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Ecologia

Um tesouro à beira do Velho Chico

Descobertas recentes firmam as dunas do rio São Francisco como um espaço único para o estudo da formação de novas espécies no Brasil

01Ali, as paisagens se juntam. Estamos no alto da Serra do Assuruá, a 680 metros de altitude, no povoado de Santo Inácio, norte da Bahia. De um cenário pedregoso, rico em cactos e bromélias, avista-se o vale do São Francisco, que começa a correr para leste, rumo ao mar. Vemos primeiro a lagoa Itaparica – um desvio do rio que se fechou – ao lado de outras menores. Mais à frente, nas duas margens, formando morros de até 150 m, alargam-se as dunas do São Francisco.

Reduto ecológico surpreendente, essa é uma das áreas do Brasil com maior endemismo – ocorrência de espécies exclusivas, que não vivem em nenhum outro lugar e se adaptaram ao solo arenoso e à escassez de água. De lagartos, por exemplo, há uma diversidade que supera a dos desertos norte-americanos e africanos. Das 44 espécies de lagartos da Caatinga, 40 ocorrem ali e 20 são endêmicas das dunas – área de pouco mais de 5 mil quilômetros quadrados que é apenas 0,6% da Caatinga e se estende por 120 km ao longo do rio, entre as cidades de Barra e Sobradinho.

Uma surpresa: nas dunas de cada lado do rio naqueletrecho, de 200 a 300 metros de largura, há animais muito parecidos com os do outro lado, mas de espécies diversas. São as espécies-irmãs, com pequenas diferenças de aparência ou constituição genética, resultantes de uma história evolutiva própria. Por isso, essas dunas são um espaço único para estudo da formação de espécies – comparável ao arquipélago de Galápagos, no Pacífico, em cuja fauna Charles Darwin (1809-1882) se baseou para elaborar a teoria da Evolução.

Os bichos das dunas são tão típicos que vivem isolados: as adaptações para a vida na areia são tão elaboradas que os impedem de entrar na Caatinga circundante. E espécies típicas da Caatinga, como o preá (Cavia aperea), nunca foram vistos nessas dunas.

“Era tudo novo”
Ali, em meio à vegetação esparsa e à areia fina, cuja temperatura ao meio-dia pode chegar a 60 graus Celsius, as descobertas não param. Miguel Trefaut Rodrigues, do Instituto de Biociências (IB) e diretor do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP), percorreu os arredores do povoado de Santo Inácio (200 habitantes) pela primeira vez em 1980, com uma expedição de botânicos. “Era tudo novo”, diz. Voltou com uma espécie de lagarto de cerca de 30 centímetros exclusiva dali, o Tropidurus amathites.

Quatro anos depois, Rodrigues desceu a serra que delimita a Chapada Diamantina e achou – nas areias da margem oposta – exemplares de um Tropidurus parecido e ainda não descrito, que chamou de Tropidurus divaricatus. Depois, não parou de achar novidades: até agora, são mais de 20 espécies e quatro gêneros.

Da viagem mais recente, em junho, trouxe dois bichos inéditos: um lagarto (Ameiva sp) e uma cobra de duas cabeças (Amphisbaena sp) com 50 centímetros. Um mês antes, sua ex-aluna Flora Acunã Juncá, professora da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), Bahia, coletara nas dunas da margem esquerda uma cobra subterrânea de 40 a 50 centímetros cuja espécie-irmã, da margem direita, Rodrigues descrevera como Typhlops yonenagae. A nova Typhlops completava o quinto par de espécies vicariantes – próximas filogeneticamente, mas separadas geograficamente. “Estou certo de que há mais espécies endêmicas e outros pares de vicariantes”, afirma Rodrigues, que coordena o projeto Estudos sobre a Ecologia e Diferenciação da Fauna de Répteis das Dunas do Médio Rio São Francisco (Lepidosauromorpha, Squamata), iniciado em 1997 e financiado pela FAPESP.

Realmente, o labirinto de ilhas desse trecho do rio é pouco explorado. Foi na ilha do Gado Bravo, a maior do São Francisco, na altura de Xique-Xique, que Rodrigues descobriu em junho um novo lagarto do gênero Ameiva. A espécie mais próxima, o calango Ameiva ameiva, é um dos colonizadores mais agressivos de paisagens abertas ou modificadas pelo homem. Por espalhar-se rapidamente, suas populações não mostram diferenças apreciáveis – exceto nas dunas. O fato de uma espécie nova de Ameiva, de colorido muito diferenciado, viver na ilha do Gado Bravo indica um isolamento efetivo, já que nas margens adjacentes se vê o Ameiva ameiva com o padrão de cor que o caracteriza em todo o Brasil.

Outro caso de adaptação é o do rabo-de-facho (Proechimys yonenagae), rato de 20 centímetros que tem um tufo de pêlos na ponta da cauda e orelhas grandes, mora em tocas profundas e anda aos saltos, apoiado sobretudo nas patas traseiras. Só há similares nos desertos dos Estados Unidos e da África. Esse rato foi descoberto por Pedro Luís Rocha, ex-aluno de Rodrigues que leciona na Universidade Federal da Bahia (UFBa), em Salvador. Só ali vive também o bacurau Nyctriprogne vielliardi, ave de hábitos noturnos com cerca de 20 centímetros de altura.

Refúgios
Um levantamento recente indicou áreas da Caatinga com endemismo acentuado ou que deveriam ser mais estudadas. É o caso das serras Negra e dos Cavalos (PE), de Baturité (CE) e da Chapada do Araripe, na fronteira entre Pernambuco, Piauí e Ceará. São áreas tomadas por matas densas – os refúgios – e riquíssimas em vida: a fauna e a flora dessas “ilhas” acumulam diferenças em relação às mesmas espécies da Mata Atlântica e da Amazônia, às quais se ligaram um dia, antes de a Caatinga se formar.Esses refúgios biológicos foram identificados nos anos 70 pelo zoólogo Paulo Emílio Vanzolini e pelo geógrafo Aziz Ab’Saber, ambos da USP. Ab’Saber foi um dos primeiros cientistas a classificar as dunas como paleodeserto, no que teve o respaldo do geomorfologista Jean Tricart, da Universidade Louis Pasteur, de Estrasburgo (França).

As dunas também têm uma flora especial. Há touceiras de quipá (Opuntia inamoena) e macambira (Bromelia laciniosa), entremeadas por arbustos geralmente isolados. Nos lugares baixos e úmidos, são comuns a carnaúba (Copernicia cerifera) e o arbusto Poligonacea ruprechtia, que tem a proteção de formigas no caule: “Quando se corta um galho, as formigas atacam”, conta Luciano Paganucci, professor da Uefs que vai às dunas todo ano. Ele identificou ali a leguminosa endêmica Pterocarpus monophyllus, árvore de cerca de 4 metros com madeira muito dura, frutos adaptados à dispersão pela água e, algo raro, folhas não divididas. As plantas são geralmente baixas e tem folhas decíduas (caem na estação seca) muito pequenas. Mas o maior sinal de adaptação ao ambiente não é visível. São as raízes: profundas e bem espalhadas, aproveitam ao máximo os nutrientes disponíveis no solo seco.

História das dunas
O passado das dunas explica sua biodiversidade. A geóloga Alcina Magnólia Franca Barreto, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), estudou as transformações da área em seu doutorado, feito no Instituto de Geociências da USP com financiamento da FAPESP (projeto Morfologias e prováveis idades do sistema de dunas fósseis do Médio Rio São Franscisco, BA). “Nos últimos 11 mil anos”, diz ela, “as dunas já existiam, embora um pouco diferentes”. Ao estudar sedimentos com restos vegetais (turfeiras) colhidos às margens do Icatu, afluente do São Francisco, Alcina deduziu as mudanças. Ali já houve, por exemplo, florestas.

Os exames de datação de material orgânico e areias indicam que houve fases com temperatura e umidade diversas. Antes de 11 mil anos, o clima era árido ou semi-árido, mas com temperaturas mais baixas. Depois, foi sucessivamente muito úmido e frio, úmido e quente, seco e quente, úmido e quente e, afinal, de novo seco e quente – o atual semi-árido. “Há cerca de 4.000 anos a vegetação e as condições de clima e temperatura são bastante semelhantes às atuais”, diz.

A origem do campo de dunas é incerta, pois as areias são profundas (até 150 metros) e Alcina só coletou amostras das últimascamadas. Mas há duas hipóteses. A primeira supõe um lago formado pelas águas do atual São Franscisco, antes que ganhassem volume a ponto de abrir caminho até o mar. A segunda: o rio pode ter tido outro sistema de drenagem – seguindo para oeste em vez de leste. O certo é que com o tempo ele mudou de curso e volume de água. Nas fases mais secas, pode ter havido mais espaço para os animais conviverem e partilharem uma história evolutiva. Nos períodos mais úmidos, as passagens se fechariam e o rio serviria de barreira natural entre áreas antes unidas.

DNA em estudo
Até meados dos anos 70, as dunas ficaram intactas. Em 1975, houve alterações profundas, devido à barragem de Sobradinho, que inundou áreas extensas. Mas sobreviveram nas duas margens as espécies vicariantes, como o lagarto Tropidurus amathites, só na margem direita, e sua espécie-irmã Tropidurus divaricatus, só na esquerda. O isolamento levou a distinções. “As taxas de evolução não são as mesmas para espécies que se separaram”, explica Rodrigues. Supõe-se que o ritmo de evolução não tenha sido linear. É preciso saber se houve saltos ou mudanças rápidas, como as sugeridas pelo estudo comparativo das espécies de Calyptommatus e Nothobachia, que divergiram há dois ou três milhões de anos, no máximo.

E por que, em alguns casos, é a mesma espécie que ocorre nos dois lados do rio? É possível que, nesses casos, a espécie tenha capacidade de dispersão tão grande aponto de ter rompido as barreiras do isolamento. É também provável que ainda não tenha tido tempo de se diferenciar, ou tenha ficado igual dos dois lados por alguma razão histórica ignorada.

A investigação das diferenças genéticas entre espécies vicariantes da área e espécies aparentadas é feita por Maria Lúcia Benozzati, do Instituto de Biociências da USP, com base no estudo do DNA (ácido desoxirribonucléico) das mitocôndrias celulares. O seqüenciamento que ela fez de fragmentos do DNA mitocondrial tem confirmado análises morfológicas de Rodrigues: à medida que se passa dos gêneros mais primitivos de um grupo de lagartos para as espécies típicas das dunas, nota-se a redução dos membros e o alongamento do corpo. Nothobachia e Calyptommatus, os gêneros mais recentes do grupo e mais adaptados à vida nas dunas, por exemplo, têm membros anteriores tão discretos ou ausentes que parecem uma cobra, a ponto de rastejarem sinuosamente cobertos por fina camada de areia.

Até julho de 2001, quando deverá finalizar o projeto, Rodrigues espera ter conclusões mais claras sobre o que determina a diferenciação dessas espécies. Além disso, acha necessário dar atenção urgente a algo que está por ser feito: a catalogação e informatização das coleções zoológicas armazenadas nos centros de pesquisa e museus do Brasil. Para ele, bastaria isso para se dar um salto no conhecimento da biodiversidade brasileira, indicar áreas que merecem estudos mais intensivos e descobrir outros tesouros de espécies raras, como as dunas do São Francisco.

02A surpreendente diversidade da Caatinga

A biodiversidade da Caatinga – único ecossistema exclusivamente brasileiro, que cobre quase todo o Nordeste mais o norte de Minas Gerais – está surpreendendo. Um estudo que reuniu cerca de 150 pesquisadores mostrou que no ecossistema de ocupação mais antiga do Brasil há 327 espécies animais endêmicas (exclusivas dali), quase o dobro das 183 conhecidas. São típicas da área, por exemplo, 13 espécies de mamíferos, 23 de lagartos, 20 de peixes e 15 de aves. De plantas, há 323 espécies endêmicas, mas só estavam listadas ao redor de 190.

Reunidos em Petrolina (PE) noWorkshop Biodiversidade da Caatinga, os cientistas estudaram outros fatores naturais (solo, clima, relevo e hidrologia) e as condições de vida (educação, saúde, renda e índice de desenvolvimento humano) das comunidades locais. Mais surpresas: cerca de metade da paisagem foi degradada pela ação do homem e de 15% a 20% está em alto grau de degradação (com risco de desertificação).

“A região perdeu suas riquezas naturais sem gerar riqueza para a população local, ainda uma das mais pobres do país”, diz o biólogo José Maria Cardoso da Silva, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), que coordenou o workshop. “A falta d’água hoje talvez seja conseqüência do mau uso dos recursos biológicos da Caatinga no passado.” Dois mapas mostram o que pode ser feito: um delimita áreas importantes para conservação, pela alta diversidade e endemismo de espécies, e o outro, as áreas pouco conhecidas, para estudos prioritários. Parte da equipe tratou de políticas que viabilizem a recuperação ou a preservação: cada prefeitura, por exemplo, poderia adotar como símbolo uma espécie local, cuidando dela e de seu hábitat.

O estudo, assinado pela UFPE, a Conservation International do Brasil, a Fundação Biodiversitas e a Embrapa Semi-Árido, inclui um tema polêmico: transposição das águas do rio São Francisco para irrigação. Sugere que, antes de tudo, se priorize a captação de água de chuva ou subterrânea. Só depois é que se examinaria a transposição, em debates com especialistas e estudos de impacto ambiental.

A bióloga Ana Maria Giulietti, da Universidade Estadual de Feira de Santana (BA), cuidou do inventário vegetal. De imediato, notou a riqueza da Caatinga em paisagens de exceção, ou encraves, que vão de mata fechada aos areais, com flora e fauna próprias. Descobriu uma leguminosa que em sua homenagem foi chamada Anamaria heterophila: é uma erva que chega a 30 centímetros e dura no máximo dois meses, pois depende do nível da água das lagoas que se formam na época de chuvas. Os 20 gêneros vegetais endêmicos listados são o dobro do que se conhecia. “Quando há um gênero endêmico, a necessidade de conservação é muito maior’, diz ela.

Formigas alertam
Carlos Brandão, da USP, coordenou o estudo dos invertebrados da Caatinga, ainda pouco conhecidos, como desdobramento de seu projeto Insetos Sociais nas Formações do Nordeste Brasileiro: Levantamentos Faunísticos e Ecologia Comportamental, concluído em 1991 com financiamento da FAPESP. Além de registrar áreas com espécies endêmicas, ele confirmou a possibilidade do uso de formigas como indicadores ecológicos: podem indicar o estado de conservação dos espaços naturais mais precisamente que outros animais. Uma área de caatinga mais conservada pode abrigar ao redor de 200 espécies de formigas, enquanto nas mais degradadas, há de 30 a 40.

O estudo da Caatinga encerra o ciclo de seminários sobre prioridades para conservação dos ecossistemas brasileiros. O primeiro, do Cerrado e do Pantanal, foi em março de 1998. Seguiram-se em 1999 os encontros sobre Mata Atlântica e Campos Sulinos em agosto, Amazônia em setembro e Zona Costeira e Marinha em outubro.

O relatório de Cerrado e Pantanal, em novembro de 1999, indicou 70 áreas prioritárias para conservação e 21 para pesquisa. Constatou-se ainda que 67% do ambiente do Centro-Oeste está alterado. “Não imaginávamos esse resultado”, diz o biólogo mineiro Luiz Paulo de Souza Pinto, coordenador de projetos da Conservation. O levantamento indicou que ali vivem 6.387 espécies de árvores (40% endêmicas), 837 de aves (3% exclusivas) e 809 de abelhas (51% de endemismo). Com base nisso, o Cerrado foi incluído entre os 25 hotspots (áreas críticas) do mundo. “O mesmo pode acontecer com a Caatinga”, diz.

Há bons argumentos. Vive na Caatinga a ave com maior risco de extinção no Brasil, a ararinha azul (Anodorhynchus spix), da qual só se encontrou um único macho. Também é dali a segunda mais ameaçada do país, a arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari): nos arredores de Canudos (BA), há menos de 150 exemplares, um décimo da população ideal nesses casos de aves que demoram para reproduzir.

PERFIS:
Miguel Trefaut Urbano Rodrigues
, 47 anos, formou-se em Biologia pela Université de Paris VII, França, em 1978. Na USP, doutorou-se em 1984 no Instituto de Biociências, onde leciona desde 1986, e é diretor do Museu de Zoologia.
ProjetoEstudos sobre a Ecologia e Diferenciação da Fauna de Répteis das Dunas do Médio Rio São Francisco (Lepidosauromorpha, Squamata)
Investimento : R$ 76.700 e US$ 115.307,01

Alcina Magnólica Franca Barreto, 42 anos, formou-se em Geologia pela UFPE e fez mestrado e doutorado no Instituto de Geociências da USP. É professora do Departamento de Geologia da UFPE desde 1997.
ProjetoMorfologias e Prováveis Idades do Sistema de Dunas Fósseis do Médio Rio São Franscisco, BA
Investimento : R$ 21.229,79

Carlos Roberto Ferreira Brandão, 47 anos, fez graduação, mestrado, e doutorado no Departamento de Zoologia do Instituto de Biociências da USP. Trabalha desde 1991 no Museu de Zoologia da USP, onde é professor titular e diretor técnico da Divisão Científica desde 1997
Projeto: Insetos Sociais nas Formações do Nordeste brasileiro: Levantamentos Faunísticos e Ecologia Comportamental
Investimento : R$ 105.344,55

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