Eduardo CesarGrande dama da historiografia nacional, Emília Viotti fez parte da carreira no exílio. Desse dissabor que o regime militar lhe impôs ela fala em duas entrevistas de arremate em Brasil: História, textos e contextos. Aí emerge como historiadora pioneira, estudante contestadora, docente engajada. Carreira de mulher dona do seu nariz, quando isso era desusado. E construída em par com o papel de mãe, conciliação problemática até hoje e quase impraticável no mundo masculino de outrora.
Nos anos 1940, quando ingressou na Universidade de São Paulo, os professores eram senhores. Nos 1970, contratada pela Universidade Yale, nos Estados Unidos, topou com clubes exclusivos para gentlemen. O universo de machos jamais a intimidou. Ao contrário. Sua ascensão célere se coroou com livre-docência sobre o escravismo brasileiro e sua crise, em 1964. O reconhecimento veio no convite para a aula inaugural da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP noutro ano fatídico, 1968. Ao que então disse sobre o projeto universitário do regime militar, Viotti tributa sua aposentadoria compulsória – um dos talentos que a ditadura expeliu dos campi e do país.
O golpe cortou vida e carreira. Da inflexão derivaram as purgações de imigrante, percalços de língua e costumes que, entretanto, não a impediram de galgar à posição cobiçada de professora da Universidade Yale.
Aposentada desse Olimpo, Viotti retoma o fio de sua meada. Esta coletânea de ensaios, arranjados sem sequência óbvia, com variadas datas (dos anos 1960 até hoje) e temáticas (da cultura à economia). Eles se amarram por remissões mútuas e à trajetória da autora e na recorrência de tópicas, que atravessam o livro.
Biografia é uma delas. Comparece no texto clássico sobre José Bonifácio, no qual vida e ações do homem se tecem com as da nação. O interesse pelos atores reaparece ao abordar Getúlio Vargas. Nos dois casos, líderes políticos fazem a história, mas não a fazem como querem. Suas estratégias e decisões são reconstruídas no esquadro de possibilidades e limites de suas sociedades, nos seus tempos. Vários ensaios do livro tramam biografia e contexto.
O esquadro reassoma nos capítulos sobre intelectuais e ideias. Em um, que discute Raízes do Brasil, sobra admiração por Sérgio Buarque de Holanda, a despeito da dissonância entre o ensaísmo virtuosístico dele e a preferência dela por um estilo seco, analítico. Noutro, de 1967, surge a tese, desenvolvida por Roberto Schwarz, das vicissitudes das ideias liberais entre nós: “Quando iniciei minha tese, queria entender como foi possível conciliar liberalismo e escravidão”, diz à página 293. E há ainda texto surpreendente que problematiza o ideário romântico e a questão de gênero no Império do Brasil.
Outra linha a atravessar os escritos é a orientação marxista, à qual a autora segue fiel. É o que arma Da senzala à colônia, de merecida fama, reavaliado aqui em ensaio autorreflexivo, mas que acaba nos dando o contexto historiográfico da produção de um clássico da historiografia. A temática da abolição gruda em vários artigos, ao falar do Partido Republicano Paulista ou no comentário ao trabalho de George Reid Andrews sobre o pós-1888. Viotti aí organiza a literatura que a sucedeu e dialoga com as novas gerações de historiadores que ora aprofundaram, ora se desviaram da trilha que abriu. Reconhece avanços, mas aponta limites das abordagens que trouxeram a cultura ao primeiro plano. De sua parte, segue atenta à dinâmica capitalista. Seu olho pende para os processos estruturais que constrangem os atores. São constantes as conexões entre política e economia e, em ensaios recentes, entre nacional e global.
Terceiro fio do livro é a política. Está por toda parte, na escolha de estadistas como assunto e na reconstrução de conjunturas brasileiras cruciais – Independência, Regência, Império, movimento republicano, Estado Novo, Revolução de 1932. Movimento que a leva à história do presente, discutindo o 11 de setembro, o Fórum Social de Porto Alegre, o neoliberalismo, os protestos de 2013.
Os ensaios provam a versatilidade de Viotti. Pouquíssimos trafegariam com igual desenvoltura por tantos campos e tempos. Seu trabalho lhe assegura posto de honra na historiografia brasileira. Uma senhora historiadora.
Angela Alonso é professora do Departamento de Sociologia da USP e presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). É autora, entre outros, de Flores, votos e balas: O movimento abolicionista brasileiro (Companhia das Letras, 2015).
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