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BOAS PRÁTICAS

Vulnerabilidade à flor da pele

Universidade norte-americana investiga pesquisa antiética em dermatologia realizada com presidiários nos anos 1960 e 1970 e pede desculpas

sakhorn38 / Getty Images

A Universidade da Califórnia em São Francisco (UCSF) adotou uma estratégia assertiva para lidar com casos de má conduta científica ocorridos há muito tempo, quando as normas regulando a ética na pesquisa ainda não estavam bem estabelecidas e comportamentos hoje considerados inaceitáveis eram tolerados. A instituição criou, um ano atrás, o Programa de Reconciliação Histórica, com a tarefa de investigar e reparar eventuais abusos cometidos no passado por seus cientistas.

Em dezembro, o primeiro relatório produzido pelo programa foi divulgado. Fruto do esforço de um comitê de investigação que analisou mais de 7 mil documentos ao longo de seis meses, o trabalho debruçou-se sobre experimentos questionáveis feitos com prisioneiros de um hospital penitenciário estadual em Vacaville, na Califórnia. Dois pesquisadores do Departamento de Dermatologia da UCSF, Howard Maibach e William Epstein, realizaram nas décadas de 1960 e 1970 estudos que expuseram cerca de 2,6 mil presos a pesticidas, herbicidas e a remédios com potenciais efeitos colaterais. As substâncias eram aplicadas na pele dos detentos e injetadas na veia para aferir eventuais reações no organismo humano. Em alguns testes, os voluntários ficavam expostos a caixas com mosquitos e eram picados por eles, com o objetivo de monitorar os mecanismos de atração dos insetos e das próprias picadas. A maioria dos presos estava internada no hospital penitenciário para diagnosticar ou tratar problemas psiquiátricos. A participação era voluntária e recompensada com o pagamento de US$ 30 mensais.

O relatório detectou problemas na condução das pesquisas. O principal deles foi a ausência de protocolos sobre “consentimento informado”, por meio do qual voluntários em ensaios clínicos são comunicados acerca dos riscos à saúde que estão correndo e sobre seus direitos caso surjam danos mentais ou físicos resultantes da pesquisa.

O comitê analisou 34 artigos científicos publicados de 1960 a 1980 que estão relacionados, direta ou potencialmente, a experimentos com os detentos de Vacaville e praticamente não encontrou menções a consentimento informado, embora ele tenha se tornado obrigatório a partir de 1966. Uma exceção foi um paper publicado em 1975, que destaca a aprovação do Comitê de Pesquisa Humana (CHR) da UCSF, órgão instituído um ano antes. Aparentemente, a dupla de dermatologistas conseguiu driblar as normas da universidade ao atribuir a coordenação dos experimentos apenas a uma organização sem fins lucrativos, o Instituto Solano de Pesquisa Médica e Psiquiátrica, mesmo quando eram conduzidos na UCSF. Outro agravante é que os experimentos não tinham nenhuma finalidade terapêutica. Os prisioneiros não eram portadores de doenças ou condições clínicas que pudessem ser tratadas ou aliviadas por meio das substâncias a que foram expostos. Os estudos só foram interrompidos em 1977, quando o estado da Califórnia proibiu pesquisas com cobaias humanas em suas instituições penais – um ano antes, elas já haviam sido vetadas em presídios federais.

De acordo com o relatório, antes de trabalhar na UCSF, Maibach e Epstein estagiaram na Universidade da Pensilvânia, onde receberam treinamento do dermatologista Albert Kligman [1916-2010], que entre 1951 e 1974 conduziu experimentos antiéticos com prisioneiros negros da penitenciária Holmsburg, na Filadélfia. Financiado pela Dow Química, Kligman expôs cerca de 80 homens a altas doses de dioxina, matéria-prima de herbicidas e armas químicas, para estudar os efeitos do contaminante. Em 2019, uma investigação feita pelo Penn Medicine, centro médico da universidade, concluiu que as pesquisas não transgrediram as leis da época, mas foram antiéticas e desrespeitosas com os participantes. Há dois anos, como medida de reparação histórica, recursos deixados por Kligman para um fundo da universidade foram redirecionados para bolsas e projetos sobre doenças que atingem pessoas negras (ver Pesquisa FAPESP nº 308). O pesquisador foi um dos descobridores, no final dos anos 1960, do potencial do ácido retinoico, o Retin-A, no tratamento da acne e de espinhas.

Epstein morreu em 2006 e o comitê de investigação se ateve ao trabalho de Maibach, ainda ativo. Com mais de 60 anos de carreira, ele publicou cerca de 2,5 mil artigos e foi membro do comitê editorial de mais de 30 revistas científicas. Ele foi informado do teor do relatório antes de sua publicação e divulgou um carta explicando o contexto das pesquisas e pedindo desculpas. “O que eu acreditava ser ético há 40 ou 50 anos não é considerado ético hoje”, afirmou. “O trabalho que fiz com colegas foi considerado por muitos como adequado aos padrões da época, embora esses padrões estivessem claramente em evolução. Eu obviamente não trabalharia nessas circunstâncias hoje – já que a sociedade em que vivemos considera isso inapropriado de modo inequívoco”, retratou-se. Ele ressaltou, contudo, que nenhum dano à saúde dos pacientes foi registrado na época e que, em muitos casos, houve o consentimento informado, ainda que não tenha sido mencionado nos artigos científicos.

Embora não haja evidências de que os estudos com os detentos californianos tenham tido algum viés racial, o relatório observa que a produção científica de Maibach sobre diferenças raciais da pele utilizou terminologia hoje considerada imprópria e ajudou a perpetuar uma abordagem vista atualmente como equivocada. O pesquisador também mencionou esse flanco em seu pedido de desculpas, afirmando que “chegou ao entendimento de que a raça sempre foi uma construção social e não biológica, algo não apreciado por muitos de nós em uma era anterior”.

No relatório, o comitê fez uma série de recomendações para a UCSF. Sugeriu que a universidade divulgue essas descobertas para sua comunidade, inicie um projeto de história oral com indivíduos submetidos aos experimentos em Vacaville entre 1955 e 1977, publique uma declaração oficial de desculpas e prossiga com investigações. Em resposta, o vice-reitor da UCSF, Dan Lowenstein, lançou uma declaração oficial sobre o caso de Maibach e Epstein. “A UCSF pede desculpas por seu papel explícito no dano causado a sujeitos, suas famílias e nossa comunidade ao facilitar essa pesquisa. Também reconhece o papel implícito da instituição em perpetuar o tratamento antiético de populações vulneráveis e carentes”, escreveu. De acordo com Lowenstein, o reconhecimento de danos causados no passado e o esforço para promover uma reconciliação histórica com vítimas de práticas abusivas são essenciais para promover justiça e transformação no tempo presente.

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