MIGUEL BOYAYANFernando Reinach, 47 anos, é uma personagem rara – pelo menos ainda – tanto no ambiente científico quanto na cena empresarial brasileira. Pesquisador respeitado em biologia molecular, um dos mentores, em 1997, e, logo a seguir, um dos coordenadores do primeiro projeto genoma brasileiro, o da Xylella fastidiosa, que contribuiu decisivamente para mudar os padrões da pesquisa nacional, Reinach é hoje também um executivo bem-sucedido no mundo dos negócios. É diretor-executivo da Votorantim Ventures, fundo de capital de risco do maior grupo privado nacional, destinado a fomentar empresas de base tecnológica, e vice-presidente-executivo da Alellyx Apllied Genomics, a primeira dessas empresas que o fundo ajudou a nascer.
Voltado para a bioquímica de músculos no doutoramento em Cornell, nos Estados Unidos, e depois no pós-doutoramento em Cambridge, Inglaterra, Reinach retornou ao Brasil, em 1986, com um sentimento de autonomia forte o suficiente para prestar concurso de professor no Departamento de Bioquímica da Universidade de São Paulo (USP) sem, digamos, pedir licença ou as bênçãos de qualquer dos grandes mestres da área.
Entrou, avançou e rapidamente alcançou o topo da carreira, ou seja, tornou-se professor titular aos 35 anos – posto do qual está licenciado no momento. Ao mesmo tempo, ele retornara contaminado pelo espírito empreendedor que impulsionava o desenvolvimento da biotecnologia nos Estados Unidos e por essa razão criou a Genomics, a primeira empresa brasileira a fazer testes de paternidade, que passou adiante em 2003.
No início de 2004, Reinach foi escolhido pela revista Scientific American (edição norte-americana) como um dos 50 Líderes de Negócios de 2003, ao lado de, por exemplo, Steve Jobs, fundador da Apple, entre outros empreendedores de destaque em todo o mundo – sem dúvida, um reconhecimento e tanto.
Vê-se, portanto, que Fernando Reinach é uma exemplar figura de síntese, espécie de metáfora concreta de um processo fundamental da economia contemporânea, lato sensu, que vai da descoberta científica, facilitada por uma profissionalização intensiva dométier de pesquisador, à produção de riqueza via apropriação e transformação do conhecimento, ou seja, inovação tecnológica, em produtos e serviços pelas empresas. Com esse cabedal, ele tem uma visão privilegiada do processo de mudança por que vem passando a pesquisa no país, suas facilidades e seus grandes obstáculos, de que dá clara mostra na entrevista a seguir:
Pode-se considerar o projeto de seqüenciamento do genoma da Xylella fastidiosa, de 1998 a 2000, o marco de uma nova forma de produzir ciência no país?
Penso que sim. Mas antes da Xylella aconteceram algumas coisas nesse sentido. A pesquisa no Brasil teve várias fases. A primeira, até a década de 1970, era a dos “coronéis”, digamos, a dos catedráticos. A comunidade científica era pequena, mas existiam grandes pesquisadores. Esse quadro evolui para uma outra situação, mais profissional, que coincide com uma profissionalização da própria FAPESP, não só das pessoas, mas do próprio processo de financiamento. Qualquer pessoa com as credenciais corretas podia ir à Fundação pedir apoio. Foi nesse período que comecei a trabalhar na Fundação, em 1994, com Perez (José Fernando Perez, diretor científico). E foi nessa fase que ocorreu um movimento interessante puxado por Rogério Meneghini e Hugo Armelim, cuja máxima era a seguinte: quem faz pesquisa tem que publicar. Tornou-se inaceitável não publicar. O passo seguinte foi publicar em revistas qualificadas, para produzir impacto. Foi uma mudança cultural que aconteceu primeiro em São Paulo e só depois no resto do país. E isso, acredito, está acontecendo agora no CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).
Ou seja, formou-se uma noção clara para os pesquisadores de que, além de pesquisar, os resultados da investigação deveriam ter projeção no mundo.
Acho que essa noção já existia. Entre os professores tradicionais, a publicação de artigos era valorizada, mas, se não se publicasse, tudo bem. Esse processo de mudança – profissionalização e formalização do apoio, estímulo à publicação – começou a dar espaço para os jovens pesquisadores fazerem o que queriam, independentemente do professor titular. Não era mais necessária a sua bênção para se apresentar um projeto à FAPESP. Começou a se desmontar um aparato hierárquico muito rígido. Os institutos de pesquisa começaram a contratar pesquisadores porque eram competentes e o resultado foi uma maior diversidade de temas e mais liberdade de pesquisa. Surgiu assim um grupo de pessoas relativamente jovens, independente dos mais velhos, uma espécie de classe média na ciência. Eu sou dessa geração. Fui contratado na Bioquímica e não era filhote de ninguém. Não tinha feito doutoramento lá, ninguém me conhecia ali. Houve, portanto, uma espécie de modernização da ciência e a criação de uma geração independente. Já trabalhando na FAPESP como coordenador de bioquímica, reparei que existia uma massa crítica de pessoas começando a mexer com biologia molecular e não necessariamente alinhadas a um grande professor. E isso foi central para o sucesso metodológico da Xylella, que não precisou da bênção dos grandes titulares.
A essa altura, os grandes titulares já estavam distantes das novas questões que a biologia molecular colocava.
Tínhamos a genética clássica e aí surgiu a biologia molecular. A mudança foi tão rápida que uma parte dos velhos pesquisadores não a acompanhou. Eles não entendiam a nova tecnologia que os mais jovens compreendiam muito bem. Mas há ainda outro fenômeno que ocorreu na biologia, de maneira global, e que já tinha ocorrido na física, alguns anos antes, que contribuiu para a concepção do projeto da Xylella. Até a Segunda Guerra Mundial, a física avançava por meio de grandes contribuições individuais. Até que começaram a despontar os grandes projetos, como o da bomba atômica ou o dos grandes aceleradores, por exemplo, e os problemas ganharam tal magnitude que uma pessoa sozinha já não dava conta. Começou então a nascer esse conceito de que certos problemas eram grandes demais para uma só pessoa. Apesar de existir ótima ciência feita por uma só pessoa, começou a surgir a ciência feita por grandes times. Na biologia isso levou muito mais tempo. Talvez tenha se iniciado justamente com os projetos genoma.
Mas, em São Paulo, já existiam desde 1990 os grandes projetos temáticos que congregavam grupos de pesquisadores.
Era diferente. A colaboração científica sempre existiu. Os temáticos eram isso: cada um fazia um pedaço e assim era possível ir mais longe. Mas, se não tivesse a colaboração, era possível fazer sozinho. Não havia a necessidade absoluta de se fazer junto, como foi o caso da Xylella. Em paralelo à necessidade de atacar os problemas com o trabalho conjunto de muita gente, sem o que nada funcionaria, também vivi na FAPESP o processo de as máquinas tornarem-se mais sofisticadas, muito caras. Não dava mais para cada um ter a sua, era preciso ter equipamentos coletivos, como acontecera bem antes na física, com os aceleradores. Foi nesse momento que começaram a surgir os primeiros projetos genomas e constatamos que a nossa biologia molecular estava ficando para trás. O Perez então sugeriu: precisamos de um grande programa para botar a biologia molecular para a frente. Eu tinha a sensação muito concreta de que tínhamos massa crítica, os projetos genoma lá fora haviam ocorrido de uma maneira colaborativa. Ora, para dar um salto quântico na qualidade da nossa biologia molecular, por que não montar um desses?, indagamos. Portanto, havia uma série de fatores favoráveis ao projeto da Xylella que estavam acontecendo bem embaixo de nosso nariz e conseguimos vê-los. Assim, quando propusemos o projeto genoma, ele foi revolucionário. Encontrou uma resistência muito grande do pessoal mais velho, mas eles não tinham mais poder sobre os jovens.
Qual era o argumento para a resistência?
Dizia-se que aquilo era um trabalho de macaco, que não era ciência. Afirmava-se que era mais importante cada laboratório ganhar mais dinheiro do que trabalhar colaborativamente. Era, enfim, a resistência à mudança. E só conseguimos fazer o projeto porque os jovens que tinham conseguido entrar no sistema já não estavam sob o domínio do pessoal mais velho. Quando lançamos o edital para a seleção dos laboratórios, foi esse pessoal novo que disse “eu faço”. Quando os mais velhos disseram “nós não vamos entrar”, isso foi muito sintomático do que estava ocorrendo.
Vocês tinham a expectativa de que os pesquisadores mais velhos aderissem?
Eu fiz uma aposta com Perez, cujos termos não lembro bem, mas previa o número de propostas que seriam apresentadas. Nosso medo era ninguém se inscrever para o projeto. Eu disse que seriam até 50 laboratórios e ele, que seriam mais de 50 – Perez ganhou. É gratificante constatar que, de repente, houve uma geração que fez um dos mais importantes projetos de pesquisa do Brasil sem autorização. E deu um pulo à frente. Em geral, em ciência, os mais velhos vão morrendo, os novos vão assumindo, daí vem a geração de baixo etc. Ali, não: uma nova geração assumiu e deu o pulo. Esse aspecto foi revolucionário. Veja, eu tinha 41 anos e provavelmente era o mais velho. Andrew Simpson, coordenador de DNA do projeto, Paulo Arruda e eu éramos os mais velhos. A maioria tinha entre 25 e 30 anos. No esquema antigo da ciência brasileira eles não teriam nenhum espaço.
Como é que vocês estabeleceram o projeto e, posteriormente, o organismo que ia ser seqüenciado?
Depois de observarmos as taxas de penetração da ciência nacional, verificamos que a porcentagem de papers brasileiros estava aumentando em todas as áreas, menos na biologia molecular, que evoluía mais lentamente. Não tanto porque crescesse devagar no Brasil, mas porque ela estava crescendo muito rápido fora do país. Daí, o Perez falou que precisávamos fazer alguma coisa. Primeiro surgiu a ideia de fazer um projeto de infra-estrutura, comprar equipamentos etc. Já tinha saído aí o primeiro paper do Craig Venter sobre o genoma. Num final de semana, em 1º de maio de 1997, eu estava no sítio em Piracaia, e pensei: pô, em vez de fazer um projeto de infra-estrutura, vamos fazer um projeto de genoma, juntar todo mundo num objetivo único. Em vez de dar equipamento para todo mundo, vamos fazer um projeto em cima de um tema. Era uma ideia, para mim, muito estranha. Eu liguei para o Perez, que estava em Santos, e ele veio até o sítio. Conversamos e a ideia se cristalizou.
Por que a ideia lhe parecia estranha?
Sempre existiu uma polêmica no Brasil – e ainda existe hoje – entre a ciência espontânea e a ciência induzida. Quando um governo fala em financiar determinado tema, em geral a ciência a partir daí produzida não é tão boa. Isso ocorre quando alguém que não é cientista resolve decidir o que o cientista tem que pesquisar. O oposto disso é quando se diz: você faz o que quer e a gente dá o dinheiro. Um exemplo importante de ciência induzida: depois que o presidente Kennedy pôs o homem na Lua, Nixon decidiu curar o câncer. É uma coisa meio prepotente dos administradores. No Brasil, o governo federal sempre tendeu a fazer ciência induzida. Eu sempre fui contra. A experiência mostrava que isso não dava certo. E a ideia que eu tive era justamente desse tipo. Tive uma resistência pessoal contra a minha própria ideia. Perez, no entanto, considerou que era diferente: “Não estamos dizendo que genoma vai ser”, ele argumentou. “Isso vai sair das próprias pessoas.” Mas tínhamos que enfrentar vários problemas: como escolher o genoma, organizar o projeto etc.
Nesse momento em que o professor Perez foi a seu sítio em Piracaia, vocês não tinham claro qual seria o organismo a ser seqüenciado?
Não. Sabíamos que ia ser uma bactéria. O genoma tinha que ser grande o suficiente para envolver um número grande de pessoas e pequeno o bastante para conseguirmos fazer com a tecnologia que teríamos. Deveria representar um grande desafio, mas que não fosse inviável. Nessa época eu trabalhava três meses por ano nos Estados Unidos, e foi lá que escrevi o primeiro documento do projeto, a pedido de Perez. Eu tinha trabalhado na Inglaterra com o Bob Watterston e com o John Sulston, que fizeram o genoma humano. Conversei com os dois antes de elaborar o documento e eles acharam que dava para fazer.
Nesse momento continuava-se sem ideia da bactéria que seria seqüenciada?
É, não tínhamos noção da bactéria. No primeiro documento já havia a ideia de que o projeto seria descentralizado, desenvolvido em vários laboratórios, cada um seqüenciando um pedaço, meio no sistema da Saccharomyces cerevisiae. Também já estava decidido que a estratégia seria trabalhar com cosmídeos e que o microrganismo seria da área agrícola. Alguns anos antes tinha havido uma discussão na Sociedade Brasileira de Bioquímica sobre o futuro da bioquímica e ali se dizia que o caminho era a agricultura, já que não tínhamos como competir na área do câncer. Enquanto isso, em São Paulo, o pessoal do Fundecitrus (Fundo de Defesa da Citricultura) ia até a FAPESP preocupado com a Xylella. Ninguém sabia ainda se a X. fastidiosa era mesmo a causa da CVC (Clorose Variegada dos Citros) ou não. Em setembro, o Joseph Bové, da Universidade Bordeaux II, confirmou que o patógeno da CVC era ela mesmo.
E ainda havia dúvida sobre se a bioinformática do projeto seria feita aqui.
Isso era para mim muito claro. Quando voltei em 1986 para o Brasil, logo depois João Meidanis e João Setúbal também voltaram dos Estados Unidos. Eles foram ao meu laboratório, ainda no Instituto de Química, e disseram que precisávamos fazer alguma coisa juntos. Na época, eu, a Sueli Gomes, do Instituto de Química da USP, e o Francisco Gorgônio Nóbrega, da Univap (Universidade do Vale do Paraíba), éramos os únicos que seqüenciavam DNA no Brasil. Eu falei que precisava de um leitor de DNA e eles fizeram um leitor de filme de raio X, onde era feita a seqüência de DNA. A máquina chamava-se “o treco”. Era um teclado de telefone com um negócio de plástico que permitia ver o filme. E aí apertavam-se as teclas e o negócio registrava A, C, T ou G (letras relativas a adenina, citosina, timina e guanina, bases do código genético). O aparelho tinha um fio que ligava no computador. Veja, antes desse aparelho, líamos o filme e íamos falando, A, C etc. e o aluno ia marcando. Isso foi há apenas dez anos. Quando surgiu a necessidade da bioinformática para o projeto genoma, eu sabia que existia competência aqui. Depois trouxemos o Paulo Arruda, que trouxe o André Gouffeau (cientista francês que coordenou o seqüenciamento da Saccharomyces), quando pensamos que era preciso ter um steering comittee de fora. Afinal, tratava-se de um bando de jovens, e precisava ter alguém, gente com muita experiência, que ficasse entre os pesquisadores e a FAPESP. Nosteering comitee estavam um pesquisador experiente em bioinformática, que era Gouffeau, e dois ingleses, Steve Oliver, também coordenador da Saccharomyces e John Sgouros. Oliver veio para o Brasil, tivemos uma reunião na FAPESP e acertamos os detalhes: precisava ter dois laboratórios centrais, a bioinformática e um coordenador-geral. Nessa época, o Simpson já estava começando a se envolver no projeto. Perez também observou que o projeto envolvia um monte de dinheiro, e defendeu a mesma ideia do Oliver, com o acréscimo de que os dois laboratórios precisavam seqüenciar muito. Então, pensamos: vamos definir os cargos e as pessoas se candidatam, ninguém vai ser escolhido. E no edital saiu assim: uma vaga para coordenador, duas vagas de seqüenciador, um grupo para bioinformática e 30 laboratórios. Achamos que o coordenador não deveria ser ninguém ligado à FAPESP, por causa desse problema do projeto ser induzido. Por outro lado, eu queria ser seqüenciador, porque provavelmente o meu laboratório era um dos que mais sabiam seqüenciar e era essa área que poderia dar o maior problema. O Simpson decidiu ficar com a coordenação. Na verdade, ele era o coordenador de DNA, tinha que garantir clones. Como havia dois laboratórios centrais para seqüenciar – o meu e o do Paulo Arruda – e a bioinformática, na verdade, eram quatro coordenadores-gerais do projeto. Fizemos o processo de seleção e daí chamamos o steering comittee para fazer a seleção. Ainda houve uma certa resistência: “Pô, mas não tem projeto de pesquisa. Vão se candidatar para seqüenciar um pedaço de DNA”. Já começavam as críticas. Ficou decidido assim: dos 30 laboratórios, dez tinham de ser de gente que sabia um pouco de seqüenciamento. Outros dez de pesquisadores que vinham da agricultura, que não sabiam nada de seqüenciamento, mas tinham ideia do que era essa bactéria, a Xylella. E dez tinham de ser de gente que não era da agricultura e nem sabia seqüenciar, mas eram pessoas cientificamente competentes e que queriam aprender. Perfil, por exemplo, de José Eduardo Krieger.
Nesse momento, começo de 1998, vocês estavam prontos para iniciar o trabalho.
Sim. Houve várias coisas divertidas. Nesta época ainda não se tinha fechado o postulado de Koch da Xylella (que demonstra a causalidade de um doença). Ou melhor, não tinha fechado com os isolados brasileiros. Joseph Bové tinha levado isolados para a França e fechado o postulado de Koch lá. Aí fiquei em dúvida: a gente vai seqüenciar uma coisa coletada recentemente no Brasil, mas que ninguém provou que aquela bactéria fechou o postulado, ou vamos pegar uma bactéria importada da França – uma vergonha nacional! – mas em que foi fechado o postulado? Resolvemos fazer com a francesa. O meu medo era os caras terem misturado as bactérias e a gente estar com uma bactéria errada. Ao mesmo tempo que começamos a seqüenciar, começamos a refazer o postulado para ter certeza de que estava ok. Goffeau arranjou gente para ensinar a fazer cosmídeo e nosso pessoal foi para o exterior para aprender.
Essa tecnologia continua a ser usada? Na Alellyx utilizam-se esses procedimentos?
AXylella foi feita por cosmídeo. E hoje geralmente a gente faz por shot-gun. A primeira que foi feita por shot-gun foi a Xanthomonas, a partir de 1999. Bem, os dois laboratórios, o meu e o de Paulo Arruda, seqüenciavam bastante e aconteceram coisas interessantes. Paulo Arruda assumiu o papel do educador: organizou os cursos, trouxe o pessoal dos laboratórios todos para ensinar como seqüenciar. Com o meu laboratório era diferente: decidimos que íamos formar gente no exterior e trazer para o Brasil a tecnologia mais avançada. E Meidanis foi o único que falou “vou visitar todos os laboratórios”. Isso é muito interessante, as coisas acontecerem por causa das vocações das pessoas. Outra coisa engraçada foi o embarque dos seqüenciadores no dia de Natal ou Ano-Novo, não me lembro bem. O pessoal no exterior queria esperar para embarcar depois, e eu disse “pode embarcar que a gente se vira aqui”. Corríamos contra o tempo. Era um bando de jovens que já tinham mostrado uma certa irreverência ao passar por cima doestablishment, precisando mostrar que eram competentes. Tinha assim uma alta pressão para conseguir fazer, e o pessoal mais velho só sentado, olhando para ver os caras tropeçarem.
Esse jeito novo de fazer ciência influenciou outras áreas ou ficou restrito à genômica?
Quando conseguimos publicar na Nature, teve muita influência na auto-estima das pessoas de qualquer área científica.
O grau de ambição da pesquisa brasileira mudou de patamar a partir do resultado da Xylella.
Mudou. A gente não estava mais comendo mingau pela periferia. Pulamos dentro do prato. Fizemos aXylella e logo depois fizemos as duas Xanthomonas. Eram duas bactérias, cada uma o dobro daXylella, foram feitas com um quarto das pessoas, um quarto do orçamento e metade do tempo.
E foi lançado logo depois o projeto da cana.
Mas o projetoXanthomonas foi o último genoma especificamente. Sempre critiquei que chamássemos de projeto genoma, o que não é precisamente projeto genoma, ou seja, os projetos da cana, do boi etc.
Explique, por favor, essa distinção do ponto de vista científico.
Você faz um genoma quando seqüencia o DNA total de um organismo, todos os seus genes. Os outros são projetos de seqüenciamento de RNA mensageiro, só da parte expressa do genoma. Então não é um projeto genoma.
Mas não está tudo sob o guarda-chuva da genômica?
Da genômica, sim. Mas não são projetos genomas. No exterior nunca é usado este nome. São projetos de EST (Expressed Sequence Tags ou Etiquetas de Seqüências Expressas). Não quer dizer que são melhores ou piores, mas são diferentes. O primeiro que carregou o nome e não era genoma foi o projeto do câncer, uma espécie de loucura, porque o câncer não tem genoma, quem tem genoma é o ser humano. A cana, o eucalipto são projetos de EST. Tudo bem, eram coisas muito grandes, não ia dar para fazer o genoma mesmo. Mas eu acho que aí, quando se decidiu fazê-los, perdeu-se um pouco o ímpeto do começo, os desafios se tornaram menores. Apesar de serem projetos difíceis, eram no máximo tão difíceis quanto a Xylella – provavelmente mais fáceis porque já se sabia como fazer. Ficamos repetindo um pouco, o que tornou as críticas mais fáceis. Mas aí vieram outros projetos grandes e importantes, como o Biota.
Qual foi o legado do projeto genoma para a ciência?
Os padrões subiram. A ideia de que a ciência é um campo de colaboração tornou-se mais aceita. E logo depois havia outro desafio: uma semana antes de publicarmos o projeto, escrevi um artigo na Folha de S.Paulo que se chamava Despreparados para o sucesso, em que indagava qual seria o próximo passo. Era preciso fechar o ciclo: da mesma maneira que o genoma humano está transformando a indústria farmacêutica norte-americana, nós, que seqüenciamos a Xylella, temos que resolver o problema da Xylella, transformando a ciência em riqueza. Para mim, esse era o desafio: o próximo passo era fora da academia, enquanto na academia era preciso continuar ousando. Foi aí que a gente perdeu o ritmo, o ímpeto, e os críticos chegaram na gente.
A pesquisa em proteoma não representou o próximo passo da academia?
Projetos genoma são absolutamente mensuráveis. O produto final é finito, mensurável e conhecido. Projetos de EST já não tem isso: chega uma hora em que têm que parar. A grande coisa da Xylella era: ou você acaba, ou você não acaba. E é completamente óbvio. Outros projetos – proteomas, cristalografia -, se você perguntar qual é o marco absoluto, inquestionável, de que acabou o projeto, não tem resposta. Isso é mais ou menos a pesquisa clássica, não tem resposta, é compreender como funciona o mundo. E isso é natural, é o processo da ciência. Nós tínhamos de fazer o genoma da cana e do eucalipto e a única maneira de fazer era com EST. Poderíamos ter optado por fazer um genoma um pouco maior. Enfim, os grandes projetos colaborativos funcionam bem quando o objetivo é muito claro. Todo mundo que entra sabe: ou chega naquele ponto, ou não chega. A analogia que faço é a seguinte: há um abismo entre duas rochas, eu venho correndo e vou pular.Eaí, ou chego do outro lado, ou caio no buraco. Não tem meio-termo. A ciência normal não é assim, ela vai progredindo, publica um paper, outro paper, nunca acaba. São raras as vezes em que se tem projetos científicos no mundo em queoobjetivo final é muito claro.
Qual a sua visão da pesquisa brasileira em biologia molecular, e no geral, hoje? E quanto ao futuro?
Não estou tão próximo do que as pessoas estão fazendo hoje, mas acho que ela voltou a ser clássica. Acho que falta no Brasil um projeto desses, com objetivos absolutamente claros. Mas nem sei se dá para a biologia molecular ter um projeto desses no momento, essa não é a maneira normal de a ciência operar, nem sempre se consegue achar projetos assim. E isso não é demérito, o conhecimento tem fases distintas.
Mas existem no país alguns grandes projetos colaborativos em curso, na área de saúde. Hipertensão, por exemplo.
Existe cooperação, sim, mas no sentido anterior, dos temáticos, por exemplo. E não dá, nesses casos, para acertar um objetivo e dizer vamos todos para lá.
Esses objetivos podem aparecer espontaneamente ou são sempre induzidos?
Veja, no caso da Xylella acho difícil dizer que se trata de um projeto totalmente induzido, porque ele foi proposto pela comunidade científica. Ocorre que na FAPESP a comunidade científica está lá dentro, diferente do que ocorre no CNPq. Assim, a FAPESP captou as vozes da comunidade e catalisou o processo. A pesquisa foi dirigida no sentido de que teve um órgão que disse “vamos fazer”, mas igualmente não o foi porque não nasceu fora da comunidade científica.
Vamos passar um pouco ao campo privado. Parece-nos que uma das mudanças no padrão brasileiro de produção científica foi que aumentou, depois da segunda metade dos anos 1990, a possibilidade da pesquisa no ambiente empresarial.
Há várias razões para isso. Durante a ditadura, a universidade foi um centro de resistência e queria distância do setor privado. Na medida em que a democratização veio, isso começou a mudar. Outra coisa é que está mudando a percepção que se tem da ciência. Todo mundo fala que ela gera riqueza e nos Estados Unidos, por exemplo, isso é verdade. O desenvolvimento científico que gera novas tecnologias, gera novas empresas, gera imposto, gera emprego e riqueza para o país e essa riqueza volta para a universidade. Um ciclo virtuoso do investimento em C&T. No Brasil, esse círculo está começando a fechar. Não fechava antes por uma conjunção de coisas. No início não tinha cientista. Até os anos 1970 não tinha massa crítica. Depois começou a ter massa crítica, mas os cientistas não queriam saber do setor privado. Quando voltou a democracia, tinha massa crítica, mas havia reserva de mercado e não tinha a demanda das empresas. O Brasil era fechado. Daí abriu-se o país. Agora tem massa crítica e as coisas começaram a fluir. Para fechar o ciclo, precisava de capital, que começou a surgir há uns cinco ou seis anos.
O projeto da Xylella, além do seu significado na biologia molecular, sinaliza um momento de mudança também para outros setores da sociedade?
O setor privado não sabe o que acontece na universidade. AXylella, como teve projeção internacional, sinalizou que aciência brasileira tinha competência. Tinha muita coisa acontecendo, mas não eram óbvias. Na hora que sai na Nature, no The Economist, o primeiro genoma de planta, aí se constata que o negócio funciona. Tem de ter visibilidade e chamar a atenção. Não foi a primeira evidência de que a ciência era competente. Exatamente porque a ciência era competente que surgiu a Xylella. Para o setor privado isso significou que era possível investir na universidade e que esta poderia ser utilizada para desenvolver tecnologia para as empresas.
Mas, quando saiu o resultado da Xylella, aqui em São Paulo já existiam programas de inovação tecnológica, como o PITE ou PIPE, formulados desde 1995…
É claro que na academia havia o reconhecimento da necessidade de integração com o setor privado. Mas quantas vezes a Fiesp ou a CNI foram à FAPESP para afirmar: precisamos da ciência de vocês? Isso não existia e ainda não existe direito. A demanda têm que vir do setor privado. E só vai ocorrer quando o setor privado nacional olhar a universidade do mesmo jeito que o setor privado norte-americano olha a universidade americana.
E isso está começando, ou não?
Está começando. Não é um movimento suficientemente forte para resultar numa virada. E o problema é o seguinte: quanto de risco o setor privado está disposto a tomar. Se eu moro na Suíça, um país tranqüilo, e pulo de pára-quedas, faço uma coisa superarriscada. Tenho uma vida com risco baixo e meu risco é o esporte radical. Mas, se eu moro no Brasil, sair de casa de manhã e não ser assaltado ou atropelado já é um risco. Por que eu ainda vou correr o risco a pular de pára-quedas? O problema na indústria nacional é a mesma coisa. O Brasil não tem estabilidade política, não tem marco regulatório e tem instabilidade de tantas naturezas que a empresa, que já está tomando um monte de riscos, teme assumir o risco de desenvolver novas tecnologias. É risco demais. Os empresários – a não ser que muito pressionados – preferem não investir. Quando se fala que empresário brasileiro não quer correr risco, não é justo. Talvez ele não corra o risco que a gente, cientista, gostaria queele corresse, que é investir em nova tecnologia.
O fato de você estar ligado ao maior grupo privado brasileiro e ser presidente de uma empresa de base tecnológica não sinaliza o oposto do que você está dizendo?
Esse processo se iniciando e é natural que comece no grupo que pode se dar ao luxo desses riscos. Nos Estados Unidos, grupos menos sólidos correm esse risco tecnológico. Mas você não vê grupos nacionais desenvolvendo novas drogas. Por causa dos riscos. Num país em que ambiente de risco é baixo, para progredir é preciso correr o risco, por exemplo, de desenvolver um novo remédio. Aqui no Brasil o mesmo negócio tem outros riscos – o governo pode tabelar o preço do remédio etc. Então o empreendedor pensa: vou é fazer lobby para não congelarem o preço. A preocupação com inovação é secundária.
Dentro desses riscos que no ambiente brasileiro parecem ser maiores, como fica a questão das patentes?
A biologia molecular de plantas, por exemplo, leva automaticamente aos transgênicos. Considere três empresas que querem fazer transgênicos: uma na Europa, uma nos Estados Unidos e outra no Brasil. A Europa não aceita transgênicos, as regras são conhecidas e todo mundo sabe que não pode. Nos Estados Unidos, as regras são conhecidas e a produção e comercialização de transgênicos é permitida. No Brasil, nãosesabe se pode ou não. A regra não está definida, está tudo parado na Justiça, o projeto de lei de biossegurança está no governo e ninguém sabe se será aprovado.
Mas isso não tem a ver com o desenvolvimento tecnológico, mas com o ambiente econômico?
Mas são essas coisas que determinam o desenvolvimento científico. O sistema jurídico do país é difícil, o sistema de patentes não funciona. Não se sabe se o Judiciário vai fazer valer minha patente. No Brasil, tudo leva muito tempo. O Inpi já não funciona direito e o Judiciário não funciona direito…
Mas não existe uma lei de patentes no Brasil? Isso não está regulado?
Uma coisa é você ter a regulamentação legal e a outra é cumprir na prática. Veja o caso da Monsanto com a soja transgênica, na Argentina, que tem uma lei de patentes. O agricultor planta a soja e não paga os royalties. A empresa vai à Justiça para multar o infrator. A Justiça não multa, e o outro não paga. Uma coisa é ter a lei, a outra é cumprir. É o mesmo que comprar uma fazenda no Pontal do Paranapanema. A terra está barata, mas é arriscado: os sem-terra podem invadir. Você não só tem que ter a lei como ter um aparato que garante que ela seja cumprida.
Quais são suas apostas no desenvolvimento da biotecnologia no campo empresarial?
O ideal é apostar em coisas que, se não der para vender no Brasil, você vende fora, como é o caso da biotecnologia humana e agrícola. Quando se tem uma coisa de fronteira, muito na frente, o mercado é global.
Mas o que vocês estão fazendo hoje ainda é mais factível para o mercado nacional…
É factível para qualquer mercado. Um bom exemplo é a tecnologia da Embraer que é global. Se fechar a fábrica brasileira, poderá se produzir avião na Venezuela. As pessoas tentam investir em coisas que minimizem o risco do país onde elas estão. Se a Embraer fizer um avião que só dá para fazer aqui no Brasil é muito arriscado.
Mas quando se pesquisa quem é o agente causador da morte súbita, você está pensando num problema brasileiro…
Está aí um dos problemas da Alellyx.