Os fatos imediatos que definem o golpe civil-militar de 31 de março de 1964 estão contados à exaustão e suas imagens mais emblemáticas, além de terem sido generosamente servidas à opinião pública por diferentes meios de comunicação e com distintos enfoques nas últimas semanas, permanecem na web à disposição dos que desejam acessá-las com mais vagar, em um ritmo reflexivo mais particular. Entre essas imagens está a filmagem em preto e branco do presidente do Congresso Nacional, o senador paulista Auro Soares de Moura Andrade, declarando, na madrugada de 2 de abril, a vacância da Presidência da República – mesmo encontrando-se o presidente constitucional do país, João Goulart, em território nacional – numa tumultuada sessão parlamentar em que se ouvem com clareza os xingamentos dirigidos pelo senador mineiro Tancredo Neves a seu colega paulista e os gritos reiterados de “golpista” que partem de alguém em outra parte do auditório. Na sequência, se veem meio confusamente as cusparadas lançadas pelo deputado Rogê Ferreira no rosto de Moura Andrade, antes que este deixe o plenário e se dirija ao Palácio do Planalto para empossar o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, na Presidência da República. Emblemáticas são igualmente as imagens dos tanques do Exército ocupando o centro do Rio de Janeiro ou a praça dos Três Poderes, em Brasília, ou, dias depois, as do líder comunista Gregório Bezerra, ferido, sendo arrastado no chão por soldados, pelas ruas de Recife.
Especial sobre a ditadura |
Entretanto, nas últimas décadas, a pesquisa em ciências humanas e sociais no Brasil, circunscrevendo-se a seu campo próprio e, para isso, valendo-se também e legitimamente de outras fontes confiáveis de investigação, tratou de conhecer e decifrar, para além das imagens, o golpe de 1964 e a ditadura que a ele se seguiu por 21 anos. Historiadores, sociólogos, antropólogos, cientistas políticos, economistas e pesquisadores do direito formularam as perguntas que julgavam cruciais, propuseram hipóteses, lançaram-se a estudos, e desse labor resultaram algumas questões amplas que parecem compor os eixos fundamentais por onde avança o conhecimento do período, alguns com mais densidade, outros ainda com certa rarefação de respostas, a exigir novas pesquisas. Entre estes, podem-se alinhar: 1. qual a real natureza do golpe de 1964 e quais os seus agentes; 2. quais os ordenamentos jurídicos e institucionais que permitiram à ditadura brasileira de 1964-1985 um funcionamento distinto de outras ditaduras do continente; 3. como a ditadura se insere organicamente no processo histórico do Brasil; 4. quais os impactos da ditadura sobre a sociedade brasileira, sobre suas instituições e o desenvolvimento econômico; 5. quais os efeitos da ditadura sobre a cultura e a produção cultural brasileiras.
Ao entrar, aproveitando os 50 anos do golpe de 1964, no vasto e denso matagal da pesquisa norteada por tais eixos, com a determinação de trazer à luz o que de mais relevante se produziu até aqui neste campo complexo, polêmico e gerador de distintas paixões, Pesquisa FAPESP contou desde o início com alguns guias fundamentais para o percurso: os historiadores Maria Helena Capelato e Marcos Napolitano, ambos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), a socióloga Angela Alonso e a historiadora Miriam Dolhnikoff, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), o sociólogo Marcelo Ridenti, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp) e a cientista política Glenda Mezarobba, da FAPESP, atualmente cedida à Comissão Nacional da Verdade (CNV), que atuou também na edição do material. A partir das orientações deles, dezenas de pesquisadores foram ouvidos e ajudaram a construir o relato especial de Pesquisa FAPESP sobre os 50 anos do golpe de 1964 que se estende pelas próximas páginas.
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