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Prêmio

O reorganizador da Natureza

O químico Otto Gottlieb, que criou uma nova forma de classificar as plantas, é indicado para o Nobel

“No próximo milênio, os países que tiverem mais florestas e culturas preservadas serão beneficiados tanto na pesquisa científica quanto na alimentação.” O ensinamento, do escritor e indigenista Orlando Villas Boas, está afixado na parede da sala do apartamento do cientista Otto Richard Gottlieb, no bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro, e demonstra a visão ampla da Ciência e da Natureza cultivada por este químico. Tão ampla que ele está sendo indicado ao Prêmio Nobel de Química deste ano por seus estudos pioneiros propondo uma nova classificação das plantas a partir de suas características químicas. A indicação foi feita pelo químico Roald Hoffmann, que recebeu o Prêmio Nobel em 1981, mas os estudos e descobertas de Gottlieb transcendem os limites dessa Ciência.

Nascido na atual República Tcheca em 1920 e naturalizado brasileiro, trabalhando atualmente na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) desde que se aposentou na Universidade de São Paulo (USP) em 1990, Gottlieb criou uma nova forma de organizar e entender os vegetais, a base da vida na Terra.Integrando a química à biologia, à ecologia e à geografia, Gottlieb desenvolveu uma nova disciplina ou área de estudo no campo da química de produtos naturais: a sistemática bioquímica das plantas, também chamada de quimiossistemática ou taxonomia química, que consiste na identificação de grupos de substâncias químicas presentes nas plantas. Quantificando as substâncias químicas das espécies, foi possível acrescentar informações valiosíssimas à habitual classificação dos vegetais, fundamentada sobretudo nos seus aspectos externos, como folhas e flores.

“Se o naturalista sueco Carl von Lineu criou um método, ainda utilizado, para organizar as plantas a partir desses aspectos externos, Otto Gottlieb mostrou como identificar as plantas por dentro, diferenciando suas micromoléculas”, diz a pesquisadora Maria Cláudia Marx Young, do Instituto de Botânica de São Paulo, que teve o cientista como seu orientador no mestrado e doutorado.”As plantas sempre foram classificadas de acordo com suas características morfológicas”, diz Gottlieb. “O que temos feito é correlacionar essas características externas com características moleculares.” Portanto, não se trata de substituir um método por outro. A classificação de Lineu, relativamente simples, ampla e prática, continua indispensável. Mas o enfoque químico resolve alguns impasses e permite entender algumas peculiaridades da Natureza. Ao contrário da primeira, essa é uma abordagem dinâmica, que parte da verificação de que as plantas, até mesmo dentro de uma mesma espécie, produzem diferentes substâncias de acordo com os estágios de sua vida ou das condições ambientais em que encontram.

É o caso da Ocotea pretiosa, uma árvore da família das lauráceas conhecida como canela-sassafrás ou sassafrás, encontrada em vastas áreas do Brasil. De acordo com a região, sua composição química pode variar. No clima frio do Vale do Itajaí, em Santa Catarina, produz safrol, um óleo essencial de valor comercial. Já no ambiente tropical do Rio de Janeiro, a principal substância produzida é a nitrofeniletano, que confere a esse espécie o cheiro de canela. A presença de uma ou de outra substância esclarece as diferenças fisiológicas e as reações ao ambiente de uma mesma espécie, como fez o químico mais de uma vez, valendo-se do seu próprio método.

Otto Gottlieb graduou-se em 1945 em Química Industrial pela Universidade do Brasil e doutorou-se pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Passou dez anos na indústria de óleos essenciais que pertencia a seu pai antes de retomar a carreira acadêmica, já com 35 anos, no então Instituto de Química Agrícola, extinto alguns anos depois. Foi a partir do final dos anos 60, na USP, que estudou profundamente a química das lauráceas, a que pertencem o sassafrás e o louro, e das miristicáceas, representada pela noz-moscada. Enriqueceu a classificação botânica tradicional e identificou centenas de substâncias denominadas lignóides, uma característica marcante das plantas arbóreas.

E, dentro desse grupo, descobriu as neolignanas, que, segundo ele, são sintetizadas pelos vegetais em condições diferentes das lignanas, já conhecidas.A identificação dessas substâncias possibilitou novas pesquisas que levaram ao desenvolvimento de fármacos como o etoposídeo e o teniposídeo, sintetizados pela indústria farmacêutica e empregados como antitumorais. As neolignanas, descobriu-se mais tarde, possuem também propriedades antiinflamatórias. Outros cientistas também comprovaram seus efeitos na alteração da diurese do agente transmissor da doença de Chagas. Gottlieb lançou o modelo que levaria a essas descobertas num congresso internacional realizado em Hamburgo, na Alemanha, em 1976, e foi muito bem recebido pela comunidade científica, vencendo o ceticismo sobre a possibilidade de unir a química à biologia na classificação dos vegetais.

A evolução
Com a sistemática bioquímica, que o tornou internacionalmente conhecido, Gottlieb foi ainda mais além. Medindo nos grupos vegetais a presença de conjuntos específicos de substâncias químicas, genericamente conhecidos como metabólitos secundários, ele criou uma nova abordagem para entender a evolução e a regulação das plantas, isto é, estabeleceu um paralelismo entre a evolução química e a morfológica. Os seus estudos sugerem, por exemplo, que pinheiros e plantas floríferas têm sua origem em samambaias primitivas e avançadas, respectivamente.

“Gottlieb criou um método científico para quantificar as substâncias químicas e prever a evolução das plantas superiores”, conta outra de suas discípulas, a professora Vanderlan da Silva Bolzani, que coordena o Núcleo de Bioensaio, Biossíntese e Ecofisiologia de Produtos Naturais do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Araraquara, e um dos projetos temáticos do programa Biota-FAPESP. “Com esse enfoque, comecei a ter uma visão mais profunda da Natureza e dos significados das moléculas no estudo da evolução.”

A química, sob seus cuidados, levou a uma visão ampla da Ciência. “Estudar as plantas tem nos permitido entender as regras que sustentam o funcionamento da vida, da Natureza”, diz o cientista. Investigar a origem da vida por meio do estudo das plantas pode parecer, à primeira vista, curioso. Mas é exatamente esta correlação que forma as bases da pesquisa do cientista sobre evolução, sistemática e ecologia molecular de plantas.

Como alguns grupos específicos de animais, a exemplo dos pássaros, anfíbios e répteis, os vegetais têm mecanismos químicos de defesa. Liberando toxinas, conseguem defender-se de agressões externas. “As plantas são um paradigma de como funcionam outros grupos de seres vivos”, ensina Gottlieb. Essa abordagem tem sido usada nos estudos sobre a biodiversidade dos ecossistemas brasileiros, como a Floresta Amazônica e a Mata Atlântica. Medindo a semelhança da composição florística de diferentes ecossistemas, Gottlieb observa como as plantas interagem.

“A Natureza toda é uma só, e as plantas não estão separadas umas das outras”, diz o químico. De acordo com as mais recentes pesquisas mundiais, que ele acompanha atentamente, existem canais subterrâneos que unem as plantas em diversas posições. Esse modelo tem uma implicação imediata: quando se abate uma determinada área, não está se prejudicando apenas a região depredada. “Como tudo está conectado por meio de uma rede, o efeito da depredação de uma região pode ser sentido a larga distância”, diz Gottlieb, cada vez mais buscando nos dados experimentais as explicações mais profundas dos ambientes naturais brasileiros.Segundo ele, o que faz a conexão dessa rede são os ecótonos, também chamados de áreas de tensão ecológica, regiões de transição entre os ecossistemas, que separam, por exemplo, a Amazônia do cerrado e da caatinga.

Os ecótonos são bastante semelhantes entre si e têm características comuns a todos os ecossistemas, ainda que geograficamente distantes. “Podemos encontrar em ecótonos do norte do Brasil um tipo de vegetação semelhante a outro tipo de vegetação típica do Sul do país, como as araucárias”, explica. Para ele, o estudo dessas regiões de fronteira é de extrema importância. “Observamos que os ecótonos mantêm o ecossistema. Se essas áreas são invadidas, quem vai sofrer são os ecossistemas que os cercam. Iniciar atividades de agricultura e pecuária nessas regiões de turbulência é extremamente lastimável”, alerta Gottlieb. Ao contrário, conhecendo o desenvolvimento químico desses ecossistemas, torna-se possível intervir sobre os espaços sem que percam sua estrutura e identidade.

Formador
Exigente e rigoroso, capaz de trabalhar 15 horas por dia no laboratório, sempre disposto a atender os alunos, Gottlieb criou uma geração de especialistas em química de produtos naturais no país. Formou equipes na Universidade de Brasília, Universidade Federal de Minas Gerais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e Universidade de São Paulo. No total, formou 118 mestres e doutores, hoje grandes nomes da comunidade científica brasileira e internacional. Sua obra inclui 630 trabalhos e cinco livros publicados, entre eles o Micromolecular Evolution, Systematics and Ecology: An Essay into a Novel Botanical Discipline, além de 580 conferências em 26 países. Recebeu diversos prêmios, como o de Química da Academia de Ciências do Terceiro Mundo e o Pergamon, concedido pela Phytochemistry, principal revista da área.

“É o maior nome em química de produtos naturais da América Latina”, diz Vanderlan. Ela conta que, num Congresso em San Diego, nos Estados Unidos, em julho de 1993, durante seu pós-doutoramento, foi muito bem recebida por eminentes cientistas ao dizer que havia sido aluna do professor Gottlieb. Ele foi também um dos fundadores do Laboratório de Produtos Naturais da USP, criado em 1967 com apoio da FAPESP e que, três anos mais tarde, passaria a fazer parte do Instituto da Química da Universidade, onde o pesquisador trabalhou como professor titular até 1990. Na Fiocruz, para onde se transferiu em seguida, desenvolve pesquisas como bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

“Gottlieb deu um grande impulso à fitoquímica da Fiocruz”, atesta o vice-presidente de pesquisa da instituição, Renato Cordeiro. “Os resultados de suas pesquisas são extraordinários”, acrescenta. Para o químico Peter Seidl, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), um dos articuladores da indicação do nome do pesquisador ao Nobel, Gottlieb é um exemplo a ser seguido. “Ele é uma prova de que podemos fazer pesquisa no Brasil, apesar dos recursos limitados, sem precisar ir para um país desenvolvido”, diz Seidl.A indicação de Gottlieb ao prêmio conta com o apoio das Academias Brasileira de Ciên-cias e do Terceiro Mundo.

Ele, no entanto, prefere não falar no assunto. Suas preocupações estão voltadas para problemas como a devastação das florestas e a deterioração ambiental. Gottlieb considera que a compreensão dos mecanismos daNature za será essencial para o futuro da vida no Planeta Terra no próximo milênio, e este trabalho é, em sua opinião, o mais importante desafio para os cientistas. “A preservação do ambiente é um assunto de importância mundial a toda prova”, afirma.

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