Entre os anos de reinado do samba da primeira geração e a invenção da bossa nova havia um hiato na literatura acadêmica e musical brasileira. A tese de doutorado do historiador e músico Theophilo Augusto Pinto, professor do Centro Universitário de Belas Artes, em São Paulo, joga luz sobre um aspecto pouco conhecido e raramente estudado – o das gravações radiofônicas do período que vai do fim da Segunda Guerra Mundial até a segunda metade da década de 1950, destacando produtores, radialistas, arranjadores e instrumentistas que fizeram sua história. Até agora, segundo o pesquisador do Centro de Estudos de Música e Mídia (Musimid), ligado ao Programa de Pós-graduação da Universidade Paulista (Unip) e à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), os estudos se baseavam quase exclusivamente nos registros fonográficos (discos), mas não nas reproduções da programação radiofônica. Concluída em 2012 e defendida em 2013, a tese Gente que brilha quando os maestros se encontram – Música e músicos da “era de ouro” do rádio brasileiro (1945-1957) foi lançada em livro recentemente, com o mesmo título, pela Editora Alameda. Pinto é pós-doutorando na Unip e defendeu o doutorado sob orientação do professor Elias Thomé Saliba no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
Sobre o impacto do rádio como veículo de difusão, o pesquisador afirma que “ou as pessoas leem nos livros ou confiam na memória de alguém que viveu a época”. Segundo Pinto, que é graduado em música pela ECA-USP, o que havia nas gravações não é muito explorado. A história do mais importante veículo de difusão musical antes da televisão é mais conhecida pela fama dos programas de auditório, concursos de calouros, eleições das “rainhas” e “reis” do rádio e pelos cantores e cantoras de grande êxito popular como Orlando Silva, Ângela Maria, Dalva de Oliveira e Cauby Peixoto, entre outros.
O pesquisador analisa o rádio em seu papel aglutinador, exercido pela programação veiculada em tempo real (a música, a radionovela, o futebol). “A influência do rádio é muito diferente do papel exercido pela indústria fonográfica”, afirma Pinto. “Há o encadeamento das músicas com as falas e uma presença importante dos produtores.” Entre estes, o mais famoso na época, presente semanalmente na rádio Tupi do Rio de Janeiro, foi Almirante (nome artístico de Henrique Foréis Domingues), que, além de apresentador, também era cantor, compositor e, mais tarde, pesquisador de história da música popular brasileira.
Podcast: Theophilo Augusto Pinto
“O trabalho de Theophilo Pinto contribui para preencher uma lacuna na historiografia brasileira, que ainda não se concentrou como deveria na história do rádio e da TV”, diz o professor Marcos Napolitano, do Departamento de História da FFLCH-USP e integrante da banca examinadora do doutorado de Pinto. “Ele incorpora uma massa documental significativa e articula a história do rádio à história da música brasileira.” Para tanto, desde 2005 Pinto escutou 1.081 programas musicais das rádios Nacional e Tupi (as mais populares do período), com 4.861 músicas, sem contar programas jornalísticos e humorísticos e radioteatro. Essas gravações pertencem em parte ao catálogo da Collector’s Studios, editora e site brasileiros especializados na memória do rádio e dos discos dos anos 1940 e 1950 e que, associada ao acervo do Museu da Imagem e do Som (MIS) do Rio, recuperou mais de 1.200 programas. Outro tanto, também proveniente do MIS, foi digitalizado com ajuda de seus alunos da Universidade Anhembi-Morumbi, em São Paulo, onde o pesquisador lecionou entre 2001 e 2014, e é mantido na biblioteca da instituição.
O título do livro de Pinto reúne os nomes de dois famosos programas da Rádio Nacional do Rio de Janeiro: Gente que brilha, produzido e apresentado por Paulo Roberto (pseudônimo do médico José Marques Gomes), e Quando os maestros se encontram, idealizado e produzido por Paulo Tapajós, que era também compositor. Neste, os principais maestros da emissora – entre eles Radamés Gnattali, Lírio Panicalli e Léo Peracchi – demonstravam versatilidade e virtuosismo, criando arranjos inéditos para estilos variados de música. Gnattali é um dos nomes mais importantes do período, ao lado de Almirante e do compositor e radialista Ary Barroso. Crítico de um certo estilo de orquestração do samba influenciado pelo jazz, o autor de Aquarela do Brasil, no entanto, foi quem cunhou a expressão “samba de casaca” para definir a roupagem que o maestro deu a essa canção, o que a tornaria “digna de frequentar o palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro”.
Influência norte-americana
A apreciação histórica, a presença negra e a influência estrangeira são os três eixos em que Pinto fundamentou a pesquisa. No primeiro caso, o estudo contesta a ideia comum de que a música brasileira do período anterior à revolução estética da bossa nova era pouco sofisticada. João Gilberto não só cantou no rádio, como imitava o estilo de Orlando Silva. “Ele também disse que começou a se interessar por música ouvindo Aquarela do Brasil com arranjo de Radamés Gnattali na Rádio Nacional”, observa o pesquisador de rádio Eduardo Vicente, professor do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da ECA-USP.
Em relação à negritude (ou à “construção da etnicidade na música brasileira para o público no período”), associada também ao futebol, a análise do contexto histórico evidencia várias implicações de discriminação racial. De um lado havia a visibilidade do negro como artista e atleta, e de outro a atribuição de características da figura do malandro, o que contribuiu para reforçar o estereótipo da vadiagem. Em decorrência dessa visão redutora, conta o autor, durante o Estado Novo (1937-1945), com o samba (gênero musical de identidade nacional) associado à malandragem e à boemia e consequentemente visto com preconceito, abriu-se caminho para o que alguns radialistas chamaram de “nova febre folclórica”, quando artistas do Rio passaram a cantar músicas com temas rurais e de outras regiões do país.
Em uma frente paralela à do nacionalismo “folclórico”, a linguagem do jazz começou a marcar presença em certo tipo de música brasileira. O samba-canção, que se expandiu nesse período, tinha “a estrutura formal da canção de jazz”, como observa o pesquisador e músico Ivan Vilela, professor da ECA-USP: “Uma parte A cantada, seguida da parte B, depois um interlúdio instrumental com a melodia de uma das duas partes, então volta a parte A ou B, que não foi cantada e acaba a música”. Havia também o que a cientista social Santuza Cambraia Naves chamou no livro O violão azul: Modernismo e música popular (FGV Editora, 1998) de “estética do excesso” nos arranjos orquestrais, com “profusão de metais”, associados ao gênero norte-americano.
Na emergente “febre folclórica”, o baião em expansão no Sudeste também teve de se adequar a certos “cânones”, numa “atitude de etnocentrismo e dominação cultural” da classe média consumidora, como observa Vilela. “A primeira gravação de uma música de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, Baião, pelo conjunto Quatro Ases e Um Coringa, tem arranjo vocal típico de musical da Broadway.” Segundo Pinto, as gravações a que ele teve acesso indicam que, mesmo na época, o período estudado era visto como uma entressafra em que a música brasileira tinha qualidade discutível, o que levou à busca de novos gêneros e influências. Também por isso, Pinto considera que o rádio brasileiro do período áureo foi um espaço propício para a invenção. Ao driblar certa “precariedade tecnológica”, fazer rádio no país era um desafio diário “pela sofisticação que a programação impunha aos limitados recursos disponíveis”.
Livro
PINTO, T. A. Gente que brilha quando os maestros se encontram: Música e músicos da “era de ouro” do rádio brasileiro. São Paulo: Alameda, 2016, 308 p.