O que você faria se soubesse que um documento importantíssimo para sua área de estudos, sumido por muitas décadas, aparecera de repente e seria leiloado daí a poucos dias? Que existia a forte possibilidade de ser mergulhado no cofre de um colecionador ou especulador, perdendo-se outra vez no tempo e no espaço? Diante desse problema, o pianista e professor José Eduardo Martins, do Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), recorreu à FAPESP. Deu certo. Graças a uma ação extremamente rápida e decidida, a partitura original de A Noite do Castelo, a primeira ópera de Carlos Gomes, um dos mais importantes com-positores brasileiros no século 19, já está nos laboratórios do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, passando por um muito necessário processo de limpeza, e em breve estará disponível para estudos e pesquisas.
No começo da noite de 4 de maio passado, no IEB, foi realizada a cerimônia de apresentação pública da partitura manuscrita da ópera, encerrada com um recital do pianista José Eduardo Martins, quando ele executou, é claro, a abertura de A Noite do Castelo, além de outras peças brasileiras (ver comentário de Flávia Toni na página 27). Os oradores que se sucederam na cerimônia – breves todos, para não retardar a audição da música – mostraram-se entusiasmados com a reconquista da partitura, encantados com o que a aquisição representa de um momento privilegiado de convergência entre o universo da pesquisa científica e a arte, e orgulhosos da eficiência com que foi conduzido o processo de recuperação da obra.
Além disso, o reitor da USP, professor Jacques Marcovich, saudou a colaboração entre instituições – FAPESP, ECA e IEB -, de que a guarda da partitura do documento no IEB ficará como um testemunho. O pró-reitor de Cultura e Extensão, professor Adilson Avansi de Abreu, observou que as artes, além de deleite e expansão da capacidade criadora do homem, também produzem pesquisa científica. O diretor do IEB, professor Murilo Marx, situou a importância da partitura, e especialmente a da ópera, “a primeira de Carlos Gomes, e a única que escreveu em português”.
O diretor científico da FAPESP, professor José Fernando Perez, demonstrou como, ao atuar com sensibilidade para garantir que a partitura de A Noite do Castelo fosse arrematada pela ECA no leilão, a Fundação não fez mais que cumprir “seu objetivo teleológico, que é a pesquisa”. E o diretor da ECA, professor Tupã Gomes Corrêa, lembrou alguns traços biográficos fundamentais, alguns deles trágicos, de Carlos Gomes. Posteriormente, outros comentários buscaram demarcar o significado da aquisição da partitura. “O entendimento da linguagem de um manuscrito é fundamental para o entendimento da linguagem de um compositor”, afirma Martins.
“No caso de A Noite do Castelo, por ser a primeira ópera de Carlos Gomes, poderemos conhecer seus passos iniciais, os quais permitiram que ele chegasse, mais tarde, à grandeza de O Guarani “, acrescenta. Tudo isso poderia ser perdido se Martins, avisado pelo maestro Ronaldo Bologna, da Orquestra da USP, de que o documento seria posto em leilão pelo seu proprietário, João Leite Sampaio Ferraz Júnior, de São Paulo, não decidisse agir rapidamente. Ele então procurou o diretor científico da FAPESP, professor José Fernando Perez, com o problema.
“Perez sensibilizou-se com o problema e tomou as providências para a compra em menos de 24 horas”, lembra o professor. “Isso permitiu que eu fizesse uma proposta aos donos dos originais e os resgatasse por R$ 20 mil, para que fossem preservados pela universidade”, prossegue. O processo foi tão rápido que Martins elaborou o projeto à mão, na sala ao lado da diretoria da FAPESP, para ganhar tempo. “Só temos a louvar essa iniciativa da FAPESP, que reconhecemos com entusiasmo e esperanças de outras futuras aquisições desse porte”, afirma Murilo Marx, diretor do IEB da USP, também envolvido na compra. “Foi uma bela compreensão, por parte da diretoria científica da Fundação, de que, para um musicólogo, uma partitura equivale a um laboratório”, completa Flávia Toni, pesquisadora do IEB.
Conversa com idéias
A partitura está dividida em dois volumes, com 276 e 324 páginas, encadernados em couro. O trabalho está devidamente redigido e assinado pelo compositor. O objetivo do IEB é, depois de restaurar e estudar a obra, publicá-la numa edição crítica. “O maestro John Neschling, regente da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), já demonstrou interesse em fazer uma montagem da ópera, depois que o trabalho nos originais estiver mais adiantado”, prossegue a professora Toni. Ela está otimista sobre a importância do documento. “Por ele, será possível compreender seu processo criador, as etapas da criação com cortes e adendos do próprio punho, nas quais se percebe, nitidamente, um jovem compositor ainda conversando com suas idéias”, declara.
Quando completou A Noite do Castelo, Gomes, nascido em 1836 em Campinas, tinha apenas 25 anos. “A chegada da partitura, além das óbvias contribuições vitais para o trabalho musicológico, abre também um leque de opções igualmente preciosas, especialmente na deflagração de mais e novas pesquisas de edições críticas, uma prática comum no exterior, mas ainda incipiente no Brasil”, diz o professor Marx, do IEB. Ele aponta para outra vantagem: o trabalho com a obra de Carlos Gomes permitirá também um aumento nas ligações entre diferentes departamentos da USP e entre a universidade e a comunidade em geral.
O valor do achado aumenta quando se lembra que A Noite do Castelo foi fundamental na carreira de Gomes. Logo ao estrear no Rio de Janeiro, em 1861, com a presença do imperador dom Pedro II, a quem o compositor dedicou mais tarde a obra, foi um estrondoso sucesso de público e ajudou a firmar a carreira do maestro. Gomes estava na Corte há apenas um ano e, embora já fosse muito conhecido como compositor de modinhas, aspirava a vôos mais altos. Queria escrever óperas como as do italiano Giuseppe Verdi, autor de Il Trovatore, cuja partitura, ainda criança, ganhara do pai, o professor de piano, canto, órgão e violino Manuel José Gomes, o Maneco Músico da Vila de São Carlos, como então se chamava Campinas.
Projeto brasileiro
Um dos objetivos de Gomes, ao viajar para o Rio de Janeiro, era melhorar sua formação musical. Não ficou muito satisfeito com os resultados, especialmente porque Gioacchino Giannini, seu professor de composição no Imperial Conservatório de Música, não se mostrava muito entusiasmado com o trabalho. Gomes quase desistiu da empreitada. Salvou-o José Amat, um empresário espanhol que criara a Imperial Academia de Música e a Ópera Nacional. Amat tinha um projeto: encenar no Rio de Janeiro grandes óperas estrangeiras, traduzidas para o português, e, a partir daí, reinventar o gênero, em moldes genuinamente brasileiros.
Amat viu o que Giannini não enxergou, o talento de Gomes. Deu-lhe o emprego de maestro ensaiador de sua companhia e estimulou-o a escrever uma ópera. Cansado de ouvi-lo reclamar que seus amigos poetas de São Paulo não lhe enviavam os libretos muitas vezes prometidos, Amat passou a Gomes um texto que mantinha, desde 1859, guardado numa gaveta: o libreto de A Noite do Castelo, escrito por Antônio José Fernandes dos Reis, com base num poema de Antônio Feliciano de Castilho. Era um dramalhão, bem ao gosto da época. Talvez por isso, fez enorme sucesso.
Em resumo, A Noite do Castelo conta a história de uma noite de festa no castelo do conde Orlando. Leonor, filha de Orlando, era noiva de Henrique, sobrinho do conde. Henrique parte para uma cruzada na Terra Santa e é dado como morto. Leonor então fica noiva de outro cavaleiro, Fernando. A festa é para comemorar esse noivado. No meio da noite, chega ao castelo um cavaleiro mascarado. É Henrique, disfarçado. Leonor fica dividida entre os dois. Henrique mata Fernando. O conde surpreende Henrique no quarto de Leonor e mata o mascarado, só depois percebendo quem era. Leonor morre de desgosto.
Rasgar o crepe
As críticas foram mais do que favoráveis ao novo compositor. “É a música dos trópicos, a harmonia da nossa terra brasileira que o sr. Gomes, inspiração potente, mágica, apanhou na sua grande imaginação de artista, de poeta, de brasileiro”, dizia uma delas. “A musa da arte nacional rasgou o crepe que envolvia a música brasileira desde a morte de José Maurício”, afirmava outra. Mas, diz uma história não confirmada, Gomes manteve os pés no chão. Quando o pai comentou com entusiasmo o fato de toda a assistência ter-se posto de pé, inclusive o imperador, para aplaudir o compositor, ele teria respondido: “É o patriotismo que está fazendo a maior parte desse entusiasmo”.
Foram muitas as homenagens, como batutas banhadas a ouro e mesmo uma comenda do imperador. Mas também não faltaram maledicências. Artigos não assinados, publicados nos jornais, punham em dúvida se Gomes era mesmo o autor da ópera. Dizia-se também que Gomes fora forçado a escrever o papel de Leonor sob medida para a cantora Luísa Amat, mulher de José. No decorrer da carreira, Gomes voltaria outras vezes a A Noite do Castelo. Fez, por exemplo, uma revisão pessoal de uma redução da ópera para canto e piano, realizando cortes e acréscimos que refletem seu amadurecimento como compositor.
Quando Gomes morreu, sua filha Ítala deu os originais da ópera de presente a um tio, José Pedro de Sant’Anna Gomes, também músico. Sant’Anna, muito cuidadoso, mandou encadernar a partitura nos dois volumes envolvidos em couro, pedindo que ficasse gravado, em letras douradas, que eles pertenciam à sua biblioteca particular. “Chamamos um especialista em encadernação para examinar o manuscrito”, conta a professora Toni. “Descobrimos que, originalmente, era composto de vários cadernos com furos, amarrados com fitas. Provavelmente, a ópera estava nessa forma quando foi regida por Carlos Gomes na estréia, em 1861.”
Excesso de bagagem
O material não ficou muito tempo com a família do compositor. O marido de uma sobrinha do maestro o deu de presente ao vice-cônsul da Itália em Campinas, Ugo Tommasini. Ele prometeu que, quando voltasse à Europa, deixaria os dois volumes no Brasil. Não cumpriu o trato. O material, aliás, nem chegou à Itália. Quando passou por Paris, a caminho da sua terra, Tommasini o deixou num guarda-móveis, onde abandonou o que considerou como excesso na sua bagagem. Os dois volumes foram retirados do depósito após a morte do diplomata, por seus herdeiros, que os colocaram à venda num sebo de Paris, onde foram comprados pela mãe de Sampaio Ferraz, em 1961.
Voltou assim para o Brasil e ficou de posse da família, até que ela resolveu colocá-lo em leilão, em março deste ano. Sua história, porém, conserva alguns mistérios. Por exemplo, em 1936, o pesquisador Luiz Heitor Corrêa de Azevedo procurou a partitura, para fazer um estudo comparativo entre A Noite do Castelo e Joana de Flandres. Não a encontrou, mas foi informado de que um diplomata italiano residente no Peru oferecera a obra ao governo brasileiro. Consultou o Itamaraty, mas soube apenas que a doação nunca se concretizara.
Outras versões
Pesquisas como essa, e muito outras, agora se tornarão possíveis. “Enfim, poderemos preparar uma edição completa que tornará possível saber com certeza como é realmente a ópera, tal como Carlos Gomes a idealizou”, diz a professora Toni. Essa edição, que será preparada em dois anos, será o retrato definitivo de A Noite do Castelo, incluindo as revisões feitas pelo maestro. “Não será apenas uma edição genética, ou seja, apenas do processo criativo original, mas obtida a partir do cotejamento dos manuscritos com outras versões existentes da obra, como a redução para canto e piano e a redução para piano solo, essa última, ao que tudo indica, não revisada por Gomes”, acrescenta.
Uma outra cópia, existente em Campinas, cuja origem é desconhecida pelos pesquisadores, serviu como base para a montagem da ópera feita em 1978 com a Orquestra Sinfônica de Campinas, regida por Benito Juarez. Essa versão é a que existe em versão em CD, incluída na íntegra das óperas de Carlos Gomes editada em 1997 pelo selo Master Class, de São Paulo. O maestro Juarez, inclusive, num primeiro exame, já encontrou divergências entre a partitura original e a cópia que usou em 1978.
“Essa obra é um arauto de novos tempos, pois, a partir do trabalho de uma comissão técnica, que ainda está sendo organizada, sobre esse manuscrito, será possível investir no futuro, incentivando alunos de pós-graduação a se dedicarem ao estudo e preparação de novas edições críticas, das quais nosso país tanto carece”, diz o professor Martins. “Uma ópera chamada Noite pode, curiosamente, ser um Sol que mostra um novo caminho a ser trilhado dentro da universidade brasileira.”
Nacionalismo rítmico
Enquanto isso, novas respostas já estão sendo procuradas, como se as críticas da época foram justas com relação aos valores de então e até onde, realmente, ia a brasilidade da música de Gomes, quando ainda estava preso às raízes e não entrara no mercado europeu, cujo gosto seria forçado a levar em conta. “Nesse ponto, não concordo com a crítica estética de Mário de Andrade, que condicionava o nacionalismo a questões rítmicas e, assim, não o via plenamente na obra de Carlos Gomes”, diz o professor Martins. “Acredito que esse nacionalismo está em cada um de nós, transparecendo de alguma forma”, acrescenta.
Na opinião de Martins, em A Noite do Castelo “há um frescor, apesar do italianismo dominante, e procedimentos que denotam sua brasilidade”. A professora Toni vai um pouco além. “A composição dessa ópera está em perfeita consonância com os moldes italianos da época, mas é perceptível, no prelúdio e nos primeiros compassos de muitas áreas, um certo ar modinheiro, das melodias que Gomes fazia naquele tempo e que traem o sabor melódico do cancioneiro luso-ítalo-brasileiro.”
No mais, as marcas do trabalho de Gomes estão em todo lugar. Como fez em outras obras, nas rubricas de ação, o compositor deixava de lado as indicações de cena, mas não se esquecia de anotar as emoções que deveriam ser mostradas por personagens. Para Leonor, muitas vezes, reservou a expressão: “amorosamente”.
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