De uma série de cinco volumes programados para explorar o regime militar, Elio Gaspari já escreveu os dois primeiros, A Ditadura Envergonhada e A Ditadura Escancarada, que a Companhia das Letras acaba de publicar. A primeira edição, em novembro, foi de 50 mil exemplares e ambos já foram reimpressos em quantidades semelhantes. É de bom augúrio o fantástico êxito editorial de um livro sério, em contraste com a banalidade da maioria dos lançamentos atuais. Por certo, há várias explicações para o fenômeno; para todos nós que vivemos o regime militar, o livro faz emergir, quase de modo sub-reptício, uma angústia difícil de nomear. Não há dúvida de que a democracia está razoavelmente implantada no Brasil, mas, além da memória da ditadura, é como se ainda residisse no horizonte de nossas experiências a suspeita de que sempre é possível o ataque de uma burrice abissal a ameaçar as instituições democráticas. O exercício da democracia implica certa dose de racionalidade e o regime militar mostrou que somos bem capazes de chafurdar no irracionalismo. Se o totalitarismo estetiza a política, é de esperar que a encene com perversa grandeza. Um congresso do partido nazista em Nuremberg ou uma fala do Duce na varanda do Palácio Veneza tinham garbo, embora, para um olhar mais crítico, rapidamente se traduzissem em farsa. A nossa ditadura (como pode ser nossa?) desde o início foi farsa bruta, chinfrim, e seria antes de tudo ridícula, se não tivesse sido cruel.
Esse tom já marca seu início. Na madrugada de 1º de abril de 1964, em Juiz de Fora, o general Olympio Mourão Filho, ainda na cama, de pijama e roupão de seda vermelho, inicia suas atividades revolucionárias telefonando para os conspiradores mais próximos e comunicando estar pronto para o golpe. Mais tarde, em suas memórias, se gabará de ter sido o único homem no mundo (ou pelo menos no Brasil, ressalva) que desencadeou uma revolução nesses trajes. O episódio é apenas o começo de uma comédia de enganos que derruba um governo, aliás tão ridículo como seus adversários, instala um regime militar e termina sendo dissolvido com a participação decisiva de alguns de seus parteiros. Para não dar a impressão de que a farsa se desenrolou no grande palco de Brasília e dos quartéis, não resisto à oportunidade de também contar um episódio. Logo depois de 64 se instala, na USP, um inquérito para investigar atividades subversivas. Obviamente, livros como O Vermelho e o Negro são apreendidos; no entanto, humilhante era os professores serem convocados para comprovar seu civismo, muitas vezes lhes sendo pedido que cantassem o Hino Nacional. Qual foi a resposta bem-humorada de João Cruz Costa? “Se o senhor tenente assobiar, eu canto.”
Não se imagine, porém, que tudo se resumiu nessa mistura de comédia e tragédia. Houve muito heroísmo e algumas traições intempestivas. A Gangrena, parte final de A Ditadura Escancarada, começa contando como grupos de repressão, militares e paramilitares, à medida que vão se isolando do controle do Estado, tornam-se cada vez mais violentos, arbitrários, até caírem na marginalidade. Do outro lado do conflito, os grupos guerrilheiros, cada vez mais reduzidos, cada vez mais isolados da população urbana e rural, vão sendo cruelmente massacrados pelas Forças Armadas. O livro termina historiando a guerrilha do Araguaia e sua dizimação. Um punhado de aproximadamente 80 jovens, fiéis ao radicalismo abstrato do PC do B, mas sem experiência da mata e de lidar com as populações locais, se dispersa em volta de Marabá na esperança de, a partir daí, iniciar a guerra popular. Esses grupos isolados, porém, vão sendo progressivamente capturados ou dizimados pelo Exército, a despeito da desorganização dos militares. Estes contaram, às vezes, com a sorte. Conseguiram, por exemplo, que o Velho Cid (João Amazonas), um dos maiores responsáveis da operação, se mantivesse fora da área da guerrilha no período mais crítico. E da forma mais surpreendente. Dona Maria (Elza de Lima Monnerat) vinha de São Paulo trazendo novos combatentes, entregou dois no caminho e seguiu seu destino de ônibus. Foram interceptados por uma patrulha militar e um dos rapazes foi preso. Dona Maria voltou sozinha para Anápolis e encontrou o Velho Cid na estação rodoviária. Basta-lhe um sinal do olhar para indicar que a coisa estava preta. O Amazonas tomou um café ao lado e voltou para São Paulo, deixando os rapazes do Araguaia ao deus-dará.
Os dois livros de Elio Gaspari seriam muito engraçados se fossem apenas romances, mera ficção. Por certo romance realista, com o rigor e as miudezas de Gustave Flaubert ao contar as trapalhadas de Bouvard e Pécuchet. Mas Gaspari levanta uma quantidade impressionante de informações. No início, herda os arquivos de Ernesto Geisel e a papelada de Golbery do Couto e Silva, cuidadosamente preservada por Heitor Ferreira, secretário de ambos, e vai aos poucos colecionando papéis, entrevistas e outros documentos, formando assim, provavelmente, o mais rico arquivo do período militar. O projeto inicial era estudar como fora possível que Geisel e Golbery, tendo sido responsáveis pela instalação do regime militar, terminassem por ajudar sua derrubada. Gaspari explicitamente nega que pretenda escrever a história da ditadura, pois, diz ele, falta ao trabalho a abrangência que o assunto exige e há nele a preponderância daqueles dois personagens. Mas, dotado de memória prodigiosa e de paciência infinita, reconstrói minuciosamente os motivos e o dia-a-dia dos revolucionários, a amplitude de suas ações, de sorte que, embora consiga manter o elo narrativo na ótica dos personagens eleitos, não é por isso que lhe faltará visão panorâmica.
Depois de 18 anos de trabalho, o projeto atual é de escrever, no primeiro lance, quatro volumes. Nos dois primeiros conta o período de 31 de março de 1964 ao final do governo do general Emílio Médici, no início de 74. Apresenta, como ele indica, um preâmbulo à história do Sacerdote e do Feiticeiro, como Geisel e Golbery eram chamados. Nos dois seguintes espera contar a vida deles, a trama que os levou de volta ao Planalto e os quatros primeiros anos do governo Geisel. De novo, esse período é pontuado por uma farsa: na noite de 11 de outubro de 1977, o ministro do Exército, general Sylvio Frota, responsável pelo aparelho repressivo e esperando concorrer à Presidência da República, foi dormir, depois de ter visto um filme de James Bond, sem saber que o presidente o acordaria para demiti-lo. Não porque o general presidente era contra a tortura, mas antes de tudo porque os grupos torturadores estavam ameaçando a disciplina e a hierarquia das Forças Armadas. O feitiço de Geisel e Golbery aí termina, mas Gaspari, no quinto volume, prolongará a história até o momento em que Geisel, no dia 15 de março de 1979, tendo acabado com a ditadura do AI-5, deixa o governo e se retira para Teresópolis.
Não há dúvida de que esses cinco volumes não pretendem contar a história da ditadura como Jules Michelet escreveu a história da Revolução Francesa, mas sua narração não se limita aos jogos de Geisel e de Golbery, pois, conforme seu contexto vai se ampliando, o vasto panorama resulta num modelo de Histoire événementielle, dessa história que se dedica à narração cuidadosa dos acontecimentos. E não é estranho que os próximos volumes se anunciem como biografias. Por certo, de dois personagens intrigantes, metidos, porém, numa encenação grotesca. Ao terminar A Ditadura Escancarada, ao ler a destruição do movimento guerrilheiro, meu nó na garganta virou engasgo. Como tanta violência fora desencadeada sob nossos olhos, sem que dela tomássemos conhecimento, nós, que trabalhávamos pela instauração do Estado de Direito? Por que tantos de nossos alunos se meteram heroicamente nessas aventuras, obstinando-se em não ver que o “milagre brasileiro” bloqueava qualquer revolução do tipo cubano ou chinês? Como esse heroísmo pôde se tornar ridículo ao seguir os compassos de uma marcha militar? Por que tantos amigos meus e muitos outros, que se tornaram amigos por terem comungado a tortura e o desfazimento de suas vidas, foram levados por uma ventania aparentemente sem sentido?
Gaspari não pretende encontrar o sentido subjacente aos acontecimentos que ele narra. Esse cuidado de permanecer rente aos fatos pode despertar a desconfiança, se não a ira, daqueles historiadores que estão sempre nos ensinando que um fato só se individualiza e ganha sentido tanto no seu contexto como em vista daquelas matrizes que o sustentam. Seria ingênuo, porém, imaginar que Gaspari não passa de jornalista. Seus livros não vão para o lixo no dia seguinte, mas desenham o panorama événementiel de um período crucial de nossa história, talvez o momento máximo de um rosário de farsas que se inicia com o Descobrimento, como se tudo fosse obra do acaso. Que o riso, porém, seja breve, apenas para adoçar a tristeza de se sentir sempre à margem daqueles centros onde se decidem nossos destinos.
José Arthur Giannotti é filósofo, é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e coordenador da área de filosofia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap)
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