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RESISTÊNCIA

Difícil sobrevivência

Durante a ditadura, a FAPESP ajudou a manter pesquisadores no país

O físico Cerqueira Leite...

ROBERTO DE BIASI/AEO físico Cerqueira Leite…ROBERTO DE BIASI/AE

Para fazer ciência é preciso espaço, um horizonte bem amplo para se enxergar à distância e muitos caminhos para escolher. Ou seja, ciência pressupõe liberdade de pensamento. É possível imaginar, então, que efeitos podem ter uma ditadura na produção científica de um país. Na década de 70, muitos cientistas deixaram o Brasil ou deixaram a ciência. Mas, como em toda crise, também é possível contabilizar ganhos nesse período. A FAPESP manteve sua firmeza no propósito de apoiar a pesquisa científica por seu critério de qualidade, independente da orientação política de seu autor, ajudando a fixar no Brasil talentos imprescindíveis. Surgiram, nesse período, grupos de pesquisa que seriam responsáveis pelo desenvolvimento de materiais supercondutores, técnicas de replicação de DNA e radares meteorológicos, apenas para citar três exemplos da ciência e tecnologia que insistiu em permanecer e frutificar no país.

Graças à permanência do físico Rogério Cerqueira Leite no Brasil, por exemplo, foi possível o surgimento de um forte grupo de física experimental na Universidade Estadual da Campinas (Unicamp) estudando a fundo o campo da física do estado sólido. Baseada no estudo dos estados da matéria em que os átomos constituintes estão bastante próximos e em constante interação, a física do estado sólido gerou importantes inovações tecnológicas, como os materiais supercondutores e as fibras ópticas. Um resultado direto desse trabalho foi o desenvolvimento da tecnologia de produção de fibras ópticas, repassada para a Telebrás. “É resultado desse esforço coerente o desenvolvimento de tecnologias eletro-ópticas, que teve como principal conseqüência a criação da Asga pelo professor Ripper (José Ellis Ripper Filho)”, afirma Cerqueira Leite.

O estudo, pioneiro na época, também levou o centro de pós-graduação em física da Unicamp a alcançar prestígio nacional. O pesquisador conta que seu interesse inicial era formar um grupo de física do estado sólido na Universidade de São Paulo (USP). Em 1969, quando Cerqueira Leite ainda estava nos Estados Unidos, onde viveu por oito anos, ele recebeu e hospedou o físico Mário Schenberg, que, já como deputado constituinte em 1946 pelo antigo Partido Comunista Brasileiro, tivera participação decisiva na criação de uma fundação de pesquisas, que resultou na FAPESP. Foi quando Schenberg o informou de que estava para ser cassado. Leite ajudou o amigo a estender o visto de permanência por mais dois ou três meses. Durante esse curto período de reclusão, Leite e Schenberg discutiram um plano para ampliar o campo da física do estado sólido na USP, o que foi feito com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da FAPESP. Mas o pesquisador não permaneceu na USP. Sua contratação como professor titular não foi confirmada pela reitoria, e um dos membros do grupo, Nelson de Jesus Parada, foi desligado da universidade. “Resolvi, então, ir para a Unicamp”, lembra Leite.

Nascia, assim, o grupo de física da Unicamp. Um grupo de física experimental no Brasil? Ninguém acreditava que seria possível, pela eterna carência de recursos humanos, equipamentos e verbas. Para viabilizar o ousado projeto, os pesquisadores resolveram concentrar esforços em um único capítulo da física da matéria concentrada, os semicondutores. E, para combater o isolamento, desenvolveram um intenso programa de intercâmbio, com apoio da FAPESP. “Obrigávamos nossos recém-doutorados a um estágio de pós-doutorado no exterior por dois anos pelo menos”, diz Leite.

... e o físico Schenberg:incentivadores de grupos de pesquisa na USP e Unicamp

JUVENAL PEREIRA/AE… e o físico Schenberg: incentivadores de grupos de pesquisa na USP e UnicampJUVENAL PEREIRA/AE

O desenvolvimento de outro setor estratégico, a bioquímica, também teve origem nessa década. Em 1969, o Conselho Superior da FAPESP decidiu que já era hora de cuidar de projetos de vulto e não apenas de iniciativas individuais de curto prazo. Dentre os chamados Projetos Especiais, o BIOQ-FAPESP, como ficou conhecido, foi o que recebeu maior verba, com investimentos, entre 1970 e 1978, de US$ 2,6 milhões.

“A idéia partiu de Francisco Lara, que procurou o diretor científico da época, Oscar Sala, para incentivar o setor de bioquímica. Tínhamos a sensação de que estávamos ficando para trás”, conta Rogério Meneghini, da USP, um dos caçulas do BIOQ-FAPESP. Aos 29 anos, já com doutorado, Meneghini desenvolveu um projeto de estudo de replicação de DNA em células de cromossomo politênico, um tipo comum em células das glândulas salivares de alguns insetos, como drosófila (moscada-fruta).Hoje, é diretor do Centro de Biologia Molecular do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS) e coordenador do programa Rede de Biologia Molecular Estrutural. Para Meneghini, um dos grandes méritos do projeto foi ter aberto portas para que jovens pesquisadores se tornassem liderança ainda no início de suas carreiras, montando seus próprios laboratórios e projetos de pesquisa. Bastava ter um bom projeto, que seria avaliado por seu próprio mérito. O sistema desburocratizado permitia que jovens doutores recebessem financiamento direto, sem se reportar ao professor catedrático, o que estimulava a independência e criatividade.

Tal como Meneghini, todos os participantes tiveram êxito em suas carreiras, vários deles enveredando pela biologia molecular. “Naquela época, ainda não se associava muito a bioquímica à biologia molecular, mas boa parte dos pesquisadores já estava interessada nesse novo campo, mesmo que ainda não fizesse idéia do que surgiria depois. Nosso maior objetivo, naquele momento, era formar uma base sólida de pesquisa. A preocupação tecnológica veio mais recentemente, com o avanço da biotecnologia, que terá crescimento exponencial nos próximos anos”, diz ele.

Por sua própria natureza, outros projetos desse período já nasceram com aplicação tecnológica e vínculos com a iniciativa privada. Foi o caso dos radares meteorológicos da Unesp de Bauru, projeto que nasceu em 1974 com o título Radar de objetivos múltiplos para pesquisas meteorológicas no estado de São Paulo, coordenado por Roberto Calheiros. Outros dois radares se seguiram: um em Presidente Prudente, operado também pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), e um terceiro em Ponte Nova/Salesópolis, operado pelo Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE).

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