Podcast: Norma Ferreira
“Em carta de 1919 para um amigo, Lobato comentou que não havia nada para ler para os filhos dele a não ser o livro de fábulas de João Köpke. Ele se referia à qualidade das obras disponíveis, adaptações de obras europeias e mesmo livros de autores nacionais, mas não é a verdade absoluta”, diz Marisa Lajolo, professora da Unicamp e da Universidade Mackenzie, que retoma esse assunto no livro Literatura infantil brasileira: Uma nova/outra nova história (FTD-PUC Press, 2017), a ser lançado em abril, em coautoria com Regina Zimmermann. “Em 1920, Lobato recebe da gráfica que estava imprimindo a primeira edição de Narizinho arrebitado a informação de que o Primeiro livro de leitura, de Köpke, serviria de modelo para a impressão da história do sítio.” Segundo ela, Lobato fez mudanças radicais na literatura infantil, “como os modernistas de 1922 fizeram na literatura adulta”, e a partir da década de 1930 teve muito mais visibilidade que qualquer outro autor antes dele.
O filho mais velho de Köpke, Winckelmann Köpke (1886-1951), foi quem inicialmente guardou o original de 54 páginas de Versos para os pequeninos, já com os poemas manuscritos organizados em sequência e as respectivas ilustrações de página inteira, recortadas de outros livros, para servir como referência a quem as refizesse. Provavelmente Winckelmann o entregou a seu filho José, que o deixou com sua filha mais velha, Maria Izabel Köpke Ramos, bisneta de João Köpke. Uma das irmãs de Maria Izabel, Maria Lygia Köpke Santos, mencionou o livro em sua tese de doutorado, apresentada em 2013 na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (FE-Unicamp). Depois ela entregou os originais a sua orientadora, Norma Ferreira, professora da FE-Unicamp. Norma analisou os Versos em sua tese de livre-docência, apresentada em 2014 e agora publicada na forma de livro, com os poemas.
Depois de construir uma carreira respeitada de educador em escolas das cidades de São Paulo e Campinas, Köpke se mudou em 1886 para o Rio de Janeiro e criou o Instituto Henrique Köpke, assim chamado em homenagem a seu pai. O instituto era uma escola particular, que funcionou até 1897 e servia para ele lançar seus próprios livros de alfabetização e de leituras para crianças. Foi como diretor do instituto que Köpke se apresentou na abertura dos Versos, em grandes letras manuscritas. De acordo com Norma, seu propósito com o livro era oferecer uma leitura agradável para as crianças e aplicar o método analítico de alfabetização, que ele tinha desenvolvido em outros livros, o primeiro deles publicado em 1884 pela Francisco Alves.
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Os poemas consistem em histórias alegres e rimas simples, tratando da Lua, de avós, brincadeiras, brinquedos, animais e canções das crianças (leia trechos do poema O balanço). “Versos para os pequeninos, de forma mais contundente do que em suas obras editadas, oferecem outra faceta de João Köpke: a de um escritor que quer conquistar a criança-leitora com uma representação do universo infantil que questiona o conhecimento, a verdade e a realidade”, escreveu Norma em sua tese de livre-docência.
A seu ver, a liberdade e a informalidade dos poemas não se encaixavam nas propostas pedagógicas predominantes no início do século XX, que valorizavam poemas edificantes e crianças bem-comportadas, como as do Livros das crianças, da educadora paulista Zalina Rolim (1867-1961), de 1897. “Köpke era bastante crítico das propostas educacionais daquele período, como o plano pedagógico, adotado para a criação do Jardim da Infância, que, segundo ele, apresentava salas superlotadas e fechadas, intervalos curtos entre as aulas e professores inexperientes”, diz Norma. “A irreverência nos poemas se tornou uma marca do estilo de Lobato, décadas depois.”
João Felpudo no Brasil
Por sua vez, já no final de sua pesquisa de pós-doutorado na Universidade de São Paulo (USP), a historiadora Patrícia Raffaini investigava jornais antigos no site da Biblioteca Nacional no início de 2016 quando encontrou o anúncio “João Felpudo – Histórias alegres para crianças travessas com vinte e quatro pinturas esquisitas” na edição de 4 de dezembro de 1860 do Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro. O anúncio era um registro da primeira edição de um livro de muito sucesso lançado na Alemanha em 1844. Escrito pelo médico Heinrich Hoffmann para seu filho de 3 anos, trazia ilustrações generosas e histórias breves de crianças que recebem castigos severos por não gostar de banho ou de sopa. Patrícia encontrava o tradutor original, o desembargador Henrique Velloso de Oliveira (1804-1861), possivelmente um dos responsáveis pela adaptação do título original, Der Struwwelpeter, cuja tradução literal resultaria em Pedro descabelado.
Patrícia encontrou depois outros anúncios de João Felpudo no Jornal do Commercio, indicando uma das formas pelas quais a Editora Laemmert promovia a venda dos livros. Em 1894, como ela já tinha verificado, o editor fluminense Pedro Quaresma (1863-1921), dono da Livraria do Povo, investiu em anúncios de meia página para promover o relançamento de uma produção nacional, Contos da carochinha, já que os 5 mil exemplares da primeira edição teriam se esgotado em menos de um mês. Contos da carochinha inaugurava uma série de livros organizados pelo jornalista carioca Alberto Figueiredo Pimentel (1869-1914) com o propósito de apresentar em uma linguagem coloquial as fábulas de autores europeus, com animais falantes, lobisomens, santos e fadas. Com esses livros, Quaresma pretendia criar uma literatura infantil mais popular, com edições mais simples e de menor custo que as traduções refinadas das editoras Laemmert, de proprietários alemães, Garnier, de origem francesa, e da Francisco Alves, portuguesa.
“O mercado de livros para crianças e jovens prosperava no final do século XIX, um período no qual se acreditava que pouco ou quase nada estava à disposição dos jovens leitores”, diz Patrícia. “Os editores investiam nesse segmento e muitas obras, como João Felpudo, já haviam sido traduzidas. A produção de obras com autores nacionais estava começando.” Ela iniciou sua pesquisa com uma lista de 20 títulos de livros infantis publicados entre 1860 e 1920 identificados na Biblioteca Nacional e no Real Gabinete Português de Leitura, ambos no Rio. Três anos depois, após garimpar por sebos de todo o país, tinha reunido 70 títulos diferentes.
“Umas das precursoras da literatura infantil brasileira foi a romancista Júlia Lopes de Almeida (1862-1934)”, atestou Nelly Novaes Coelho, professora aposentada da USP e uma das maiores especialistas no assunto, no livro Panorama histórico da literatura infantil/juvenil (Amarilys, 2010). Em 1886, Júlia Lopes publicou Contos infantis, com 60 narrativas em verso e prosa escritas em colaboração com sua irmã Adelina Lopes Vieira, depois Histórias da nossa terra, de 1907, e Era uma vez, de 1917, todos com reedições. “Simultaneamente ao aumento de traduções e adaptações de livros literários para o público infantojuvenil”, Nelly Coelho escreveu em seu livro, “começa a se firmar, no Brasil, a consciência de que uma literatura própria, que valorizasse o nacional, fazia-se urgente para a criança e para a juventude brasileiras”. Ela também reconhece Pimentel como “o primeiro intelectual a popularizar o livro, através de edições mais acessíveis de autores clássicos”.
Além da crítica literária
Os escritores anteriores a Lobato já eram citados em vários livros e sites, como o Memória de Leitura, da Unicamp, que reúne 19 autores de 1880 a 1910 e suas obras mais importantes. Uma investigação mais profunda levará a uma representante de uma época ainda mais remota, Nísia Floresta (1809-1885), educadora potiguar que criou um colégio para meninas no Rio de Janeiro e escreveu poemas, romances e novelas – Conselhos à minha filha é de 1842 e as novelas Fany ou o modelo das donzelas e Daciz ou a jovem completa, de 1847.
O que pesquisadores de São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso, Ceará e outros estados têm feito é ampliar o olhar para além das narrativas dos livros. “Saímos do viés da crítica literária – que destaca apenas o que era bom – para a história cultural, que considera o que era lido, independentemente da qualidade, quem produzia, de que modo, em que lugar e quem consumia”, explica a historiadora Gabriela Pellegrino Soares, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e autora do livro Semear horizontes (Editora da UFMG, 2007), sobre a formação do mercado editorial de livros para crianças na Argentina e no Brasil. “Examinar as engrenagens da produção e circulação dos livros é um caminho muito fértil para conhecer as ideias e as representações do mundo em uma época”, ela acrescenta.
Livros para adultos e crianças circulavam principalmente nas capitais do Brasil, ao longo do século XIX, apesar do alto analfabetismo, que chegava a 80% da população de quase 10 milhões de pessoas em 1872, quando foi feito o primeiro censo demográfico nacional. Estima-se que o analfabetismo fosse menor, talvez de 50%, no Rio de Janeiro, a então capital do país. “Há uma intensa importação de livros para o Brasil, entre os quais infantis, desde o século XVIII”, diz Márcia Abreu, professora do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, coordenadora de um projeto de pesquisa sobre a circulação transatlântica de impressos (ver Pesquisa FAPESP no 240) e autora de Os caminhos dos livros (Mercado de Letras, 2003). “A leitura era uma das maiores fontes de entretenimento nessa época e os homens livres compravam vários livros por ano. Isso gerava uma forte movimentação editorial e comercial, com importação frequente de livros e, após 1808, também com muita impressão brasileira.”
Havia um mercado consumidor em formação, composto por um contingente cada vez maior de imigrantes, homens livres e profissionais liberais ou assalariados. Estima-se que 17 livrarias e 30 tipografias funcionavam na cidade do Rio de Janeiro em 1860. Hoje, mesmo com o fechamento contínuo de livrarias, a literatura infantil constitui um mercado pujante. Em 2014 foram publicados 37 milhões de exemplares de 7.802 títulos de livros para crianças, segundo a Câmara Brasileira do Livro.
Depois de Lobato
“Monteiro Lobato foi tão importante que apagou os escritores anteriores. Ninguém mais fala de Olavo Bilac e Tales de Andrade”, diz a jornalista Laura Sandroni, autora do livro De Lobato a Bojunga – As reinações renovadas (Agir, 1987), além de criadora e diretora por quase 20 anos da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Lobato se impôs com uma obra formada por 22 livros escritos em linguagem coloquial, irreverente e vibrante, tratando de problemas da época e não de um distante país do futuro, como nos livros escolares anteriores. Apoiados por uma propaganda intensa – o próprio Lobato separou 500 exemplares de Narizinho para enviar para escolas e acelerar sua aceitação –, seus livros ultrapassaram a tiragem de 1 milhão em 1943.
“Lobato era um gênio, como escritor e editor, e ele próprio construiu a ideia de que teria sido um pioneiro”, diz a historiadora Patrícia Hansen, atualmente vivendo em Lisboa. No acervo digital de jornais antigos da Biblioteca Nacional, ela encontrou um anúncio da edição de 15 de novembro de 1933 na revista O Tico-Tico, depois reproduzido em outras publicações, apresentando o História do mundo para crianças, o lançamento mais recente da Companhia Editora Nacional, e o escritor paulista como “o criador da literatura infantil no Brasil”. “Foi um marketing que deu certo”, concluiu Patrícia. “Não questionaram a fonte.”
Projeto
Leitura ficcional na infância, 1880-1920 (nº 13/00454-1); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Elias Thome Saliba (USP); Beneficiária Patrícia Tavares Raffaini; Investimento R$ 240.377,83.
Artigo científico
HANSEN, P. S. A biblioteca dos jovens brasileiros: Do caráter didático da literatura infantil aos usos dos livros pelas crianças no início do século XX. Escritos. v. 5, n. 5, p. 79-96, 2011.
Livros
SOARES, G. P. Semear horizontes: Uma história da formação de leitores na Argentina e no Brasil, 1915-1954. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
ABREU, M. Os caminhos dos livros. Campinas: Mercado de Letras/ALB/FAPESP, 2003, 382 p.
COELHO, N. N. Panorama histórico da literatura infantil/juvenil. São Paulo: Amarylis, 2010, 320 p.
SANDRONI, L. De Lobato a Bojunga – As reinações renovadas. Rio de Janeiro: Agir, 1987, 181 p.
FERREIRA, N. S. de A. Um estudo sobre os versos para os pequeninos, de João Köpke. Campinas: FAPESP/Mercado de Letras, 2017, 276 p.