No fim de março, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) denunciou o general reformado José Antonio Nogueira Belham como um dos responsáveis pela morte do deputado Rubens Paiva, preso e torturado pela ditadura militar. Paiva foi detido e morto em janeiro de 1971 em bases da Aeronáutica e do Exército no Rio de Janeiro. Belham à época comandava o Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) do Rio, mas sempre sustentara que estava de férias quando Paiva foi preso. Uma ficha funcional que ele próprio repassou para a CNV mostrou, no entanto, que ele havia recebido diárias de serviço justamente naqueles dias.
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O episódio demonstra não só a importância do exame dos arquivos dos órgãos sob controle da ditadura, como a atenção para detalhes que às vezes passam despercebidos até pelas pessoas mais interessadas neles. “A importância principal dos trabalhos da CNV é a possibilidade de articular informações testemunhais e materiais vindas de diversas fontes”, diz Vicente Câmara Rodrigues, assistente da diretoria do Arquivo Nacional para o projeto Memórias Reveladas – Centro de Referência de Lutas Políticas, 1964-1985, que tem como coordenadora a pesquisadora Inez Stampa.
O acervo que agora se encontra reunido em rede tornou-se o destino final dos documentos sobre a ditadura militar quando, em 2005, a Casa Civil da Presidência da República determinou que as instituições federais transferissem toda a informação guardada sobre o período para o Arquivo Nacional. Isso decuplicou a quantidade de dados sobre o regime abrigados na instituição. “Só no Arquivo Nacional estima-se que existam 16,5 milhões de páginas de textos, a que se somam cerca de 10 milhões que estão nos arquivos estaduais”, diz Rodrigues.
Com a Lei de Acesso à Informação, de 2011, o Arquivo Nacional se organizou para, no ano seguinte, liberar ao público todos os documentos sobre a ditadura militar, a não ser que estejam sendo tratados tecnicamente. Estão lá, recolhidos, todos os arquivos do Conselho de Segurança Nacional (CSN), da Comissão Geral de Investigações (CGI) e do Serviço Nacional de Informações (SNI), provenientes da Agência Brasileira de Inteligência (Abin).
Em cada órgão federal há um representante do Sistema de Gestão de Documentos de Arquivo (Siga) ou da Casa Civil, que coordena e torna acessíveis, entre outros, os papéis da ditadura militar, repassando-os ao Arquivo Nacional. Este também pode tomar a iniciativa de buscar documentação nesses órgãos. Segundo Rodrigues e Inez, hoje estão recolhidos no Arquivo Nacional os documentos de 30% dos órgãos federais (o que não significa 30% do total de dados).
Uma vez obtidos, os papéis passam por alguns processos antes de chegarem ao público. Primeiramente são classificados sumariamente. Se necessário, passam para a área de preservação. Em seguida vão para o controle de informação, onde são descritos (o que é, quem enviou para quem etc.) e digitalizados. A partir daí são abertos ao público no banco de dados Memórias Reveladas.
Mesmo com todo esse cuidado, nem sempre é possível saber se os arquivos foram adulterados. Mas, como cada órgão tinha um sistema de informações sigilosas que se reportava ao SNI, as cópias enviadas para lá são valiosas para comparação com os originais. Nos casos em que os órgãos informam destruição (queima) de arquivos, é possível comprovar se isso realmente ocorreu por meio de atas exigidas pelo extinto Regulamento para Salvaguarda de Assuntos Sigilosos. A troca de informações com a CNV foi reforçada pelo deslocamento de funcionários do Arquivo Nacional para colaborar nos trabalhos de investigação. E na sede do arquivo há uma área destinada exclusivamente aos pesquisadores da CNV.
O estado de São Paulo mantém 340 mil registros de fichas do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops) abertos para consulta pública desde o início de 1994, por determinação da Secretaria de Cultura. Segundo Lauro Ávila Pereira, ex-diretor do Departamento de Preservação e Difusão do Acervo, há quase 10 milhões de páginas de documentos sobre a ditadura militar no arquivo, 10% delas digitalizadas. Os processos de tratamento e digitalização contaram com apoio da FAPESP e da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, por meio do edital Marcas da Memória.
Os documentos do Deops são os mais procurados do Arquivo Público do Estado e o fato de já estarem disponíveis há 20 anos formou, segundo Pereira, “uma geração de pesquisadores especializados”. Eles se encarregam do difícil trabalho de leitura das informações contidas na documentação. Para evitar perdas, o Arquivo do Estado optou por manter a lógica do arquivamento feito pelos órgãos de segurança do regime em São Paulo.
Contribuições suplementares e preciosas sobre as violações aos direitos humanos durante a ditadura vêm de pesquisadores dos arquivos do governo norte-americano. Dois dos mais importantes estiveram no Brasil para participar de eventos que marcaram o 50º aniversário do golpe: James Green, historiador da Universidade Brown, e Peter Kornbluh, diretor de documentação sobre o Brasil no National Security Archive, organização sem fins lucrativos vinculada à Universidade George Washington.
Green participou da inauguração do site do projeto Opening the Archives (“abrindo os arquivos”), uma parceria entre a Brown e a Universidade Estadual de Maringá (PR). O site contém quase 10 mil documentos norte-americanos produzidos pelo Departamento de Estado e pela Agência Central de Inteligência (CIA). Neles estão registradas observações sobre o perfil dos estudantes que se manifestavam contra o regime, o apoio ativo de parte do empresariado brasileiro e detalhes sobre as atividades do adido militar dos Estados Unidos, coronel Vernon Walters, nos primeiros anos do regime.
“Estamos encontrando detalhes importantes sobre o apoio ao Ato Institucional nº 5 pela Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos em São Paulo e sobre o debate interno no Departamento do Estado a respeito dos efeitos do decreto”, diz Green. “Mas temos que entender que a pesquisa mais interessante neste momento é um trabalho longo e detalhado, juntando fontes, elementos e indícios para construir uma leitura mais densa das relações entre os dois países.”
A participação indireta dos EUA no golpe e na ditadura militar foi confirmada em 1977 pela pesquisadora Phyllis Parker, que encontrou documentação sobre a operação Brother Sam (“irmão Sam”) e publicou um livro sobre o assunto, O papel dos Estados Unidos da América no golpe de estado de 31 de março. As violações aos direitos humanos haviam entrado na pauta dos assuntos governamentais por iniciativa do presidente Jimmy Carter (1977-1981). “Até então as informações sigilosas não davam ênfase à tortura e a outros abusos da primeira década da ditadura”, diz Kornbluh. “Mas os documentos norte-americanos que estão sendo revelados agora lançam luz sobre horríveis agressões cometidas pelos militares – e também expõem o papel do Brasil na Operação Condor e outras ações secretas das forças policiais brasileiras no exterior.”
Projeto
Preservação e difusão da memória pública: modernização e ampliação dos laboratórios do Arquivo Público do Estado de São Paulo (nº 2009/54965-1); Modalidade Programa Infraestrutura 6 – Arquivos; Pesquisador responsável Carlos Bacellar – FFLCH-USP; Investimento R$ 1.692.982,33 (FAPESP).