Na manhã do dia 1º de maio de 1997, o físico José Fernando Perez, então diretor científico da FAPESP, recebeu um telefonema do biólogo Fernando Reinach, à época professor do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP). Desde o ano anterior eles discutiam novas formas de investir na qualificação científica dos pesquisadores brasileiros na área de genética molecular, considerada central para o domínio da biotecnologia. Da longa conversa entre os dois nasceu o que se tornou o primeiro projeto de sequenciamento de um genoma no Brasil, o da Xylella fastidiosa, bactéria causadora da clorose variegada dos citros (CVC), uma das piores pragas dos laranjais de São Paulo. Lançado em 14 de outubro daquele ano, o projeto envolveu 35 laboratórios e 191 pesquisadores de várias instituições do estado e de diferentes disciplinas, integrados virtualmente pela Rede de Organização para o Sequenciamento e Análise de Nucleotídeos (Onsa, em inglês). Além de inaugurar a pesquisa em genética molecular, o sequenciamento do primeiro fitopatógeno de planta no mundo representou uma nova forma de se fazer ciência no Brasil, contribuindo para a formação e qualificação de uma geração de jovens cientistas. Muitos usaram o conhecimento e a experiência adquiridos para abrir suas próprias empresas. Outros mudaram o foco de suas pesquisas, formaram novas redes de colaboração científica e avançaram em suas carreiras dentro e fora da universidade.
O mapeamento do genoma da Xylella ampliou as perspectivas de pesquisa em genética no Brasil. Outros sequenciamentos foram feitos a partir de então, como o projeto Genoma Cana, concluído em novembro de 2000, com o objetivo de sequenciar partes escolhidas do DNA da cana-de-açúcar e identificar genes com características de interesse econômico. Quase ao mesmo tempo surgiram os projetos Genoma Câncer, finalizado em março de 2002, e de sequenciamento do código genético da bactéria Xanthomonas citri, causadora do cancro cítrico, concluído em agosto de 2001. Esses empreendimentos científicos ajudaram a capacitar pesquisadores e a melhorar a infraestrutura dos principais laboratórios de São Paulo, acelerando o desenvolvimento da biologia molecular no Brasil.
A experiência adquirida ao participar do projeto e o promissor mercado de produtos e soluções biotecnológicas também incentivaram vários pesquisadores a se lançar como empreendedores. Em 2002, dois anos após a conclusão do sequenciamento, o cientista da computação João Paulo Kitajima deixou o Laboratório de Bioinformática (LBI) no Instituto de Computação da Universidade Estadual de Campinas (IC-Unicamp), onde trabalhava, para fundar, com outros integrantes do projeto, a Alellyx, empresa de pesquisa e desenvolvimento de produtos de biotecnologia voltada à geração e comercialização de patentes em genômica aplicada (ver Pesquisa FAPESP nº 74).
Kitajima se juntou à equipe de bioinformática logo após o início do projeto genoma da Xylella. “Comecei como analista de bioinformática no LBI ao lado dos bioinformatas João Meidanis e João Carlos Setubal. Então passei a ajudar na coordenação da parte de bioinformática do projeto, sendo o terceiro ‘João’ da liderança”, conta. À época, diante da necessidade de comunicação rápida entre os laboratórios envolvidos, a direção do projeto optou pela criação de uma rede virtual, com coordenação central, fisicamente espalhada pelos centros de pesquisa do estado de São Paulo. Lançada em dezembro de 1997, a rede Onsa interligou os laboratórios, estabelecendo vínculos entre pesquisadores e possibilitando o desenvolvimento de protocolos genéticos, troca de informações, resolução de problemas, adaptação e ajuste de técnicas.
A rede contava com um sistema de bioinformática para que os pesquisadores pudessem incorporar informações resultantes do sequenciamento do material genético da bactéria. Coube a Setubal, Meidanis e Kitajima garantir a manutenção do fluxo de informações. “Éramos responsáveis por receber os dados de sequenciamento produzidos pelos laboratórios e processá-los computacionalmente de forma a gerar um genoma completo”, conta Setúbal. “Não sabíamos se os grupos teriam acesso à banda de internet suficiente para nos enviar todas as informações genômicas”, relembra Meidanis, que entrou em contato com a bioinformática em seu doutorado na Universidade de Wisconsin-Madison, nos Estados Unidos, em 1989.
“Na Alellyx tive a oportunidade de coordenar a pesquisa aplicada e me especializar na área de processos regulatórios de organismos transgênicos”, conta o biólogo Jesus Aparecido Ferro, da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Jaboticabal e um dos fundadores da empresa. Ferro também foi um dos coordenadores do programa Genoma Funcional da Xylella, lançado em junho de 1999. O projeto tinha o propósito de investigar a função dos genes identificados ao longo do sequenciamento e, assim, compreender como a Xylella desencadeava a CVC.
Em 2008 a Alellyx foi vendida junto com a empresa CanaVialis para a multinacional Monsanto por US$ 290 milhões (o equivalente hoje a R$ 980 milhões). “Em 2009 fui para a área da saúde humana”, conta Kitajima. “Trabalhei como bioinformata no Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa do Hospital Albert Einstein até 2011.” Mais recentemente, ele e outros sócios fundaram a Mendelics Análise Genômica, empresa de diagnósticos genômicos personalizados.
Para Meidanis, o projeto marcou uma grande mudança em sua vida. “Tornei-me um híbrido entre acadêmico e diretor de empresa”, diz. Hoje ele divide seu tempo entre o cargo de professor na Unicamp e o de empresário na Scylla Bioinformática, empresa de softwares para o desenvolvimento da genômica e proteômica que fundou.
Projeto ambicioso
O projeto genoma da Xylella foi lançado em um período de forte incidência de pesquisas no campo da biologia molecular. No entanto, essa ciência engatinhava no Brasil. “Perez percebeu que a produção científica nesse campo crescia em outros países e que era preciso qualificar os pesquisadores brasileiros para que pudéssemos galgar uma posição de maior destaque no cenário científico internacional”, comenta Reinach em seu escritório no Fundo Pitanga, reunião de recursos de investidores interessados em empreendimentos de base tecnológica. A partir de então deu-se início a uma longa articulação científica em volta da elaboração do projeto. “Havia desconfiança por parte dos pesquisadores mais velhos”, ele conta. “Tratava-se de um projeto ambicioso, arriscado e que envolveria muito dinheiro”, diz o biólogo, que à época era um dos poucos pesquisadores brasileiros com experiência no campo da biologia molecular e do empreendedorismo científico, tendo sido fundador da primeira empresa a fazer testes de paternidade no país, a Genomic Engenharia Molecular.
A escolha do microrganismo a ser sequenciado se deu semanas antes do lançamento do projeto. “O genoma tinha de ser suficientemente grande para envolver muitos pesquisadores e suficientemente pequeno para conseguirmos conclui-lo”, conta Perez, em sua sala na Recepta Biopharma, empresa de biotecnologia criada por ele em 2005 e voltada à pesquisa e ao desenvolvimento de compostos com potencial de combater o câncer.
Naquele momento, o organismo que melhor preenchia esses pré-requisitos era o Thiobacillus ferrooxidans, usado em biomineração. Por sua vez, a Xylella era uma bactéria que nenhum grupo brasileiro havia conseguido cultivar. “Em setembro de 1997 o Fundo de Defesa da Citricultura [Fundecitrus] manifestou interesse em participar do projeto caso a Xylella fosse escolhida”, conta Perez. “Falei das dificuldades envolvendo a escolha da bactéria, mas eles rebateram dizendo que um pesquisador francês sabia como cultivá-la.” Referiam-se a Joseph Bové, do Instituto Nacional de Pesquisa Agronômica (Inra, em francês), em Bordeaux, França, que trabalhava com genética molecular e que havia se disposto a fornecer a bactéria, enquanto Frédéric Laigret, da Universidade Bordeaux 2, daria apoio à constituição de um banco de DNA da bactéria para fornecimento dos fragmentos a serem sequenciados. “Eles foram convincentes e escolhemos a Xylella”, diz Perez.
O projeto foi lançado com um investimento de US$ 12 milhões da FAPESP e mais US$ 400 mil por parte da Fundecitrus, o maior valor até então destinado a um empreendimento científico no Brasil. Dos 70 laboratórios que se candidataram para participar do projeto, 35 foram selecionados por um comitê internacional formado por Steve Oliver, da Universidade de Manchester, Inglaterra, André Goffeau, da Universidade Católica de Louvain, Bélgica, e John Sgouros, do Imperial Cancer Research Foundation, Inglaterra. Esse mesmo comitê ficou encarregado de supervisionar o andamento do projeto.
Por conta da inexperiência dos pesquisadores brasileiros no campo da biologia molecular, decidiu-se que o projeto contaria com coordenadores de DNA e bioinformática, além de laboratórios centrais de sequenciamento para treinar os pesquisadores e gerar as sequências necessárias. A coordenação de DNA ficou a cargo do bioquímico Andrew Simpson, do Instituto Ludwig de Pesquisas sobre o Câncer, em São Paulo. Os laboratórios centrais de sequenciamento foram o Laboratório de Biologia Molecular do IQ-USP, à época chefiado por Reinach, e o Centro de Biologia Molecular e Engenharia Genética (CBMEG) da Unicamp, coordenado pelo biólogo Paulo Arruda. Os laboratórios selecionados receberam sequenciadores automáticos de DNA, reagentes e assessoria técnica. A Xylella seria mapeada por meio de 99 cosmídeos, fragmentos de DNA que carregam e multiplicam partes do genoma que se quer estudar.
Menos de um ano após o lançamento do projeto, 90% do código genético da Xylella havia sido sequenciado. Restavam ainda alguns buracos, ou interrupções da sequência total do genoma, chamados gaps. Para fechá-los e confirmar a ordem dos cosmídeos, Simpson desenvolveu abordagens experimentais alternativas nos laboratórios do Instituto Ludwig, enquanto tentava ligar os cosmídeos aos que lhe eram contíguos, de modo a ordenar as sequências e descrever completamente o genoma.
Novas oportunidades
A geneticista Anamaria Camargo se juntou à equipe liderada por Simpson no Instituto Ludwig em 1998, em seu estágio de pós-doutorado. Seu trabalho consistiu no fechamento dos gaps do genoma da Xylella com as pesquisadoras Cláudia Monteiro-Vitorello, Elizabeth Martins, Mariana Cabral de Oliveira, Marie-Anne Van Sluys, Marilis do Valle Marques e Ana Cláudia Rasera. “Hoje trabalho na área de genômica do câncer usando muito do que aprendi no projeto da Xylella”, conta Anamaria, coordenadora do Centro de Oncologia Molecular do Instituto Sírio-Libanês de Ensino e Pesquisa, em São Paulo. Sua colega, a bióloga Marilis do Valle Marques, envolveu-se no projeto a convite da física Suely Lopes Gomes, professora do IQ-USP. “Participei da análise e montagem das sequências e da montagem e anotação do plasmídeo pXF51, que se mostrou desafiador por ter uma região duplicada, dificultando a montagem da sequência”, explica Marilis, professora do Departamento de Microbiologia do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP.
O projeto foi concluído em janeiro de 2000 e consistiu no sequenciamento de 2,7 milhões de pares de bases do cromossomo da Xylella. No dia 13 de julho daquele ano, a Nature dedicou a capa da revista ao trabalho. No Brasil, os pesquisadores receberam prêmios e homenagens, como a Medalha Paulista de Mérito Científico e Tecnológico, concedida pelo governo do estado de São Paulo (ver Pesquisa FAPESP nº 51).
Para Simpson, o sucesso do projeto genoma da Xylella lhe permitiu liderar outros projetos, como o do Genoma do Câncer. “Como resultado desses trabalhos, fui promovido a diretor científico do Instituto Ludwig em Nova York”, conta. Anos depois ele voltou para o Brasil como diretor presidente da empresa de biotecnologia Orygen, que trabalha no desenvolvimento, fabricação e comercialização de anticorpos terapêuticos e vacinas.
O projeto genoma da Xylella se transformou em uma oportunidade para muitos jovens cientistas se consolidarem como pesquisadores independentes. Após participar do projeto, o biólogo Marcelo Briones, do Departamento de Microbiologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), tornou-se um dos coordenadores do projeto Genoma Câncer ao lado de Simpson. À época, os equipamentos usados em seu laboratório para o sequenciamento dos cosmídeos da Xylella o ajudaram a sequenciar genes expressos em cânceres de grande incidência no Brasil, como os de colo de útero e de cabeça e pescoço. Em 2000, após a conclusão dos dois projetos, Briones recebeu um financiamento do Instituto de Medicina Howard Hughes, nos Estados Unidos, para desenvolver pesquisas sobre doenças infecciosas e parasitárias no Brasil. “Sem os equipamentos e conhecimento adquiridos durante os projetos genoma Xylella e do Câncer, não teria conseguido o financiamento”, conta.
“Toda minha carreira se baseia no estudo da Xylella”, diz a bióloga Alessandra Alves de Souza, do Centro de Citricultura Sylvio Moreira do Instituto Agronômico de Campinas (IAC), em Cordeirópolis, interior paulista. Formada em Pernambuco, Alessandra veio para São Paulo quando ingressou no mestrado na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP. No doutorado, na Unicamp, fez análises comparativas da expressão de genes da Xylella associados à patogenicidade e à formação de um biofilme que une a comunidade de microrganismos invasores nas plantas. Isso a levou a estudar uma molécula chamada N-acetilcisteína (NAC) como possível alternativa de controle da CVC. O NAC é um composto usado para desobstruir as vias respiratórias e reduzir os biofilmes formados por bactérias que causam doenças em humanos. Em testes preliminares, o NAC se mostrou eficaz ao romper os biofilmes produzidos pela Xylella, reduzindo os sintomas da CVC. Recentemente, Alessandra e a bióloga Simone Picchi, também do IAC, abriram a CiaCamp, empresa de pesquisa e desenvolvimento de fertilizantes à base de NAC (ver Pesquisa FAPESP nº 247). Alessandra hoje participa de um projeto financiado pela Comissão Europeia para o combate de uma variante da Xylella na Itália que está destruindo as oliveiras da região de Puglia.
A bióloga Cláudia Monteiro-Vitorello já havia trabalhado com sequenciamento de DNA mitocondrial de um fungo causador de doenças em castanheiras americanas em seu pós-doutorado na Universidade do Estado de Michigan, nos Estados Unidos. Quando voltou ao Brasil, em 1998, foi convidada para integrar a equipe do engenheiro agrônomo Luiz Lehmann Coutinho, do Departamento de Ciência Animal da Esalq-USP. “Durante o projeto da Xylella participei de um curso no Laboratório Nacional de Computação Cientifica (LNCC), no Rio de Janeiro”, conta. Lá conheceu Amos Bairoch, coordenador da Swiss-Prot, banco de dados de proteínas suíço. “Por conta desse encontro e do projeto da Xylella, fui contratada para trabalhar no Swiss-Prot na parte de anotações de genomas de bactérias”, lembra. Em 2008 Cláudia voltou para a universidade como professora adjunta em microbiologia na Universidade Federal do ABC, em Santo André. Em 2009 foi para a Esalq-USP, onde atua na área de genômica da interação planta patógeno envolvendo doenças de cana-de-açúcar.
Para a bióloga Marie-Anne Van Sluys, do Departamento de Botânica do Instituto de Biociências (IB) da USP, o projeto genoma da Xylella foi uma oportunidade para transformar seus estudos sobre interação entre bactérias e plantas no foco principal de suas pesquisas. Após o término do sequenciamento do genoma da Xylella, Marie-Anne e a bióloga Mariana Cabral de Oliveira, também do IB-USP, lideraram um projeto voltado à decodificação dos genomas de uma cepa da Xylella responsável pela destruição das videiras nos Estados Unidos e da bactéria Leifsonia xyli subsp xyli, que ataca o talo da cana de açúcar. “Também participamos de uma rede liderada pelo Joint Genome Institute, dos Estados Unidos, para desvendar o DNA de outras duas cepas da Xylella que acometem a amendoeira e que se instalam em uma planta conhecida como espirradeira”, conta.
“Foi uma época de grande interação com pesquisadores de diversas áreas”, conta Mariana. A bióloga participou de todas as etapas do projeto do genoma da Xylella, do sequenciamento à análise macroestrutural e comparativa dos genomas, o que lhe permitiu mais tarde transferir as técnicas de análise de sequências em larga escala para seu estudo com algas. Para Perez, o projeto mostrou que o Brasil é capaz de fazer pesquisa de forma colaborativa, envolvendo a comunidade científica, o poder público e a iniciativa privada. “Mais do que isso: permitiu ao país mudar sua percepção sobre suas capacidades e seu lugar no mundo da ciência.”
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