Com um pragmatismo superado apenas pela argúcia, o Padre Vieira afirmava sobre os judeus, lançando mão de um argumento emprestado de Santo Agostinho: “O esterco fora do seu lugar suja a casa, e posto no seu lugar fertiliza o campo. O mesmo vale para os judeus, que no estrangeiro ajudam os hereges, mas em casa fornecem o capital para manter o Império. Por que transformar vassalos úteis em inimigos poderosos?”. O mesmo senso prático se estabeleceu no Brasil durante a dominação comercial e militar dos holandeses, entre 1630 e 1644, em Pernambuco, onde reinou um ambiente inédito de tolerância religiosa, em especial para judeus. “A capital pernambucana era uma verdadeira ‘Jerusalém colonial’ por causa da utopia da reconstrução do mundo judaico da diáspora. Era uma Babel cultural. Recife, por certo tempo, foi a única cidade do mundo que reunia pessoas das três crenças (judeus sefarditas, católicos e calvinistas) em um único ambiente de tolerância religiosa”, afirma o historiador Ronaldo Vainfas, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autor de Jerusalém colonial: judeus portugueses no Brasil holandês (Civilização Brasileira), pesquisa apoiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). “Nunca antes os judeus alcançaram tamanha liberdade religiosa como no Brasil holandês, em especial durante o governo de Maurício de Nassau”, analisa.
No caso dos judeus, havia, como pregava Vieira, razões concretas para a boa vontade batava. “Os holandeses do governo colonial ou representantes da Companhia das Índias Ocidentais (WIC) apoiavam enfaticamente os judeus porque eles eram os intermediários por excelência dos negócios coloniais”, observa Vainfas. “O ‘tolerantismo’ ou o Estado multirreligioso era visto por muitos governos da época como o caminho mais curto para a deslealdade e para a dissidência interna. Não foi fácil para Nassau implantar essa política, tendo que lutar constantemente contra a ira da maior parte do clero calvinista local e contra pressões de uma política menos tolerante na colônia, exigida pelos diretores da WIC”, afirma o historiador americano Stuart B. Schwartz, professor da Universidade Yale e autor de Cada um na sua lei (Companhia das Letras). “Esse período oferece uma oportunidade limitada de imaginar as possibilidades de tolerância que existiriam na sociedade portuguesa com a redução do poder e da autoridade da Igreja e, acima de tudo, da Inquisição.” Afinal, era a primeira vez que os judeus puderam se reorganizar depois de mais de um século de proibição do judaísmo em Portugal. O processo remonta a 1478, quando os reis católicos instituíram a Inquisição na Espanha, o que levou os conversos, vistos como hereges por se “judaizarem” em sigilo, a fugir para o reino vizinho. O grande afluxo de judeus espanhóis levou a nobreza e a Igreja de Portugal a clamarem por medidas equivalentes à espanhola e, em 1496, o rei português, que nada tinha contra seus súditos hebreus, decretou que todos os semitas deveriam se converter ao catolicismo, o que fez nascer a comunidade dos cristãos-novos. Em 1536, quando a Inquisição chegou a Lisboa, mais uma vez os sefarditas iniciaram uma diáspora, dessa vez em direção aos Países Baixos. Amsterdã passou a ser conhecida como a “Jerusalém do Norte”.
Rituais
“Os imigrantes estavam separados por mais de 100 anos do judaísmo dos avós, não sabiam hebraico e só praticavam certos rituais domésticos. Não conheciam nada ou pouco do judaísmo. Para a maioria dos convertidos, a primeira comunidade judia que conheceram foi essa que criaram. Eram ‘judeus novos’ que, no fundo, eram cristãos por formação”, explica Vainfas. O português era a língua falada por eles, conhecidos por isso pelos holandeses como “gente da nação portuguesa”, apelando para o castelhano nas orações e cerimônias das sinagogas. Aos poucos foram ampliando seus direitos, embora fossem uma minoria que se restringia a um gueto em Amsterdã. “Quando os holandeses se instalaram no Brasil, os judeus vieram para o país, a partir de 1635. Essa proteção aos judeus não foi uma decisão de Nassau, mas uma política da WIC”, nota o pesquisador. “A Companhia não tinha fundos para financiar suas operações e foram obrigados a encorajar a migração de judeus portugueses, que se transformaram em operadores e intermediários, fornecendo dinheiro, crédito e os suprimentos necessários para colocar a região de produção de açúcar novamente em funcionamento”, afirma o historiador americano Jonathan Israel, professor do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Princeton, autor de The expansion of tolerance: religion in dutch Brazil.
“Eram os únicos que falavam português e holandês, o que lhes permitia dominar o comércio da colônia, vantagem combinada a um conhecimento profundo da indústria açucareira. E, ao contrário de Amsterdã, onde só podiam morar, em Pernambuco eram livres para ter lojas e tocar negócios em geral”, diz o americano. “Essa tolerância, porém, não era gratuita, mas fruto da necessidade. A maioria das plantações de açúcar em Recife tinha sido destruída na conquista e não havia dinheiro da WIC capaz de restaurar a economia. Foi um caso especial, que não se repetiu em outras regiões dominadas pelos holandeses, como o Caribe ou a Nova Amsterdã”, ressalta Israel. “Eles foram os grandes cobradores de impostos do Brasil holandês. Emprestaram dinheiro a juros para senhores de engenho holandeses ou luso-brasileiros e para cristãos-novos menos afortunados. Até para a WIC os grandes comerciantes judeus emprestaram dinheiro. Foram igualmente distribuidores de escravos”, conta Vainfas. Com o financeiro resolvido, houve espaço para a fé. A congregação Kahal Kadosh Zur Israel foi a primeira fundada nas Américas. “Era algo inimaginável numa colônia portuguesa católica e Nassau sofreu grandes pressões por parte dos pastores calvinistas”, diz o professor da UFF. “Embora o governo holandês protegesse os judeus, os predicantes calvinistas se revelaram mais intolerantes aqui, porque a visibilidade do judaísmo era maior e os privilégios desfrutados pelos judeus eram imensos. Os pequenos e médios comerciantes holandeses odiavam os judeus porque perderam espaço e viram frustradas suas expectativas de enriquecer na colônia. Os calvinistas também nisso esposaram a causa dos negociantes holandeses”, continua Vainfas. Nassau, no entanto, gostava de lembrar aos diretores da WIC que os judeus, ao contrário dos católicos, eram aliados fiéis. A comunidade teve desdobramentos.
Liberdade
“A presença de judeus confessos provocou tensões e sentimentos diversos nos cristãos-novos daqui. Vários dentre esses aproveitaram a relativa liberdade religiosa para se tornarem abertamente judeus”, analisa o historiador Bruno Feitler, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e autor do livro Nas malhas da consciência (Alameda). “Mas muitos cristãos-novos que passaram pelo processo de ‘retorno’ não tinham nenhum conhecimento ou prática da religião ou dos costumes judaicos”, observa. “Causava um grande desconforto aos católicos acompanhar a adesão diária de cristãos-novos à sinagoga, homens e mulheres que antes se diziam cristãos e frequentavam missas. A disposição de muitos cristãos-novos de ‘regressar’ ao judaísmo parecia confirmar o alerta da Inquisição contra o perigo da ‘heresia’ judaica que corria no sangue dos cristãos-novos”, avalia Vainfas. Na luta da restauração portuguesa, os lusitanos também se voltaram para os judeus, aconselhados por Padre Vieira, um curioso conflito de interesses. “No caso de Portugal, o dinheiro judaico foi essencial para a vitória sobre a Espanha. No caso holandês, era importantíssimo nos investimentos da WIC. Os judeus da Holanda investiram nos dois lados da contenda. O desempenho das redes mercantis sefarditas exprimiu a lógica de um capitalismo comercial avançado, capaz de operar entre sistemas monopolistas rivais, colocando em segundo plano razões de ordem política e religiosa”, lembra o pesquisador. Apoiar Portugal era investir na chance de os lusos retomarem o Brasil dos holandeses, responsáveis pela liberdade experimentada pelos judeus. Quando esses foram expulsos, a maioria dos sefarditas deixou o Brasil e foi para lugares controlados pela WIC, o que lhes permitiu superar a experiência pernambucana.
“Alguns foram para a América, mas é um mito que tenham fundado Nova York. Os holandeses de Manhattan temiam que os judeus repetissem por lá o que haviam feito no Brasil: tomar conta do comércio. Isso não ocorreu, porque o português não tinha utilidade na Nova Amsterdã”, diz Vainfas. “Um estudo da cultura brasileira mostra o legado deixado por aqui pelos cristãos-novos, com suas ideias de tolerância e liberdade, com sua defesa de que ‘cada um deve ter a liberdade de adorar Deus conforme sua consciência’. Eles podem, pela sua crítica à Igreja, aos dogmas e ao fanatismo, ser considerados os precursores da ilustração brasileira. Os judeus entraram intimamente na composição étnica do nosso povo, fato decisivo para a formação de nossa mentalidade e para a heterodoxia dos brasileiros”, afirma a historiadora Anita Novinsky, professora da Universidade de São Paulo, autora do livro Cristãos-Novos na Bahia (Perspectiva).
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