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Resenhas

Da “alteridade” à produção da diferença

Selvagens, civilizados, autênticos: a produção das diferenças nas etnografias salesianas (1920-1970) | Paula Montero | Edusp, 520 páginas, R$ 72,00

O problema do deciframento do “outro” – ou da alteridade – constitui-se objeto privilegiado da antropologia. No entanto, se, desde meados do século XIX, esse interesse se expressa na descrição dos “outros” não ocidentais a partir de categorias cunhadas com base na organização social própria das sociedades ocidentais, o advento da descolonização e consequente redução das distâncias morais entre os “nós” e os “outros” nos impulsionam a olhar para a constituição destes de outra forma. E é, sobretudo, este o convite feito por Paula Montero em Selvagens, civilizados, autênticos.

Ao tomar como objeto de análise as etnografias elaboradas por missionários salesianos sobre populações indígenas brasileiras – Bororo, Xavante e indígenas do alto rio Negro –, a autora pretende pensar como a prática missionária traduziu simbolicamente a alteridade em diferença, reduzindo um “outro” ininteligível a um diferente. Para tanto, Paula analisa a escrita missionária e seu modo de descrever os índios, partindo do pressuposto de que a forma como estes são descritos está intimamente relacionada ao modo como a convivência entre índios e missionários se desenrola. Esta suposição, bem como a análise realizada a partir dela, traz importantes consequências para o modo como o fazer antropológico foi e ainda é pensado e praticado.

Em primeiro lugar, esta empresa supõe uma análise que leve em consideração as mudanças nas relações entre índios e missionários decorrentes do desenvolvimento de sua convivência, levando em consideração o modo como se relacionam, as trocas materiais e simbólicas efetuadas, as posições destes agentes frente a questões envolvendo colonos, agentes do Estado etc., bem como as transformações advindas com o passar do tempo. Esse tipo de observação permite decifrar as grades de leitura que tornaram possível a esses missionários formularem determinados tipos de concepção sobre esses índios. Ou seja, trata-se de um investimento num tipo de estudo que envolve a comparação ao longo do tempo e que também atente para as especificidades existentes no interior do contexto de cada missão.

Por outro lado, supõe que a alteridade não é constituída ontologicamente, mas construída a partir do modo como os “outros” são descritos. Ou seja, trata-se de um investimento que coloca em evidência a forma como a própria antropologia foi constituída. Nesse sentido, vale destacar que o modo como a antropologia formulou suas questões relaciona-se intimamente ao tipo de inquietação dos missionários em seus esforços de compreensão e descrição das populações nativas com as quais trabalhavam. Assim, temas como parentesco ou família, religião e magia, cultura ou civilização constituíram-se como categorias formadoras de um quadro de referências que permitiu a uns e a outros “traduzir” os nativos em termos passíveis de serem compreendidos no mundo ocidental.

Este tipo de perspectiva nos convida a sair do registro do contato, que marca boa parte dos estudos voltados a temas relativos às missões entre populações nativas, e a pensar esses quadros descritivos como constituídos a partir de relações entre mediadores. Isso implica, portanto, deixar de lado análises baseadas no encontro de cosmologias, e, por consequência, da existência de “outros” ontologicamente diferentes, e passar a uma análise focada na observação do modo como os agentes constroem simbólica e praticamente os termos e possibilidades de suas relações. Estas possibilidades não são, como quiseram entender certos leitores da teoria da mediação, baseadas em acordos ou consensos construídos pacificamente ou sem a existência de conflitos. As noções de acordo e consenso aqui mobilizadas dizem respeito aos resultados de negociações práticas e simbólicas eivadas de disputas, mas que, de um modo ou de outro, permitiram o início ou a continuidade da convivência.

Por fim, Paula Montero em Selvagens, civilizados, autênticos nos brinda com um texto, ao mesmo tempo, denso, saboroso e emocionante. Denso pelas razões já expostas acima e por conta da maneira como tece relações entre temas, contextos e teorias. Saboroso porque bem escrito e envolvente. Emocionante pelas aventuras narradas e por colocar em cena o rigor acadêmico, a seriedade da análise, a clareza com que os argumentos são demonstrados e a provocação que sempre marcaram o estilo desta que é mestre no verdadeiro sentido do termo.

Melvina Afra Mendes de Araújo é professora de ciências sociais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Pesquisa (Cebrap).

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