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Arquitetura

Caminhos da reconstrução

Brasil terá apoio de especialistas da Unesco para reerguer Palácio de São Cristóvão utilizando técnicas modernas de segurança

Fachada do Palácio de São Cristóvão resistiu às chamas que consumiram o interior e quase todo o acervo da instituição

Ana Carolina Fernandes

As chamas do incêndio que consumiu o Museu Nacional atraíram a atenção – e a solidariedade – do mundo. Governos, museus e instituições de países como Alemanha, Itália, França, Espanha, Argentina, Estados Unidos e Canadá rapidamente se manifestaram, oferecendo ajuda. A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) trouxe ao Brasil, com recursos de seu Fundo Emergencial do Patrimônio, uma comissão multidisciplinar, com especialistas em gestão de desastres. A delegação fez visitas técnicas ao local e avaliou os estragos provocados pelo fogo. Liderado pela historiadora italiana Cristina Menegazzi, responsável pelo Programa de Salvaguarda de Emergência do Patrimônio Cultural Sírio, no escritório da Unesco em Beirute, no Líbano, o grupo deve auxiliar o país na definição dos próximos passos para a recuperação física do museu.

“Existem especialistas muito qualificados no Brasil. Vamos buscar outros, fora do país, para reforçar as competências locais, criar um conselho de experts, ligados às universidades e a ministérios da Cultura, e um fundo internacional para a recuperação do prédio e de pedaços do acervo encontrados entre os escombros”, disse Cristina. Depois de constatar que 90% da fachada segue em pé, ela não vê motivo que impeça o palácio de ser reconstruído. “Há muitos fragmentos, resto de estuque e de afrescos da construção.”

Reprodução do livro Debret e o Brasil – Obra Completa Aquarela de Debret, de 1817, mostra o casarão depois da primeira grande reforma. À direita, pavilhão em estilo neogótico, obra do arquiteto John JohnstonReprodução do livro Debret e o Brasil – Obra Completa

O prédio deve ser levantado dentro do padrão mais próximo do original. Com 13.600 metros quadrados distribuídos em três pavimentos, tinha arquitetura neoclássica e decoração eclética. “Mas nem sempre foi assim. O palácio passou por sucessivas reformas para abrigar a família real, desde que ela se mudou para o Brasil, em 1808”, conta o arquiteto Ronaldo Foster Vidal, do Instituto Brasileiro de Avaliações e Perícias de Engenharia (Ibape).

O prédio foi construído por volta de 1803, em estilo barroco, pelo traficante de escravos Elias Antônio Lopes (1770-1815). Uma obra assinada pelo arquiteto José Domingos Monteiro (1765-?), com provável participação de José da Costa e Silva (1747-1819), também arquiteto. “Tinha então dois andares”, conta Foster. “Para se adequar aos padrões da nobreza, passou por mudança de estilo e muitas ampliações até tornar-se a residência oficial dos imperadores dom Pedro I e II. ” A cada intervenção, o palácio foi ganhando linhas neoclássicas, inspiradas no Palácio Nacional da Ajuda, em Lisboa.

“As paredes que resistiram ao fogo são de pedra, sólidas. Para erguer novas paredes, na parte central da construção, será preciso trabalhar na fundação provavelmente com uma técnica italiana batizada de estaca raiz, elaborada para recuperar construções centenárias e históricas”, presume Foster. De acordo com ele, no lugar do conhecido bate-estaca, que produz muita vibração, poderá ser usada uma lâmina helicoidal, parecida com um saca-rolhas, para perfurar o solo. “Isso permitiria a colocação de novas colunas sobre as quais seriam apoiadas as chamadas lajes cogumelo, de aproximadamente 20 centímetros de espessura, que não precisam de vigas. Elas deverão ser sustentadas por pilares.”

Wikimedia Commons Vista lateral do prédio, entre 1858 e 1861Wikimedia Commons

A utilização dessa técnica possibilitaria que toda a infraestrutura – água, luz e telefonia – fique embutida. “Com os revestimentos do piso e teto acompanhando o estilo da época da construção, o prédio poderia ficar ‘velhinho em folha’”, brinca Foster. Segundo ele, o uso da laje cogumelo pode substituir perfeitamente o barroteamento, método adotado na época da construção, com peças de madeira sustentando o piso. A reconstrução do palácio tem sido estimada entre R$ 70 milhões e R$ 120 milhões.

A escolha dos materiais que serão utilizados na obra é fundamental. “Hoje temos tecnologia para dar mais segurança aos edifícios históricos. A madeira, por exemplo, pode ser tratada com uma pintura intumescente, que protege do fogo”, explica o arquiteto Pedro Mendes da Rocha, responsável pela recuperação do Museu da Língua Portuguesa, localizado no complexo da Estação da Luz, no centro de São Paulo, depois do incêndio, em dezembro de 2015.

Assim como no Museu Nacional, ali também o fogo se propagou devido à grande quantidade de material inflamável de suas estruturas. “Por isso reconstruímos o telhado com madeira certificada e com 2 centímetros a mais em todas as dimensões, que aguenta duas horas de fogo, tempo suficiente para, em uma eventualidade, retirar todo o público do prédio”, esclarece Rocha. Sistemas que utilizam gases capazes de conter focos de incêndio sem molhar ou danificar objetos ao redor e sensores de calor e fumaça que se comunicam via Wi-Fi com o sistema de monitoramento são alguns dos avanços tecnológicos disponíveis no mercado. “O uso adequado das tecnologias de proteção eleva o custo da obra em aproximadamente 30%”, estima Rocha. “Não é pouco, mas qual seria o valor de uma múmia como a que queimou ali?”

Wikimedia Commons O Palácio Nacional da Ajuda, construído em pedra e cal, em Lisboa, serviu de inspiração para as primeiras reformas do prédioWikimedia Commons

Envolvido atualmente na reforma de outros cinco museus, Rocha tem pesquisado novas técnicas e soluções em instituições culturais consideradas exemplos de excelência em conservação e segurança, como a Fundação Beyeler, na Basileia, Suíça, e o Museu do Louvre, em Paris, França. “Na Fundação Beyeler há uma espécie de cobertor de amianto embaixo de cada banco, em cada sala, usado para conter o início de focos de incêndio e uma brigada treinada, atenta e à disposição 24 horas por dia”, explica. Inaugurado em 1793 no antigo palácio da monarquia francesa, o Louvre possui 2 mil extintores de incêndio, 8 mil detectores de fumaça e os bombeiros estão espalhados em todas as alas para que, em caso de emergência, possam ter acesso rápido a qualquer lugar do prédio.

Quando o incêndio começou, o Museu Nacional já havia fechado para o público, os bombeiros brigadistas não estavam mais lá e quatro vigias faziam a segurança do prédio. Soube-se depois que a edificação nunca teve o obrigatório Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros, certificado de atendimento às normas de segurança da corporação.

Brasil dispõe de conhecimento técnico e especialistas em conservação de museus

Qualificação técnica
As dificuldades que envolvem a conservação e manutenção de museus, no Brasil, não derivam da escassez de conhecimento técnico sobre o assunto. O país dispõe de especialistas, inclusive na área de prevenção a incêndios. É o caso da arquiteta Rosaria Ono, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), responsável por estudo envolvendo locais de grande concentração de público, como o incêndio na boate Kiss, em Santa Maria (RS), onde 242 pessoas morreram e 680 ficaram feridas, há cinco anos.

Utilizando o episódio como ponto de partida, Rosaria investiga formas de minimizar as consequências de incêndios. Recentemente, iniciou um levantamento técnico das condições de museus localizados em prédios históricos no estado de São Paulo. Já visitou 10 instituições. “O grande desafio é entender as características de cada edifício e mapear as possibilidades de intervenção para aumentar a segurança, sem alterar sua arquitetura”, informa. Como quase todos foram construídos com parte da estrutura em madeira, uma das técnicas de proteção sugeridas é a de compartimentação dos espaços, com a criação de barreiras físicas, como paredes ou lajes, para contenção de eventuais focos de incêndio. “Em retribuição às instituições que têm aberto suas portas para a pesquisa, vamos entregar aos diretores sugestões para melhorar a segurança do patrimônio a curto, médio e longo prazo.”

Fernando Frazão/Agência Brasil Cristina Menegazzi (de vestido), chefe da missão da Unesco, durante visita aos escombros do palácio onde funcionava o Museu NacionalFernando Frazão/Agência Brasil

Integrante do mesmo grupo de pesquisa de Rosaria, a arquiteta Sheila Walbe Ornstein, também professora da FAU, lembra que a modernização da infraestrutura de edifícios históricos que abrigam acervos físicos relevantes é inevitável. “No passado não se pensava nem em reserva de água para conter incêndios”, exemplifica. “A modernização contribui para preservação e conservação do próprio edifício, com sua arquitetura de época, e dos acervos lá expostos ou guardados”. “No início, construções como a do Museu Nacional eram iluminadas com velas e lampiões”, lembra Jovanilson Faleiro de Freitas, engenheiro eletricista e coordenador das Câmaras Especializadas de Engenharia Elétrica do Sistema Conselho Federal de Engenharia e Agronomia/Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (Confea/Crea). “Desde então, muita coisa mudou no palácio. Veio a iluminação a gás e então a eletricidade, com fios revestidos de papelão impregnado de betume. E essa evolução é o pesadelo de todo prédio histórico, pois não há a devida atualização das instalações elétricas, colocando em risco toda a edificação.”

Para garantir a segurança dessas instalações, hoje a fiação, com bitola proporcional à energia utilizada, passa por dutos metálicos. Em caso de sobrecarga, disjuntores desarmam automaticamente o sistema, evitando curto-circuito. “Além de instalações adequadas, a manutenção não pode acontecer uma vez a cada década”, observa Rocha. Os museus precisam de equipes técnicas aptas a observar normas e atualizar padrões de segurança, inclusive para exposições avulsas, muitas vezes com características específicas, que os prédios costumam receber.

A manutenção de prédios históricos deve ser preventiva e constante

Quando pegou fogo, nove anos depois de passar por uma grande reforma, o Museu da Língua Portuguesa  abrigava uma exposição itinerante. O acidente foi causado por um curto-circuito, onde estava instalado um refletor. O fogo se espalhou rapidamente porque o espaço estava repleto de material cenográfico altamente inflamável: redes de dormir e 20 mil livros. “É muito importante ter uma equipe para fazer a gestão dos riscos”, constata Sheila, que se aproximou mais da realidade dos museus ao assumir a direção do Museu Paulista da USP, o Museu do Ipiranga, em 2012. Logo no início de sua gestão, a arquiteta deparou-se com fissuras associadas à umidade em fachadas, vedos e forros internos. O sinal vermelho foi dado quando o forro de uma das salas, constituído de argamassa e juçara – portanto muito pesado –, precisou ser escorado para que não desabasse. “O museu tinha também problemas de acessibilidade e segurança contra incêndio”, conta. “Depois de ouvir os especialistas integrantes da equipe, a direção do museu e seu conselho deliberativo ponderaram sobre os riscos da situação e consideraram que seria melhor fechá-lo aos visitantes, de forma preventiva, até que as adequações necessárias fossem implementadas”, recorda Sheila, que deixou a direção da instituição em 2016. A expectativa é de que as obras sejam concluídas em 2022 (ver reportagem).

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