Diderot, D.W. Griffith e Alfred Hitchcock, Nelson Rodrigues, Glauber Rocha e Arnaldo Jabor. Em ensaios límpidos, o professor e crítico cinematográfico Ismail Xavier, 56 anos, explica as contribuições e a importância de cada um deles para o cinema em seu novo livro, O Olhar e a Cena (Cosac&Naify, 382 páginas). Fáceis de atravessar, os textos escritos entre 1988 e 2003 foram costurados para contar a passagem do teatro e da literatura para o cinema “num sentido amplo, que ultrapassa o caso da adaptação”, como diz o próprio autor.
Professor do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), no início de sua carreira Ismail Xavier ficou em dúvida entre a engenharia mecânica e o cinema. Fez os dois cursos simultaneamente na USP, o primeiro na Escola Politécnica e o segundo na ECA. Formado em 1970, decidiu cursar o mestrado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas orientado por Paulo Emílio Salles Gomes, um ícone na defesa do cinema nacional. No doutorado, recebeu a orientação de Antonio Candido, outro ícone, desta vez das letras e da cultura brasileira em geral.
Em 1982 tornou-se PhD em estudos de cinema pela Universidade de Nova York, onde também fez pós-doutoramento. Autor de vários livros e coordenador da coleção Cinema, Teatro e Modernidade, da Cosac e Naify, Ismail Xavier parece ter tomado a decisão certa ao optar pelo estudo do cinema, há 30 anos: hoje é um dos mais respeitados pensadores do cinema brasileiro.
Vamos começar falando de seu livro: há nele uma primeira parte teórica que aborda o desenvolvimento do cinema ao longo do século 20, a entrada no melodrama, as relações com as buscas de representação social daquele momento, e um pouco da relação do cinema com o teatro. Como se desenvolveu essa concepção?
Há dois lados da moeda que acabaram se combinando bem. Esse livro é uma coleção de artigos e ensaios, produzidos num longo período, de 1988 até 2003. Reuni nele todos os textos em que, seja no caso de análise de filmes específicos, seja no caso de textos mais teóricos, houvesse uma discussão sobre o problema da representação, entendido como aquela noção do olhar e da cena como pensada a partir do século 18. Há um momento na história do teatro em que surge a ideia de buscar maior vigor na questão da quarta parede – aquela parede imaginária, invisível, entre o público e o palco – e maior vigor na relação entre a cena bloqueada, demarcada, e a platéia. O que é fundamental nessa noção é a ideia de estabelecer um jogo no qual o ator faz tudo para um determinado olhar que ele sabe que está lá, mas que ao mesmo tempo ele aparenta ignorar. Então ele se exibe, mas ao mesmo tempo tem que aparentar absoluta auto-absorção. Isso é um princípio básico daquilo que a gente chama de representação burguesa criada a partir do século 18.
É aí que entra o Diderot (1713-1784).
Diderot é figura-chave porque, em primeiro lugar, fez a crítica do tipo de encenação que o teatro francês fazia da tradição clássica. Ele dizia: “Isso não é cena, isso aí é declamação, ninguém está preocupado em criar emoção, ninguém está preocupado em usar visualmente os recursos do teatro”. Havia uma excessiva primazia do texto. É curioso, porque eu mesmo estive uma vez na França vendo peças na Comédie Française, que é um teatro bem tradicional, e até hoje a encenação é extremamente tímida. Mesmo depois de dois séculos e meio, e de todo o enorme elenco de inovações do teatro moderno, você vai à Comédie Française e nota que os atores são muito discretos. É interessante o fato de que Diderot faz a crítica disso e pede ilusionismo, pede para que se tenha esse jogo que eu chamei da astúcia da representação, que é fingir com o corpo, com os gestos, com as palavras, aparentar uma situação natural, aparentar que se está vivendo aquelas emoções todas da personagem. E, nisso, Diderot formulou o famoso paradoxo do comediante, dirigido explicitamente ao ator. Isto é, ele tem que trabalhar com este jogo no qual aparenta estar vivendo a personagem, quando na verdade está simplesmente simulando. Houve uma demanda das platéias que se acostumaram com a ideia de que, se você tem uma cena no escritório de uma personagem, tem que ter a mesa, o aparato todo, o espaço cênico reproduzindo o que seria o ambiente da personagem, e esse é um dado que apareceu a partir dali.
O cinema seria o coroamento dessa expressão total da natureza da representação ou seria uma ruptura?
Quando o cinema aparece, tem as mais variadas opções para o uso da câmera, para produzir imagens. E há um período muito interessante, no final do século 19 e início do século 20, que até os historiadores chamam de cinema de atrações, porque tudo é possível. Podia-se – inclusive porque os filmes eram curtinhos – filmar uma corrida de cavalos, um passeio na cidade, viagens, uma luta de boxe, uma dançarina…
Até 1920 tem-se essa experimentação?
Até antes. O drama ganhou espaço e se transformou no que havia de principal num espetáculo cinematográfico a partir de 1910. Houve um ponto de inflexão, digamos, em 1908 mais ou menos, em que aquela variedade toda começa a desaparecer e esse filão ligado ao drama se consolidou como o grande gênero do espetáculo.
Isso já com o D.W. Griffith (1875-1948)?
Sempre me refiro ao Griffith porque é uma figura simbólica, mas não foi o único. Ele era o principal cineasta dos Estados Unidos, mas havia também, paralelamente, o mesmo tipo de desenvolvimento na França, na Itália.
E temos uma história que vai nessa direção até 1950.
É, praticamente. Isso permaneceu como uma conquista que está presente até hoje. O cinema industrial, o cinema que é a experiência do grande público, é o mesmo. Há pequenas mudanças de estilo, pequenas alterações no conteúdo das coisas, mas, em termos de princípio básico, isto que se consolidou entre 1908 e 1917 compôs um sistema de representação, vamos dizer assim, porque há determinadas regras e cuidados que têm que ser tomados. Há maneiras de estabelecer certas relações que se você não fizer desse jeito pode confundir o público em termos de construção de espaço, construção de tempo e de caracterização de personagens. E o gênero que mais fez avançar esse processo foi o melodrama.
Como o senhor recorta o melodrama dentro da experiência da narrativa dramática no cinema?
Dentro daquele princípio do Diderot, “é preciso ser ilusionista, é preciso dar importância à encenação”, há uma relação muito forte entre o gênero melodrama e essa ideia de que a visualidade do espetáculo, aquilo que é dado para o olhar, é o arcabouço maior dos efeitos procurados. Um melodrama em geral se caracteriza por dar muita importância à ação, ao enredo, às peripécias. Ao mesmo tempo dá importância à representação das emoções, tem uma marca toda de intensidade. O melodrama, gênero criado em torno de 1800, foi um tipo de peça escrita para ser falada normalmente como qualquer outra peça. Quando há essa ideia de que o que deve se expressar no teatro são as emoções, os sentimentos, e as lutas entre o bem e o mal, o corpo ganha muito mais importância do que antes. E os olhares também, porque a partir daí fica muito conveniente passar a construir o próprio enredo através de situações nas quais alguém vê alguma coisa, e essa visão traz novas revelações a respeito da situação das personagens. Então, o olhar não apenas passa a ter maior importância na relação entre a cena e o público, mas também na própria maneira como se desenham os conflitos entre as personagens. O olhar passa a ter um papel muito importante, que é o que acontece com o cinema.
Mas no cinema isso não se tornou ainda mais importante?
Obviamente, no cinema mudo essa questão do olhar foi potencializada e a busca do rosto na tela e aquilo que ele é capaz de expressar têm duas dimensões. Uma é a dimensão de expressar a interioridade, a emoção. Mas existe o outro lado, que é o de expressar uma intenção e um interesse da personagem. Nós todos, até hoje, quando vamos ao cinema, acompanhamos o desenvolvimento das ações, e olhar é um dos grandes indicadores que se oferecem para o espectador: as referências espaciais e aquilo que uma personagem investe numa relação ou deixa de investir, aquilo que demonstra os interesses etc. Quer dizer, a coisa mais normal até hoje no cinema é um dispositivo que desde aquela época foi criado, que é esse de você ter uma personagem que faz uma expressão qualquer e olha para alguma coisa, olha em off, e em seguida vem a resposta à idealização do espectador, porque, quando você tem uma imagem como essa, a primeira pergunta é: “O que é que ele está vendo?” Aí o cinema responde, o cinema clássico faz muito isso, esse jogo de pergunta e resposta o tempo todo.
Por que a escolha, em seu livro, particularmente de Alfred Hitchcock (1899-1980) como um dos pilares do cinema?
São dois pólos. O primeiro pólo é o fato de que, do ponto de vista teórico, o livro reúne uma série de textos nos quais o meu interesse é discutir essa passagem do teatro para o cinema. O pessoal que defendia o cinema como uma arte, que procurava convencer os intelectuais e o público de elite de que valia a pena assistir aos filmes e que aquilo era uma nova forma de expressão muito rica, partia da hipótese de que sua tarefa maior era separar o cinema do teatro. Era dizer: cinema não é teatro filmado. O eixo mais importante dessa passagem é o melodrama. Porque o cinema é a arte popular do século 20, tal como o melodrama era a arte popular do século 19. E hoje o melodrama continua sendo a arte popular, porque a novela de televisão, um grande espetáculo de grande audiência, é uma nova versão do melodrama. Eu faço uma discussão teórica na qual, em primeiro lugar, está lá Griffith como uma figura-chave da formação do cinema clássico, e está lá Hitchcock, porque é o apogeu. Se pegarmos a primeira metade do século, principalmente, o grande mestre capaz de se movimentar à vontade nesse sistema clássico e ao mesmo tempo comentá-lo dentro dos seus próprios filmes é o Hitchcock. Assistindo a seus filmes, temos um primeiro nível de experiência que é acompanhar a história normalmente. O segundo nível de experiência é observar de que modo aquela história é um grande comentário sobre o cinema.
E por quê?
No cinema de Hitchcock a questão do olhar vem ao centro. Muito do que acontece com as próprias personagens está vinculado à forma com que elas exercem o olhar, e de que modo, dentro do próprio filme, se dá essa relação entre o olhar e a cena. A questão toda de Hitchcock é a seguinte: olha, vocês estão aqui no cinema por quê? Não vamos ser moralistas, vocês estão aqui porque querem ver o crime. Se não virem, vão ficar frustrados. Vocês estão aqui porque querem, de uma certa forma, ter uma experiência na qual, identificados com as personagens, ou com as aflições das personagens, estarão cometendo um crime por procuração. O cinema não existe para dar lição de moral em ninguém, mas para oferecer a todos a oportunidade de canalizar a agressividade que todos têm para um momento que seria algo parecido com uma catarse. A teoria de Hitchcock é a seguinte: olha, é bobagem esse moralismo de ficar criticando a violência no cinema, porque o espectador não vai ao cinema para aprender ausar aquilo. O que nós temos de mais importante é que o espectador vai ao cinema para ter, entre aspas, aquela experiência vicária de viver a transgressão encarnada nas personagens e na violência que está lá na tela, é exatamente como forma de ter uma válvula de regulagem.
O Billy Wilder (1906-2002) não fazia a mesma coisa?
Quando o Billy Wilder trabalha a questão do cinema, a forma como ele era irônico em relação à indústria cinematográfica foi na direção de trabalhar as mitologias: como as pessoas, os próprios atores e atrizes etc. vivem um determinado tipo de experiência enquanto figuras centrais do star system, e o que isso pode causar de caricatural. Posso citar como exemplo, Crespúsculo dos Deuses, ou quando ele faz a comédia O Pecado Mora ao Lado, com Marilyn Monroe,
Hitchcock teria um trabalho mais universal no olhar sobre o que é o cinema?
Hitchcock fala da linguagem e faz um negócio que é interessante porque identifica o cineasta com aquele que comete o crime perfeito. Isso é interessante: o que é cometer o crime perfeito? É criar, no lugar do que aconteceu, simular uma ficção capaz de convencer as pessoas de que a verdade foi outra. Um Corpo Que Cai é isso: o crime é perfeito. Na época, isso foi um pouco estranho porque, realmente, o criminoso sai no meio do filme. Conseguiu o que queria e vai embora.
Como se o filme terminasse ali.
Em dois terços do filme, o criminoso desaparece de cena. E o que é que Hitchcock fez o tempo todo? Ele criou um filme. O genial é que não basta criar um filme, tem que criar o olhar adequado para assistir àquele filme. Então, o que o criminoso tem que fazer para esconder o seu gesto e colocar no lugar dele uma outra ordem de acontecimentos? Tem que simular, e a simulação tem que ser eficaz, porque ela é feita para um determinado olhar. A indústria do cinema faz exatamente igual ao criminoso, ou seja, ela cria a história e ao mesmo tempo supõe uma platéia que tem uma certa constituição. O cinema eficaz, em termos de mercado, é o cinema capaz de fazer exatamente isso: criar a cena, mas não só a cena, saber que tipo de olhar tem que ser endereçado à cena, e saber que a platéia, que é o alvo, terá aquele olhar, e terá aquela constituição que você supõe que ela tenha. Então aí o jogo se fecha. Como a história de Um Corpo Que Cai: é a relação entre o cinema e o seu público. Bom,esse é um lado da história, é uma discussão minha do melodrama e desse percurso do cinema clássico desde a sua formação até esse momento que eu chamo de a ironia de Hitchcock e que revela todas as regras do jogo. E o outro lado é aquela parte, que é a segunda metade do meu livro, que é a relação entre teatro e cinema no Brasil, e eu tomei aí como centro a figura de Nelson Rodrigues por vários motivos. O primeiro é porque ele representa uma exceção.
Exceção pela quantidade de produções cinematográficas baseada na obra dele?
Sim. Nós não temos no Brasil uma forte relação entre teatro e cinema. Claro que sempre houve filmes que adaptaram peças. Mas, embora tivéssemos um teatro que durante muito tempo encenou melodramas, a nossa força maior sempre esteve na comédia, com uma enorme tradição que inclui o teatro de revista de um lado e a chanchada de outro. E é curioso ver as exceções: O Ébrio, de Gilda de Abreu, um filme de 1946, é um dos poucos melodramas de grande sucesso na história do cinema brasileiro. Nos anos 1950 a coisa se dá no mesmo tom. Quer dizer, a Vera Cruz, que teve um projeto industrial forte, conseguiu ganhar ressonância com dramas, como O Cangaceiro. Mas em termos de um diálogo do cinema com autores teatrais o primeiro diálogo efetivo, que hoje soma 20 filmes e dura 50 anos – e já está sendo anunciado um novo filme, Vestido de Noiva -, se dá com Nelson Rodrigues.
Quando estrutura seus ensaios sobre esse diálogo entre o teatro e o cinema, Nelson Rodrigues e os cineastas, o senhor analisa vários momentos diferentes.
São vários momentos. Tem um filme, isolado lá atrás, que é Meu Destino É Pecar, de 1952, que não parte do teatro, é a adaptação de um folhetim de grande sucesso nos jornais que ele escreveu com o pseudônimo de Suzana Flag, no final dos anos 1940. Foi o primeiro e único nos anos 50. Apesar de Nelson ter começado a escrever as ditas tragédias cariocas em 1951, já havia peças como A falecida e outras. Com exceção desse primeiro filme, houve um silêncio do cinema em relação a Nelson Rodrigues nessa década.
Quais as razões desse silêncio?
Tinha a censura. Mas também o fato de que, por exemplo, no cinema do Rio de Janeiro, o filão era a chanchada. E em São Paulo, a Vera Cruz e suas sucessoras tinham os seus dramaturgos de plantão. Por exemplo: Abílio Pereira de Almeida, autor teatral, que era sócio e roteirista da Vera Cruz. Agora, há outro aspecto que eu abordo no livro que é a virada dos anos 1950 para os 1960. Existe um fenômeno, que é internacional, que é a potencialização do erotismo e uma certa liberação geral da sexualidade no cinema, que tem certos ícones. O maior deles era Brigitte Bardot.
E, no Brasil, Norma Bengell.
É. Que curiosamente, numa chanchada, imitou Brigitte. E depois temos no cinema europeu uma alteração dos padrões de representação da sexualidade, as cenas de cama começam a ser mais trabalhadas, a nudez etc. No Brasil, nós tivemos uma virada semelhante, porque nesse início dos anos 1960 ocorre a adaptação do Boca de Ouro, de Nelson Pereira dos Santos, em que tínhamos o famoso concurso dos seios das mulheres, e o filme do Ruy Guerra, Os Cafajestes, em que Norma Bengell tinha uma longa seqüência de nu frontal na praia. Nesse momento, foram feitos seis filmes a partir de Nelson Rodrigues: Boca de Ouro, A falecida, O beijo, Bonitinha mas ordinária, Asfalto selvagem e Engraçadinha depois dos 30.
Esse também não é o momento de começo do Cinema Novo?
Isso é interessante: o Cinema Novo, muito mobilizado pelo debate político, um cinema que tinha como uma de suas dimensões centrais a tematização da vida social brasileira, não adaptou os dramaturgos que poderiam ser considerados afinados com ele. Note a inversão que há: Dias Gomes, que era um dramaturgo de esquerda, tem uma peça chamada O pagador de promessas e quem a adapta é Anselmo Duarte, que não tem nada a ver com o Cinema Novo em termos ideológicos.
Por que o Cinema Novo não estabeleceu relações com os dramaturgos identificados com ele?
Nos longas metragens isso de fato não ocorreu. Vamos pegar o caso do Arena, onde estavam Gianfrancesco Guarnieri e Roque Veiga Filho. Guarnieri tinha a peça Eles não usam black-tie escrita em 1958 e encenada com sucesso, portanto indicadora de uma possível adaptação. Não foi. A peça adaptada foi Gimba, por Flávio Rangel, que também não era do Cinema Novo. Tínhamos o Roque, que viria a ser ator do Cinema Novo, e não teve peça dele adaptada. O próprio Jorge Andrade, quem adaptou, de novo, foi Anselmo Duarte em Vereda da salvação. E Eles não usam black-tie viria de Leon Hirszman em 1980. Nelson Rodrigues, visto como um dramaturgo de grande monta, mas ao mesmo tempo um homem conservador, é quem vai ser adaptado por dois cineastas muito comprometidos com o realismo, Nelson Pereira, a seu modo, e Leon Hirszman.
Havia uma opção pela não adaptação de peças no Cinema Novo?
Uma das características do Cinema Novo era não ter essa tônica. As adaptações que aconteceram foram um pouco por circunstâncias. Glauber Rocha, por exemplo, jamais iria adaptar peças dos outros. Na verdade, o Cinema Novo estava preocupado em dialogar com a literatura.
A falta de diálogo entre os dramaturgos de esquerda e o Cinema Novo teve razões políticas ou meramente estéticas?
O Cinema Novo reivindicou para si o direito à liberdade de expressão do autor e o direito a uma subjetivação bem marcada dos seus filmes, coisa que do ponto de vista do Centro Popular de Cultura (CPC) – onde os dramaturgos de esquerda faziam parte de seus trabalhos – não era propriamente o programa. O Cinema Novo polemizou muito com o CPC e houve um afastamento. Quando vemos o diálogo com o dramaturgo, ele se deu com Nelson Rodrigues. E esse diálogo vai ser retomado nos anos 70, aí numa outra chave, por Arnaldo Jabor. Como ele conhecia até pessoalmente Nelson Rodrigues e tinha uma experiência teatral mais marcada, conseguiu sintetizar nos seus dois filmes, Toda nudez será castigada e O casamento, o melhor diálogo com o dramaturgo. Toda nudez… é a mais bem-sucedida adaptação da obra de Nelson porque Jabor soube explorar os tons da tragicomédia que melhor expressam as conexões entre o que acontece no mundo privado, nesses dramas de família, e o contexto mais amplo da história do Brasil num determinado momento. Então, Jabor, e aí seguindo a tradição do Cinema Novo que sempre estava querendo representar o país, estava sempre querendo discutir as coisas numa escala muito ampla.
Depois da fase dos seis filmes sobre peças de Nelson Rodrigues, de 1962 a 1966, o que aconteceu?
Houve um período de silêncio, rompida em 1972 com o Toda nudez… Mas no meio houve uma coisa fundamental, que é o Tropicalismo. Aí, várias coisas acontecem. A primeira delas é o uso de estratégias que a gente chama de antropofágicas, inspiradas na obra e ideias de Oswald de Andrade, no sentido de apropriação do discurso do outro, a paródia, a ironia, a ideia de que fazer a crítica de um certo estado de coisas no Brasil podia acontecer não apenas através dos dramas do Cinema Novo.
Esse é o momento também do lançamento de Macunaíma.
É o momento de um diálogo grande com a literatura. Tem também Os deuses e os mortos, de Ruy Guerra, que dialoga um pouco com Jorge Amado. Há um tipo de transformação no cinema brasileiro em que se dá e prepara, digamos assim, o clima para o qual Jabor faz a sua intervenção. No final dos anos 1970, aí sim tem um lado fortíssimo de uso de Nelson Rodrigues como chamariz, porque já havia esse clichê das peças que tinham muito sexo, muito erotismo em Bonitinha mas ordinária, Os sete gatinhos, Álbum de família, Perdoa-me por me traíres, Beijo no asfalto. São todos filmes naturalistas, nesse sentido de serem bastante convencionais como cinema. É quando se vulgariza a relação do cinema com Nelson Rodrigues.
Isso não ocorreu também pela situação política da época?
Em parte. Mas teve muita coisa boa feita no cinema brasileiro entre 1972 e 1980, embora estivéssemos sob o regime militar. Joaquim Pedro de Andrade fez grandes filmes, Os inconfidentes, Guerra conjugal, o Leon Hirszman fez São Bernardo, depois fez …black-tie, Nelson Pereira dos Santos fez O amuleto de Ogum, Tenda dos milagres. Jabor fez os dois de Nelson e ainda o Tudo bem, que não tem adaptação, mas é rodriguiano.
Quando Jabor tentou fazer Jabor, ele na verdade fez Nelson Rodrigues.
É, porque a afinidade é muito grande, e vai ser a mesma afinidade do cronista. Quando Jabor vai para os jornais ele vai trazer esse imaginário todo que é uma mistura. Ele junta Glauber de um lado, Cinema Novo, e Nelson Rodrigues de outro. Jabor é alegorista como Glauber, gosta de fazer grandes diagnósticos. O momento para mim mais denso e mais interessante do diálogo com Nelson é o que Jabor nos ofereceu. E aí as relações com o conjunto da representação, não por acaso, são as mais bem resolvidas. No momento em que eu falo de Jabor, no meu livro, a questão que eu levanto no início, que é a tradição do melodrama e a tradição da representação clássica burguesa, reaparece com força, porque a gente poderia fazer uma analogia, assim como eu vou de Griffith a Hitchcock, eu vou, no mundo da adaptação de Nelson Rodrigues, do filme gótico, melodramático, bem chapado, que é Meu destino é pecar, a Jabor. O Jabor é o momento da consciência e da ironia.
E quanto ao cinema contemporâneo?
O cinema hoje já está vivendo realidades novas que em parte dialogam com esses outros momentos que eu analiso. Hoje temos um cinema brasileiro que, em parte, na sua dramaturgia, está colecionando uma galeria de figuras masculinas frustradas, que não conseguem dar conta das coisas. Um problema central no cinema brasileiro e, em parte, do cinema mundial é usar crianças como protagonistas. Elas são os personagens recorrentes e de maior sucesso no cinema mundial hoje. Isso ocorre, primeiro, porque há a questão de uma geração que perdeu a referência paterna e, de outro lado, tem o desencanto total com a história. Hoje é muito difícil assistir a um filme e aceitar a figura de um adulto herói. As personagens positivas hoje são muito difíceis de serem verossímeis, há uma certa desconfiança do mundo. Percebemos que nos dramas sérios há uma situação na qual é muito difícil trabalhar personagens positivas, que se coloquem como heróis potentes e com capacidade de decisão. Acabamos tendo umsentimento de que realmente a personagem que pode ser tratada com seriedade e simpatia, positivamente representada, portadora de valores com os quais as pessoas se identificam, é a criança. Vários filmes ganharam festivais internacionais com criança como protagonista, nos últimos anos. O próprio Walter Salles, com Central do Brasil. Essa também é a força de Cidade de Deus: primeiro, porque são personagens crianças e segundo, porque os garotos são atores extraordinários.
Como o senhor vê a relação entre o teatro e o cinema hoje no Brasil?
Se pegarmos o núcleo de Guel Arraes na TV Globo, vemos que ele trabalha com peças de Ariano Suassuna, Auto da Compadecida, e de Osman Lins, Lisbela e o prisioneiro. Guel está com um projeto nítido de incorporar uma tradição de um teatro voltado para a cultura popular e jogá-lo tanto na TV quanto no cinema. É um projeto que está aproximando a televisão comercial do cinema, coisa inédita no Brasil.
Mas não é também um risco?
Pode ser perigoso. Isso está se consolidando, com esses sucessos atuais todos, Cidade de Deus, Deus é brasileiro, Carandiru, Lisbela e o prisioneiro, O auto da Compadecida, Os normais. O cinema brasileiro vai ficar dividido entre os que estão no esquema da Globo e os que não estão. Para os independentes, é um problema, porque vão competir com uma corporação que é economicamente forte, que tem uma capacidade publicitária enorme. Se as coisas continuarem como estão, daqui a pouco nós vamos ter um divisor de águas. A minha visão é otimista, do ponto de vista estrito da produção. O cinema brasileiro mais criativo e autoral sempre teve dificuldades no mercado, já que disputa espaço com o cinema hollywoodiano. O fato de surgir dentro da própria produção brasileira um grupo forte que, associado a determinados cineastas competentes, vai gerar um filão de grande sucesso, e que pode criar problemas de espaço no mercado para outros cineastas brasileiros, provocará um deslocamento dos diabos. Isso internaliza o conflito, o que já é bom. Prefiro que o cinema brasileiro reclame da Globo do que de quem não nos ouve.
A tecnologia melhorou o cinema brasileiro nos últimos anos?
No passado, tínhamos salas de exibição muito ruins e isso melhorou. Hoje, há uma alteração substancial na forma como se faz o que se chama de pós-produção, tudo aquilo que acontece depois do que se filma. De um lado, o equipamento e a infra-estrutura para isso baratearam, por outro, hoje se faz muito isso fora do Brasil, coisa que não se fazia antes. O cinema de um modo geral agora tem um som melhor. Então seria injusto dizer que não houve melhoria técnica. Mas, além de tudo, há o seguinte: o cinema dos anos 1990 criou uma espécie de ponto de honra. Temos um cinema que quer se legitimar diante da sociedade.
Diante da sociedade brasileira e também para exportar.
Tudo bem, mas acho que o primeiro problema que o cineasta tem hoje é a vontade de ter uma boa imagem diante do grande público, o mesmo público que assiste à televisão. É diferente de outras épocas em que tínhamos o filme de arte ou um filme comercial bastante insatisfatório.
A partir de quando surgiu essa preocupação dos cineastas brasileiros?
Foi nos anos 1990. E veja bem como a coisa é deliberada, porque não era necessário que assim fosse. Os filmes estão sendo produzidos pelas leis de incentivo fiscal, ou seja, há renúncia do governo que, em vez de receber o imposto, faculta a uma empresa canalizar o dinheiro, que é público, para a produção. Quando o cineasta recebe o dinheiro, quem lhe deu esse dinheiro já não está mais cobrando dele o retorno. Então ele podia fazer o filme que bem entendesse sem se preocupar com o público. Mas o que está acontecendo é o contrário: os cineastas acham, hoje, que a melhor maneira de aplicar esse dinheiro é em filmes comerciais mesmo, para o mercado. Porque acreditam que, se não houver essa alteração de imagem da sua própria profissão, não terão cacife político para cobrar do governo a continuidade das leis. A maneira de o cinema brasileiro se legitimar e continuar a ter apoio no plano legislativo é ele ter apoio da sociedade. Conseguir esse apoio significa que as pessoas, quando você fala em cinema brasileiro, vão dizer: “Legal, assisti a tal filme, é bom, o cinema brasileiro melhorou”. Isto é importante para cada vez que os cineastas forem falar com o Ministério da Cultura, com o presidente, seja lá com quem for. Ou com o Congresso.