Em 10 de junho deste ano, aos 94 anos, morreu o comendador Affonso Brandão Hennel, que durante décadas dirigiu a empresa Sociedade Eletro Mercantil Paulista, mais conhecida pela sigla Semp. Criada em 1942 no bairro da Barra Funda, na cidade de São Paulo, foi a primeira empresa a montar no Brasil um televisor, em 1951. Em 1972, passou a fabricar a primeira TV em cores nacional, vendida, a partir de 1977, com a marca Semp-Toshiba, em razão de uma sociedade com a empresa japonesa, desfeita em 2016.
Os aparelhos smart TV que saem das fábricas como a agora chamada Semp TCL, em razão da fusão com a multinacional chinesa TCL Corporation, marcam uma história de contínua evolução tecnológica, palpites frustrados e competição crescente, iniciada há 100 anos. Com uma caixa de papelão, lentes de faróis de bicicleta, agulhas de costura e tesouras, o engenheiro escocês John Logie Baird (1888-1946) montou um aparato que foi capaz de enviar uma figura estática, a silhueta de uma cruz de Malta, de um transmissor eletromecânico para um receptor a alguns metros de distância, em 1924. Foi a primeira transmissão de TV da história.
Internet Archive | Memória da PropagandaA primeira revista sobre televisão, de 1928; propaganda dos anos 1960 do televisor Invictus, uma das primeiras marcas fabricadas no Brasil; e uma edição de 1964 da Monitor de Rádio e Televisão, publicada de 1947 a 1982Internet Archive | Memória da Propaganda
Dois anos depois, diante de membros da Royal Institution, Baird transmitiu uma figura humana em movimento de uma sala a outra de seu laboratório, em Londres. Uma pequena imagem em preto e branco, trêmula e fragmentada, numa tela de 8 centímetros (cm) por 6 cm. O logotipo do novo produto era ambicioso: um globo com um olho no centro e os dizeres “The eye of the world” (O olho do mundo).
Em 1927, Baird enviou um sinal de TV a uma distância de 653 quilômetros, de Londres, na Inglaterra, a Glasgow, na Escócia. Em 1928, fez a primeira transmissão de TV transcontinental, de Londres para Nova York. E, nesse mesmo ano, a primeira transmissão em cores, assim descrita pela revista científica Nature de 18 de agosto: “Delfínios e cravos apareceram em suas cores naturais e uma cesta de morangos mostrou a fruta vermelha muito claramente”. O relato da Nature também vaticinava: “[…] temos a certeza de que [a TV] se tornará parte da nossa vida cotidiana. Em vez de apenas ouvir um especialista descrever o progresso de uma corrida de barco ou de um jogo de futebol, a geração mais jovem pode esperar vê-los também numa televisão”.
A recepção do público não foi tão efusiva quanto a dos cientistas. Um memorando de 1º de outubro de 1928 da British Broadcasting Corporation (BBC), a emissora pública do Reino Unido, assinala que a TV eletromecânica de Baird, então em testes, só permitia movimentos muito lentos, pois qualquer gesto com velocidade normal produzia um borrão. E a expressão dos espectadores, que saíam do show, “não demonstrava nem entusiasmo nem interesse”. O que certamente se justifica pela baixa qualidade de imagem: enquanto as TV atuais podem ter mais de mil linhas de resolução, a TV de Baird tinha apenas 30.
Hulter-Deutsch Collection / Corbis via Getty ImagesEm 1925, Baird ajusta um transmissor de um aparelho rudimentar de televisão, inventado por eleHulter-Deutsch Collection / Corbis via Getty Images
Duas décadas depois, embora a qualidade técnica já tivesse melhorado bastante, a TV ainda enfrentava alguma resistência. Em 1946, o produtor cinematográfico norte-americano Darryl Francis Zanuck (1902-1979), fundador do estúdio de cinema 20th Century Fox, teria dito: “A televisão não conseguirá manter nenhum mercado por mais de seis meses. As pessoas logo se cansarão de ficar olhando para uma caixa de madeira todas as noites”. Não podia estar mais enganado. Após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o desenvolvimento econômico dos Estados Unidos tornou a TV um bem de consumo acessível e indispensável, com lugar de destaque garantido nas salas de estar das famílias norte-americanas.
No Brasil, a televisão chegou em 1950. A emissora pioneira foi a TV Tupi de São Paulo, inaugurada em 18 de setembro pelo jornalista e empresário Assis Chateaubriand (1892-1968). Nesse dia, havia apenas 200 receptores de TV, que o próprio Chateaubriand havia importado às pressas dos Estados Unidos ao se dar conta de que não haveria quem assistisse à estreia, relata o escritor Fernando Morais no livro Chatô: O rei do Brasil (Cia. das Letras, 1994). Atualmente, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estima que 71,5 milhões de domicílios brasileiros, o equivalente a quase 80% dos 90,7 milhões, estão equipados com televisor, que pode receber o sinal de 583 emissoras e 13.692 retransmissoras.
Síntese de saberes
A palavra televisão começou a ser empregada por volta de duas décadas antes que o invento fosse apresentado ao mundo (ver linha do tempo abaixo). Consta que tenha sido criada pelo cientista russo Constantin Perskyi (1854-1906), a partir da junção das palavras tele (longe, em grego) e videre (ver, em latim). Ele a usou pela primeira vez no Congresso Internacional de Eletricidade da França, uma das atividades da Exposição Universal de 1900, em Paris, ao apresentar uma tese sobre a possibilidade de transmissão de imagens a distância com base nas propriedades fotoelétricas do selênio (a capacidade de converter luz em eletricidade), demonstradas 27 anos antes pelo engenheiro eletricista inglês Willoughby Smith (1828-1891).
“A TV é o resultado de conhecimentos e experiências em diferentes campos do conhecimento, como mecânica, eletricidade e engenharia, e nasceu da pesquisa de centenas de pessoas”, destaca o engenheiro eletricista Marcelo Zuffo, da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP) e coordenador do Centro Interdisciplinar em Tecnologias Interativas da USP (Citi-USP). Dois avanços científicos foram importantes para esse desenvolvimento: o disco de Nipkow e, principalmente, o tubo de raios catódicos.
O invento do alemão Paul Nipkow (1860-1940) era a peça-chave do aparelho eletromecânico de Baird. O disco giratório com furos para captar as imagens baseava-se numa característica do olho humano chamada de persistência visual. “A imagem captada pelo olho permanece na retina por microssegundos”, explica Zuffo. “Quando o disco era girado rapidamente, as imagens captadas eram percebidas como se estivessem em movimento.” Foi utilizando o disco de Nipkow que Baird fez seu aparelho de TV pioneiro.
Science MuseumThe Televisor, projetado por Baird, o primeiro aparelho receptor de TV, vendido na Europa nos anos 1930Science Museum
Os discos giratórios da TV eletromecânica logo seriam superados pela tecnologia da TV eletrônica analógica, que utilizava o tubo de raios catódicos inventado em 1897 pelo físico alemão Karl Ferdinand Braun (1850-1918). O tubo de raios catódicos, com o formato de um decantador de vinho deitado, convertia o sinal elétrico em imagem.
As TV de tubo – que os pesquisadores chamam de TV 1.0 – dominaram o mercado mundial por décadas. Outro avanço foi a TV em cores, desenvolvida nos anos 1960, que só chegou ao Brasil na década seguinte.
visions4netjournalPropaganda de 1953 de um tubo de raios catódicosvisions4netjournal
O salto tecnológico seguinte, a TV 2.0, seria do sistema analógico para o digital, que converte o sinal em sequências de números binários. Os primeiros estudos para a implantação da TV digital no Brasil começaram no mesmo ano em que entrou em operação nos Estados Unidos, em 1998. “Começamos fazendo testes comparativos entre os padrões norte-americano, europeu e japonês de TV digital”, lembra o engenheiro eletricista Cristiano Akamine, da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
O Mackenzie sediou em 2004 a primeira reunião para formalizar uma grande rede de cooperação científica com o objetivo de formatar o Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD), que mobilizou 1.200 pesquisadores brasileiros (ver Pesquisa FAPESP nº 120). “Em 29 de junho de 2006, o governo federal publicou o Decreto nº 5.820, instituindo o Sistema Brasileiro de TV Digital, com base nas recomendações da academia brasileira”, orgulha-se Akamine.
A TV digital estreou no Brasil em 2007 e o encerramento das transmissões analógicas em todo o país havia sido previsto para o final de 2024, mas em dezembro de 2023 o Ministério das Comunicações estendeu o prazo até junho de 2025. Enquanto isso, pesquisadores reunidos no Fórum do Sistema Brasileiro de TV Digital Terrestre já estudam inovações para a TV digital. A chamada TV 3.0 (o nome comercial é DTV+) promete qualidade de vídeo e áudio superior à atual e novas funcionalidades, como personalização de conteúdos, mesmo na TV aberta. “Os números de canais de TV serão substituídos por aplicativos das emissoras de TV aberta. O telespectador vai navegar como se estivesse em uma plataforma de streaming. A televisão ficará cada vez mais parecida com o smartphone”, prevê Akamine. Em 2011 chegaram as smarts TV, que se diferenciam da digital por contar com acesso à internet e a aplicativos.
Archives New ZealandTeste de televisão em cores na estação de transmissão Mount Kaukau, Nova Zelândia, em 1970Archives New Zealand
Espaço de discussão
Às inovações tecnológicas corresponderam mudanças nos modos de fazer e ver TV. O videoteipe, ou VT, inventado nos Estados Unidos em 1956 e adotado no Brasil em 1959, trouxe a primeira grande alteração. Enquanto os primeiros programas eram adaptações dos sucessos do rádio e do teatro, apresentados necessariamente ao vivo, o videoteipe permitiu a gravação fora dos estúdios e o surgimento de novas experiências narrativas na ficção televisiva.
“A possibilidade de gravar cenas externas permitiu que os roteiristas levassem à telenovela lugares e referências que os telespectadores conseguiam reconhecer”, conta a cientista social Maria Immacolata Vassallo de Lopes, da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP) e coordenadora do Centro de Estudos da Telenovela (CETVN).
Quad Videotape GroupDetalhe da fita de videoteipe, que permitia ao operador editar trechos dos filmesQuad Videotape Group
A partir de 1965, as transmissões via satélite contribuíram para que a televisão se consolidasse como o principal meio de comunicação de massa do país. “A TV se tornou um dos principais agentes de transformação cultural e política no Brasil. Alcança todas as classes sociais, mobiliza debates e interfere até no horário de grandes eventos esportivos e culturais em função de sua grade de programação”, exemplifica Gilberto Alexandre Sobrinho, do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Para o historiador Eduardo Victorio Morettin, também da ECA-USP, a TV é uma fonte histórica privilegiada. Com apoio da FAPESP, ele cataloga o acervo jornalístico da TV Tupi, depositado na Cinemateca Brasileira: “Estamos fazendo o levantamento das telerreportagens de interesse para digitalização. Em um ano já levantamos 4 mil notícias”.
O acervo catalogado revelará de que maneira a TV retratou temas como o movimento pela anistia, o golpe de 1964, protestos estudantis e o movimento de maio de 1968, na França. “Nossa intenção é mostrar como esses telejornais contribuíram para a construção de uma sociedade que se configurou numa perspectiva mais conservadora”, diz Morettin.
A televisão – e, em particular, a telenovela – converteu-se em um espaço público de discussão de temas representativos da sociedade. “É um recurso comunicativo que, se bem aproveitado, pode contribuir para a inclusão social, responsabilidade ambiental e respeito às diferenças”, defende Lopes.
Museu Brasileiro de Rádio e TelevisãoFuzarca e Torresmo, comediantes dos anos 1950 da TV TupiMuseu Brasileiro de Rádio e Televisão
Contudo, a relevância da televisão na sociedade brasileira ganhou a concorrência, nos últimos anos, da internet e de plataformas de streaming de vídeo. Os programas da TV aberta competem com conteúdo produzido em diversas partes do mundo e o próprio televisor encontra um substituto no aparelho celular. De acordo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) do IBGE de 2022, 91,5% dos domicílios brasileiros já têm acesso à internet, e a porcentagem de domicílios com assinatura paga de streaming de vídeo chegou a 43,4% (31,1 milhões). “Em diversos países, como nos Estados Unidos, o streaming é mais assistido que a TV aberta. É questão de tempo, vai acontecer no Brasil”, avalia Sobrinho.
“Uma nova tecnologia nunca acabou com a anterior”, discorda Lopes. Segundo ela, no campo da ficção televisiva está ocorrendo um processo de mútua influência, a “serialização da novela e a novelização da série”. Enquanto as telenovelas investem em estruturas narrativas mais dinâmicas, já existem séries cujos episódios são lançados capítulo a capítulo, como na novela.
“No Brasil, a audiência está caindo, mas a TV aberta ainda domina. Ela é um dos únicos meios de comunicação que conseguem falar massivamente com a população de mais de 200 milhões de habitantes”, considera a pesquisadora da área de comunicação Melina Meimaridis, em estágio de pós-doutorado na Universidade Federal Fluminense. Ela prevê que a televisão na sala continuará existindo ao lado do celular e do monitor de computador. “Não é um versus o outro, o espectador não vai ficar preso a uma única experiência.”
A reportagem acima foi publicada com o título “Válvulas, videoteipe e smart TV” na edição impressa n° 346, de dezembro de 2024.
Projeto
Audiovisual, história e preservação: O lugar dos cinejornais e das telerreportagens brasileiros na construção da memória (1946-1974) (nº 22/06032-0); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Eduardo Victorio Morettin (USP); Investimento R$ 1.767.131,92.
Artigos científicos
LOPES, M. I. V. de. Telenovela como recurso comunicativo. Matrizes. v. 3, n. 1. 15 dez. 2011.
MEIMARIDIS, M. Revendo a hegemonia da TV brasileira: O streaming de vídeo como força disruptiva na indústria televisiva nacional. Revista Geminis. v. 14, n. 2. 19 out. 2023.
VERRUMO, M. A. et al. Maria Immacolata Vassallo de Lopes e os 30 anos do Centro de Estudos de Telenovela da USP: Uma jornada narrada pela teleficção. Matrizes. v. 17, n. 1. 30 abr. 2023.
Livros
MORAIS, F. Chatô, o rei do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
GOMES, G. O. e LOPES, M. I. (Orgs.). Anuário Obitel 2020. O melodrama em tempos de streaming. Porto Alegre: Editora Sulina, 2020.
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