CEM). “A cidade está melhor em serviços sofisticados e a demanda de mão de obra, com maior escolaridade e qualificação, sugere uma metrópole ‘classe média’. Mas a inflexão da desigualdade tem um preço: os mais pobres, que não se encaixam nessas exigências, continuam a ser expulsos da cidade, porque a cidade não os comporta ou deseja”, diz.
A cidade-global fechou suas portas para os trabalhadores menos qualificados. “As indústrias tradicionais que usavam trabalhadores comuns estão indo para o interior e a cidade está apenas com a indústria que usa tecnologia. Estamos exportando problemas como favela, miséria etc. Em algumas décadas vamos olhar São Paulo como sendo uma cidade internacional, mas o nosso entorno estará degradado”, avalia o pesquisador. “Os mais ricos estão também se segregando da cidade. São Paulo, à exceção de algumas áreas particulares que abrigam atividades para eles, se transformou numa terra desconhecida e violenta e pela qual essa elite não sente nenhum tipo de ligação ou comprometimento”, lembra Sueli. Apesar dos edifícios que poderiam figurar em qualquer metrópole americana ou europeia, São Paulo, globalizada, está pondo em risco a sua posição justamente pelo seu entusiasmo em aderir à nova configuração da economia mundial em detrimento das melhorias demandadas por sua população.
“Temos que esperar transformações na sociedade brasileira para que estes fatores se revertam a favor de uma organização espacial menos excludente e desigual, em que os projetos urbanos de renovação de áreas obsoletas ou degradadas tenham papel importante na estruturação urbana e sejam compatíveis com as mudanças socioeconômicas que só aí aconteceriam”, diz.
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