Poetas, intelectuais, urbanistas têm sugerido que cidades têm sua alma, personalidade, espírito, biografia, vícios e virtudes. Mesmo o viajante ou o morador despretensioso pode concordar com isso. E, nos dizeres de José de Souza Martins, cidades têm coração. Esta palavra está no título de seu livro O coração da Pauliceia ainda bate. Coração não apenas como significado de amor, apego, mas no sentido mais profundo de memórias e histórias únicas inscritas em esquinas, trajeto de rios, praças, estátuas, arranha-céus assombrosos e tudo mais que apenas uma mente com curiosidade sociológica seja capaz de elevar à categoria de fato social
e histórico.
O livro reúne crônicas do autor, quase todas publicadas em O Estado de S. Paulo entre 2004 e 2013, algumas inéditas. Estão organizadas em temáticas que nos levam dos idos da Vila de São Vicente do século XVI até os anos 1930, quando São Paulo se levanta em armas contra o governo central. A beleza literária do texto permite começar a leitura por qualquer capítulo ou crônica. O efeito será o mesmo. Um imenso prazer, um ensinamento humano, o encontro com uma escrita mansa e refinada tocando um tema a princípio aleatório que vai parecer sempre familiar mesmo para quem nunca pisou na cidade. Sua primeira coluna, não por acaso, intitula-se “O espírito de São Paulo”.
Os trabalhos acadêmicos de Martins são sempre elegantes, agregam profunda capacidade de análise intelectual a sensibilidade social notável. A temática a que se dedicou nas ciências sociais fala de populações rurais, migrações, da travessia do mundo rural para o urbano, da intensa modernização por que passou o país gerando um agregado de trabalhadores urbanos, mas não de cidadãos. Religiosidade popular, cotidiano, justiça e injustiça tangenciam todas as suas análises. De minha parte, acho seu livro A aparição do demônio na fábrica uma obra-prima. Fala de um mundo que se torna industrial e moderno e carrega consigo santinhos ancestrais no peito e assombrações do mundo rural na alma. Por uma das muitas rivalidades acadêmicas que habitam o eixo Rio-São Paulo, Martins é mais lido em suas bandas: sorte de paulistanos e paulistas.
Com mais de 20 livros de análise sociológica na bagagem, o autor surpreende com o coração de sua pauliceia numa alusão apropriada à obra de Mário de Andrade (1893-1945) de 1922, Pauliceia desvairada. Por certo este livro é produto de anos de observação e de pesquisa histórica, atividade paralela à de sociólogo. Produto de quem quer e pode fazer parte do lugar em que vive com curiosidade, criatividade e imaginação.
Henri Lefebvre (1901-1991), um dos mais importantes estudiosos das cidades, trabalhou dois anos como taxista em Paris para poder conhecer recantos e detalhes da cidade. Não sei qual foi o método de Martins, mas imagino que ao longo da vida foi tomando notas, fotografando, pesquisando para depois compor com criatividade mágica a vida subjacente a qualquer manifestação da atividade humana por ele registrada. Seguiu à risca o lema de que nada que esteja em algum lugar está ali por acaso. Foi uma construção social, um ponto na história.
Sem meias palavras, há que registrar a impressionante capacidade de olhar para cada fragmento arquitetônico e espacial e a partir daí remontar à construção social de uma cidade que, não bastasse ser ela mesma um fenômeno, é o coração do Brasil. Suas crônicas falam de povos, línguas faladas em certas épocas, música, vestimentas, hábitos, dinastias familiares, autores clássicos nas letras e na música, peças de teatro, visitas científicas, encontros literários, vida universitária, hospitais e museus, Carnaval, manifestações religiosas, intrigas políticas, meios de transporte, mas, principalmente, da vida cultural e do cotidiano do trabalhador imigrante vindo de todas as partes e construindo uma grande cidade.
Chamo a atenção para as crônicas acerca das revoluções de 1924 e 1932. Detalhes ricos do envolvimento da cidade contra os presidentes Artur Bernardes (1875-1955) e Getúlio Vargas (1882-1954). Poucos ainda sabem o impacto dos bombardeios na cidade e seus custos em vidas humanas. Pouco se fala também dos ideais que embalaram esses movimentos. São Paulo, a locomotiva do Brasil, perdeu as duas guerras. O coração nunca se abateu.
Maria Celina D’Araujo é professora no Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
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