Passados 50 anos do golpe de 1964, ainda ecoa em alguns setores da sociedade a imagem dos tanques deslocando-se às escuras pelas ruas de Juiz de Fora, Minas Gerais, rumo ao Rio de Janeiro — então um dos centros da política brasileira —, cercados por tropas comandadas pelo general Olympio Mourão Filho, como se o golpe que derrubou o então presidente João Goulart, o Jango, e afundou o país numa ditadura de mais de duas décadas tivesse sido resultado de uma engenharia política unilateral, imposta de cima para baixo pelos militares. Estudos recentes, produzidos em diferentes áreas, têm procurado aprofundar o conhecimento sobre as condições, processos e ações que culminaram na queda de Goulart, à medida que fortalecem a corrente crítica de que o golpe teria sido fruto de uma crise política que envolveu diferentes atores. Assim, tem sido cada vez mais recorrente entre historiadores, sociólogos e cientistas políticos atribuir ao golpe uma natureza também civil, e não só militar.
Leia mais: |
“A participação de grupos civis no golpe hoje é inegável, assim como o apoio de setores civis à ditadura”, afirma a historiadora Miriam Dolhnikoff, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH- USP). “A questão é que critérios utilizar para caracterizar o regime que se instalou em seguida. Se houve participação e apoio civil, é importante destacar que os militares mantiveram o controle das decisões políticas em suas mãos.”
Para o historiador Marcos Napolitano, também da FFLCH-USP, o regime que se seguiu ao golpe deve ser qualificado apenas pela sua natureza militar. “A construção do regime foi centralizada nas Forças Armadas. Após o golpe, os civis foram colocados em segundo plano, do ponto de vista político”, explica. Isso não quer dizer que os civis não foram beneficiários do regime. Muitos empresários e políticos, entre outros, foram sócios da ditadura. Já o golpe de 1964, ele diz, teria sido resultado de uma ampla e complexa coalizão, na qual os civis desempenharam um papel fundamental, “embora os agentes principais, ainda assim, tenham sido os militares”.
Napolitano é autor do recém-lançado 1964: histórias do regime militar brasileiro (Contexto), livro em que faz um balanço histórico dos anos do governo de João Goulart, da configuração do movimento que desencadeou o golpe e do regime militar que o seguiu. O livro é resultado de trabalhos de mestrado e doutorado orientados por ele, e também de um projeto voltado à avaliação da transição da crise política do governo de Jango para o golpe de 1964. Nele, Napolitano e seu orientando de mestrado, David Ribeiro, analisaram teses acadêmicas que explicavam o golpe sob a justificativa de que ele teria sido resultado da radicalização de seus autores ou da falta de compromisso com a democracia, apresentando o protagonismo exercido pelo Poder Legislativo no processo de formulação, execução e legitimação do golpe. Além de potencializar os conflitos ideológicos da sociedade, as decisões políticas tomadas no Congresso Nacional em meio aos debates sobre as reformas teriam sido cruciais para o desgaste e isolamento político de Goulart, segundo eles.
O envolvimento de outros setores civis também foi fundamental para desestabilizar o governo de Jango, preparar o clima do golpe e legitimar a ação dos militares. Empresários, a Igreja Católica e a própria Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), por exemplo, foram a favor da intervenção militar. A conclusão é da historiadora Denise Rollemberg, do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), no Rio de Janeiro. No artigo “Memória, opinião e cultura política – A Ordem dos Advogados do Brasil sob a ditadura (1964-1974)”, publicado no livro Modernidades alternativas, organizado pelo historiador Daniel Aarão Reis, da UFF, ela relata que, em 7 de abril, o Conselho Federal da OAB, em reunião, comemorou a vitória do movimento golpista, aliviado por estar do “lado das forças justas”.
O artigo é resultado de um projeto maior, desenvolvido por Denise no Núcleo de Estudos Contemporâneos (NEC) da UFF e financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Nele, a pesquisadora faz uma análise das declarações oficiais de várias instituições nos primeiros meses após o golpe. A Comissão Central da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) divulgou, em julho de 1964, a “Declaração da CNBB sobre a situação nacional”, em que se posiciona afirmando que “atendendo à geral e angustiosa expectativa do povo brasileiro, que via a marcha acelerada do comunismo para conquistar o Poder, as Forças Armadas acudiram em tempo, e evitaram que se consumasse a implantação do regime bolchevista em nossa terra”. Segundo Reis, as lideranças eclesiásticas cristãs conservadoras, como a Igreja Católica — à exceção de alguns bispos e da Ordem dos Dominicanos —, ajudaram ainda a impregnar a luta política com valores religiosos. “Para eles, era preciso não só ‘salvar a democracia’, mas também ‘salvar a civilização cristã’, agitando-se, assim, o espantalho do comunismo.”
Por sua vez, a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) não formalizou seu apoio, como o fizeram a OAB e a CNBB, conta Denise. Mas a leituras das atas das reuniões ordinárias e extraordinárias e do boletim de seu conselho administrativo sugere certa diversidade de posições nos debates.
A imprensa
A imprensa tornou-se peça-chave na conspiração contra Goulart em fins de 1963, segundo Marcos Napolitano, quando três dos principais jornais cariocas — O Jornal, dos Diários Associados, Jornal do Brasil, da família Nascimento Brito, e O Globo, da família Marinho — uniram vozes na chamada Rede da Democracia, um arranjo midiático a favor da destituição do governo de Goulart. O movimento era inspirado no seu contrário, a Rede da Legalidade, organização de resistência liderada três anos antes por Leonel Brizola, à época governador do Rio Grande do Sul, contra a quebra da legalidade constitucional articulada pelo Exército, Marinha e Aeronáutica na tentativa de impedir que Jango assumisse o governo após a renúncia de Jânio Quadros, em 1961.
A exemplo da rede de Brizola, a Rede da Democracia usou o rádio para ajudar a enfraquecer o governo Goulart. Todos os dias, explica o pesquisador, subsidiados por organizações como o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipes) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), políticos, empresários, militares, jornalistas e sindicalistas, entre outros, articulavam-se em oposição ao então presidente, em discursos em defesa do nacionalismo contra o comunismo, críticas à ineficiência do Congresso, à falta de legitimidade de Jango e ao perigo de o governo ceder às pressões das manifestações de massa e dos movimentos populares. Meio século depois, a Rede da Democracia tem sido objeto recorrente de estudos, atraindo a atenção de historiadores que tentam entender até que ponto ela influenciou o processo de disputa pelo controle do Estado por meio da doutrinação ideológica voltada à desestabilização do governo de Goulart. O trabalho mais recente é o do historiador Aloysio Castello de Carvalho. Em sua pesquisa de pós-doutorado em história social na USP, cujos resultados foram publicados no livro A Rede da Democracia: O Globo, O Jornal e Jornal do Brasil na queda do governo Goulart (1961-1964), ele procura identificar padrões discursivos na retórica conservadora e antirreformista usada pelos jornais nas críticas ao governo de Jango (ver Pesquisa FAPESP nº 181).
Mas não foi só por meio de coalizões que a imprensa se articulou para desestabilizar Goulart e consolidar a ideia de que o país caminhava para o comunismo. Além do Jornal do Brasil e O Globo, o Correio da Manhã foi um dos mais importantes jornais brasileiros da época, não só quanto ao aspecto empresarial, mas também com relação à sua participação na política nacional. A historiadora Maria Helena Capelato, professora da FFLCH-USP e há muito envolvida com estudos sobre a história da imprensa no Brasil, tem analisado as manchetes e títulos de editoriais e artigos da grande imprensa durante o período que antecedeu ao golpe.
O Correio da Manhã publicou dois textos que entraram para a história, segundo ela. Um editorial intitulado “Basta!”, em 31 de março de 1964, conclamava a renúncia de Goulart, sob o argumento de que o presidente contribuíra para cultivar a intranquilidade e a insegurança entre a classe produtora, desregular a inflação e desagregar as Forças Armadas por meio da indisciplina. Um dia depois, em 1° de abril, outro editorial publicado pelo jornal, com o título “Fora!”, indicava o clima de radicalização política ao qual o país havia chegado. Para Maria Helena, os textos dos dois editoriais demonstram o intenso envolvimento dos representantes do jornal no golpe. “Os títulos mostram o impacto que certas expressões têm. Alguns autores, por exemplo, se referem a elas como ‘palavras balas’, devido à sua capacidade de atingir o cérebro do leitor”, diz. Ela explica que em pesquisas historiográficas sobre o regime militar os jornais são usados apenas como fonte, sendo raros os trabalhos que os utilizam como objeto específico de estudo. “A imprensa em geral e os jornais da grande imprensa brasileira em particular foram atores de extrema relevância naquele período.”
A pesquisadora acaba de escrever um artigo sobre a participação da imprensa no golpe para a coletânea Histórias do tempo presente, organizada pela historiadora Marieta de Moraes Ferreira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), prestes a ser lançada pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getulio Vargas (FGV). Em março, Maria Helena coordenou um simpósio internacional, intitulado O Golpe de 1964 e a Onda Autoritária na América Latina, na USP, com apoio da FAPESP.
Por outro lado, a historiadora ressalta que alguns dos jornais que apoiaram a intervenção dos militares, entre eles o Correio da Manhã, condenaram o empastelamento, por exemplo, do Última Hora após os militares tomarem o poder. Segundo ela, as publicações que aplaudiram o golpe, a exemplo de outros setores civis, clamavam por uma intervenção cirúrgica que restaurasse a ordem e devolvesse o poder ao povo. “Logo a imprensa percebeu que o caminho seria diferente. Foram censurados e, então, passaram a participar dos movimentos pela redemocratização anos mais tarde”, comenta.
A postura do Jornal do Brasil durante a primeira fase do regime foi diferente da assumida pelo Correio da Manhã. O jornal comemorou a vitória dos golpistas em manchetes como a de 1º de abril: “De Norte a Sul vivas à contrarrevolução”. Dias depois da mudança no poder, conta Maria Helena, o jornal demonstrou entusiasmo em relação à posse do marechal Humberto de Alencar Castello Branco em manchete – “Rio festeja a posse de Castello” – e defendeu as cassações de políticos, alegando que elas eram fruto da crise vivida pelo país. Apoio igualmente explícito foi dado pelo O Globo, que, além de ajudar a legitimar o golpe, apoiou a ditadura ao longo dos anos. “A apologia do ‘milagre econômico’, expressa em editorial de 1984, por exemplo, pode ser entendida como uma tentativa de desviar a atenção dos leitores quanto aos benefícios que recebeu do poder nesse período”, diz Maria Helena. Em agosto de 2013, as Organizações Globo reconheceram que apoiar o golpe foi um erro.
A trajetória dos principais jornais de São Paulo seguiu a mesma toada. Segundo ela, num primeiro momento, O Estado de S.Paulo apelou à intervenção militar, aplaudiu a Marcha da Família com Deus pela Liberdade — série de manifestações civis promovidas entre março e junho de 1964 contra o comunismo, o governo e sua agenda reformista — e festejou o sucesso do golpe. Ao longo da ditadura, porém, o jornal assumiu uma postura crítica e sofreu com a censura. É bastante conhecido o recurso da publicação dos poemas de Camões e das receitas de bolo no lugar das notícias censuradas. Nos anos finais do regime, conta Maria Helena, o jornal participou da luta pela redemocratização do país e “até hoje se vangloria de ter lutado pela volta da democracia no Brasil”.
Já a Folha de S.Paulo, segundo a historiadora, fez críticas moderadas ao governo e às reformas de Goulart, mas também apoiou a marcha, manifestou-se a favor do golpe e, em seguida, fez elogios ao novo presidente Castello Branco. “A Folha de S.Paulo apoiou o golpe, mas assumiu uma postura mais reservada quanto ao novo regime”, comenta. “É possível supor que essa atitude foi adotada para não pôr em risco o patrimônio da empresa e a reputação do jornal.” Ela explica que com o Ato Institucional nº 5, o AI-5, que deu poderes absolutos aos militares, a Folha optou pela autocensura, chegando depois a colaborar com os agentes da repressão encarregados das prisões e torturas — ao todo, o Estado brasileiro foi responsável pela morte de 426 pessoas entre 1964 e 1985, segundo a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. Já os dados oficiais da Presidência da República mostram que 475 processos envolvendo vítimas da ditadura militar passaram pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos da Secretaria Nacional de Direitos Humanos. Em editorial publicado em 30 de março de 2014, a Folha também reconheceu que, “aos olhos de hoje, apoiar a ditadura militar foi um erro, mas as opções de então se deram em condições bem mais adversas que as atuais”.
Ecos da conspiração
Para o cientista social Paulo Ribeiro da Cunha, professor da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Marília, houve avanços importantes quanto à produção científica, pautada em pesquisas e livros, voltada à reflexão do período da ditadura, embora admita que “ainda há muito por resgatar”. Mas para o historiador Carlos Fico, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ e coordenador de história na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), apesar do crescente interesse de jovens historiadores e estudantes de graduação em história pelo período ditatorial, boa parte dos projetos de mestrado e doutorado na área não se propõe a estudar os processos que levaram ao golpe.
Ele cita um levantamento do Grupo de Estudos sobre a Ditadura Militar da UFRJ, que verificou que entre 1971 e 2000 foram produzidas 214 teses de doutorado e dissertações de mestrado sobre a história da ditadura militar, 205 delas no Brasil. Segundo Fico, um estudioso da produção historiográfica brasileira a respeito da ditadura militar, o crescimento do número de investigações sobre a temática é visível, em parte devido ao aumento de alunos que ingressaram na universidade. Entre 1971 e 1975, por exemplo, foram defendidos apenas dois trabalhos. Já entre 1986 e 1990 houve 47 defesas. Entre 1996 e 2000 foram registradas 74 teses e dissertações. Os principais focos de interesse foram os movimentos sociais urbanos, temas da arte e da cultura, economia e assuntos relacionados à esquerda e à oposição em geral. Em seguida vêm a imprensa, a censura e o movimento estudantil. Durante todo esse período, ele ressalta, apenas seis estudos focaram a natureza do golpe.
Essa produção historiográfica reforça a tese de que o discurso antigovernista da imprensa encontrou adeptos em muitos segmentos civis, diz Napolitano, que atualmente coordena um projeto de pesquisa, apoiado pelo CNPq, voltado ao estudo do processo de construção e adensamento da memória sobre o regime militar construída pela imprensa a partir de 1974. A alegação de corrupção — como hoje, atribuída quase sempre ao populismo da esquerda — e a incompetência administrativa de Jango marcavam o tom das críticas de setores sociais amedrontados pelo que julgavam ser a “proletarização” do país. Para Napolitano, esse discurso, na verdade, serviu para encobrir velhos interesses. “A ascensão dos ‘de baixo’ é sempre vista como ameaça aos que estão nos andares de cima do edifício social.” O historiador se refere às reformas de base, uma das marcas do governo Goulart.
Para Marco Antonio Villa, professor aposentado do Departamento de Ciências Sociais do Centro de Educação e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Jango nunca definira claramente essas medidas. Em seu livro Ditadura e democracia no Brasil (Zahar), no entanto, o historiador Daniel Aarão Reis verificou que o reformismo de Goulart previa a distribuição da terra por meio do rompimento de monopólios; o crescimento planejado das cidades, combatendo a especulação imobiliária; a criação de um sistema estatal para o financiamento de atividades que garantissem a autonomia nacional; e a incorporação do voto de soldados, graduados das Forças Armadas e analfabetos, entre outros pontos. Reis, no entanto, afirma que é preciso relativizar o papel de Jango nesse ponto da história. “O programa das reformas de base foi estruturado por uma ampla frente de movimentos sociais e lideranças políticas”, afirma. “Diante dele, Goulart sempre hesitou e tergiversou. Foi só em seus últimos meses de governo que ele começou a inclinar-se às posições reformistas.”
Em seu livro, fruto de uma intensa revisão bibliográfica, Reis explica que essas medidas, no entanto, não foram suficientes para que seu projeto tivesse apoio unânime, ao passo que a opinião mais conservadora começou a se articular em grupos de pressão, cujas críticas intensificaram-se ante a apresentação do Plano Trienal, uma combinação de estímulos e restrições elaborada por Celso Furtado, então ministro do Planejamento, para incentivar o desenvolvimento e dominar a inflação. “O Plano Trienal foi abandonado no primeiro semestre de 1963. E, em meio à turbulência política, a inflação não parou de crescer. Em 1960 estava em 30,5%. Um ano depois foi para 47,8%. Em 1962 saltou para 51,6%”, afirma Marco Antonio Villa, cujas pesquisas deram origem ao livro recém-lançado Ditadura à brasileira – A democracia golpeada à esquerda e à direita (LeYa).
O país dividira-se. Manifestações civis espalhavam-se em vários estados. No dia 19 de março de 1964, a primeira Marcha da Família com Deus pela Liberdade reuniu cerca de 500 mil pessoas no centro de São Paulo, entre elas lideranças da classe média e da Igreja Católica e políticos, como Ulysses Guimarães, um dos líderes da marcha, segundo Reis. Outras manifestações seguiram-se dias mais tarde, como a de Santos, litoral paulista — ainda pouco estudada, de acordo com Napolitano. Em suas pesquisas, o historiador identificou mais de 100 entidades civis que saíram às ruas contra o comunismo e a agenda reformista de Jango, entre elas a Organização pela União Cívica Feminista, entidade conservadora e anticomunista da época.
Golpe final
Efetivado o golpe, veio a cartada final. Não dos militares, “mas da instituição que, a rigor, deveria defender a legalidade constitucional: o Congresso Nacional”, destaca Paulo Cunha. Em 2 de abril de 1964, em meio a manifestações como a Marcha da Vitória, no Rio, foi declarada a “vacância” de Goulart, que ainda estava no Rio Grande do Sul, prestes a exilar-se no Uruguai. Em termos práticos, diz Cunha, “o Congresso determinou que o país estava sem presidente, sendo que o presidente ainda estava no Brasil”. Dias depois, em 11 de abril, os parlamentares elegeram Castello Branco para ocupar o posto de Goulart. “No contexto de polarização política, o Congresso teve maior responsabilidade pelas medidas que não tomou, já que não foi capaz de gerenciar a crise política ou negociar saídas institucionais democráticas”, conclui Miriam Dolhnikoff, também pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), fundado logo após o AI-5 por professores aposentados compulsoriamente pelo regime.
Jango não resistiu ao golpe, mas poderia tê-lo feito, pondera Cunha. Segundo ele, Goulart tinha apoio social e, inclusive, de alguns comandos importantes nas Forças Armadas. Cunha tem coordenado, desde 2004, um projeto com o objetivo de estudar a intervenção política de militares de esquerda e comunistas ao longo do século XX e, particularmente, o papel do setor militar do Partido Comunista Brasileiro (PCB), o Antimil, nas Forças Armadas. O projeto se baseia em entrevistas, leituras da imprensa e fontes documentais. Mais recentemente, o pesquisador procura resgatar a história da Associação Democrática e Nacionalista dos Militares (Adnam), entidade formada por militares cassados cuja expressão política, segundo ele, foi a continuidade de uma atuação da esquerda militar no pós-64 no sentido de conquistar a anistia e a democracia.
Além do respaldo de parte dos militares, Jango também contava com apoio popular. Segundo Napolitano, dados do Ibope de março de 1964 mostram que o presidente tinha boa aprovação pública nas principais cidades do Brasil, com 45% de “ótimo” e “bom” na avaliação de governo e 49% das intenções de voto caso fosse candidato em 1965 — a reeleição à época era proibida. Apenas 16% consideravam seu governo “ruim ou péssimo” e 59% eram favoráveis às reformas apresentadas nos comícios de 13 de março, na Central do Brasil, no Rio.
Para Carlos Fico, João Goulart decidiu não resistir por várias razões. Entre elas porque o Congresso o impediu, e também porque já não contava mais com apoio de setores militares. “O próprio Jango era de índole pacifista. Qualquer tentativa de conter o golpe poderia desencadear uma guerra civil”, avalia o historiador. Segundo ele, a principal razão para Goulart não resistir talvez tenha sido o fato de, na manhã de 1º de abril, o ex-ministro da Fazenda San Tiago Dantas tê-lo avisado de que os Estados Unidos (EUA) reconheceriam e apoiariam um governo alternativo ao dele. Fico é coordenador de um projeto de pesquisa com o objetivo de ampliar a compreensão dos sistemas repressivos da ditadura militar brasileira e entender a influência dos EUA nas ditaduras do Brasil e da Argentina. Seus estudos deram origem, entre outros, ao livro O Grande Irmão: da Operação Brother Sam aos anos de chumbo – O governo dos Estados Unidos e a ditadura brasileira (Civilização Brasileira), editado em 2008.
De acordo com Fico, os principais achados sobre a participação dos EUA no golpe de 1964 foram divulgados entre os anos de 1970 e 1980, como a descoberta da Operação Brother Sam, que consistiu na disponibilização de suplementos militares, incluindo um porta-aviões, aos golpistas. “Os EUA viam Goulart com enorme desconfiança. Eles não queriam uma segunda Cuba na América Latina”, explica. “O governo Kennedy auxiliou a configuração do golpe. Mas com a não resistência de Goulart o uso desse aparato não foi necessário.”
Fico obteve recentemente o plano de contingência discutido pelo embaixador norte-americano Lincoln Gordon com o Departamento de Estado em dezembro de 1963, o qual sustenta a tese de que Kennedy poderia intervir, se necessário. Essa discussão vem sendo retomada mais recentemente, diante da divulgação de novos documentos, antes sigilosos, sobre a participação dos EUA no golpe de 1964 (ver matéria). Em entrevista recente, o cientista político e brasilianista Thomas Skidmore, da Universidade Brown, nos EUA, afirmou ter sido informado do golpe um dia antes, em 31 de março, num jantar com Gordon, no Rio. Em 2006, Skidmore doou seus arquivos pessoais, com cerca de 6 mil documentos, em português e inglês, para a Brown — os arquivos podem ser acessados no endereço http://library.brown.edu/collections/skidmore/.
Por mais que as pesquisas sobre a época tenham avançado, ainda há lacunas na história que precisam ser investigadas. “A própria participação do Congresso carece de estudos mais específicos”, comenta Cunha. O mesmo pode ser dito sobre a participação dos empresários antes, durante e depois do golpe — ainda muito pouco estudada. Para Carlos Fico, muitos veem o golpe como evento inaugural da ditadura. Na verdade, diz o historiador, ele foi a expressão de um autoritarismo que por muito tempo rondou o país. “Esse evento-chave da história do Brasil ainda precisa ser melhor estudado”, conclui. Reis, por outro lado, ressalta que ainda é preciso entender melhor as conexões da ditadura com as lideranças sindicais — urbanas e rurais. “Há um tabu sobre o assunto, mas ele tende a cair nos próximos anos”, afirma. Segundo ele, sem compreender a ditadura como um constructo social e histórico, se avançará muito pouco no entendimento do período ditatorial.
Projetos
1. Da crise política ao golpe de Estado: conflitos entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo durante o governo de João Goulart (nº 2013/25214-3); Modalidade Auxílio Publicação Regular – Livro Brasil; Pesquisador responsável Marcos Francisco Napolitano de Eugenio (FFLCH/USP); Investimento R$ 6.000,00 (FAPESP).
2. Da renúncia ao golpe: a consolidação do projeto golpista no Congresso Nacional (nº 2010/14533-2); Modalidade Bolsa no País – Regular – Mestrado; Pesquisador responsável Marcos Francisco Napolitano de Eugenio (FFLCH/ISP); Bolsista David Ricardo Sousa Ribeiro; Investimento R$ 25.752,10 (FAPESP).
3. O golpe de 1964 e a onda autoritária na América Latina (nº 2013/21149-2); Modalidade Auxílio Organização – Regular; Pesquisadora responsável Maria Helena Rolim Capelato (FFLCH/USP); Investimento R$ 20.766,76 (FAPESP).