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Resenha

O trágico das relações raciais no Brasil

O intelectual feiticeiro: Edison Carneiro e o campo de estudos das relações raciais no Brasil | Gustavo Rossi | Editora da Unicamp | 280 páginas | R$ 48,00

092_Resenha_FeiticeiroEduardo CesarAngustiante, tocante e intrigante. Adjetivos extraídos da própria obra e manejados habilmente por Gustavo Rossi ao longo da análise da trajetória de Edison Carneiro (1912-1972) – que ilumina o preconceito e o trágico das relações raciais no Brasil – marcam a leitura desse livro imprescindível.

O retrato que vai se desenhando desde a introdução de O intelectual feiticeiro: Edison Carneiro e o campo de estudos das relações raciais no Brasil opera na gramática da perda e do dano, que se constrói na ausência da própria voz do personagem: o escritor, etnólogo e advogado Edison Carneiro não deixou material autobiográfico, apenas algumas poesias. Destas, o autor extrai o jogo dramático da classificação por cor/raça na Salvador da primeira metade do século XX. A morte precoce e o incêndio acidental que consumiu os escritos do intelectual, logo depois de seu falecimento, talvez sejam os responsáveis por mais esse apagamento.

O emaranhado do itinerário social e intelectual de Carneiro remete a outras trajetórias marcadas pela dor e pela exclusão, como a do escritor Lima Barreto, mais distante em termos históricos, e de outras mulheres negras e homens negros, com trajetórias igualmente trágicas, que tiveram destaque nas décadas de 1970 e 1980: Lélia González e Beatriz Nascimento, Eduardo de Oliveira e Oliveira são intelectuais e militantes que enfrentaram a morte precoce, o racismo, o sexismo e o trágico.

Essa combinação de marcadores da diferença não é autoevidente nem na vida de Carneiro nem na de outros intelectuais. A análise de Rossi permite que acompanhemos tanto o campo de manobras do escritor quanto seus limites e entraves, especialmente no que tange à questão racial que conspirou para a marginalidade, a subalternização e a falta de reconhecimento daquele que seu amigo Aydano do Couto Ferraz definiu como “uma vocação perdida” e um “talento desvirtuado”.

O trágico não se confunde com vitimismo. O literato frustrado na juventude é desenhado por Rossi em paralelo ao ambiente familiar sempre tumultuado, no qual raça e cor (negritude e mestiçagem, produzidas entre homens mais escuros e mulheres mais claras) foram manejadas com o auxílio de toda sorte de distinções. A participação no movimento Acadêmica dos Rebeldes, com suas experimentações políticas e estéticas, foi o momento em que sua adesão aos ideais de esquerda começa a brotar. Carneiro provocou tensões no campo dos estudos afro-brasileiros ao interpretar a obra de Nina Rodrigues, as religiões e culturas afro, tomando como base o materialismo histórico. Religiões que ele defendeu lutando pela liberdade de manifestações religiosas e argumentando em favor dos direitos de seus praticantes se organizarem civil, política e autonomamente.

Conspira de modo tenso nesse cenário tanto seu relacionamento amoroso e intelectual com a antropóloga norte-americana de origem judaica Ruth Landes (1903-1949), cujas teses elaboradas com seu auxílio contrariavam o mainstream da época, quanto as ambíguas relações com Arthur Ramos e Gilberto Freyre, que disputavam a hegemonia do campo intelectual daquele momento. A militância comunista diminuiu as chances de ingresso no magistério superior e ainda provocou prisões, difamações e perseguições.

O percurso do “intelectual desabrigado”, não assistido pelas instituições acadêmicas e associado a modelos de análise gastos, permite-nos entrever a força do racismo e os limites de seu espaço de manobra. Nesse sentido, o trabalho de Rossi vem contribuir de modo eloquente para o campo da antropologia, das relações raciais e daqueles que se dedicam às “aldeias arquivos” – na feliz expressão de Sérgio Carrara –, especialmente em um país que não diferenciou seus cidadãos constitucionalmente com base na cor/raça, mas onde a raça atuou e atua de forma contundente como um mecanismo de subalternização e exclusão. O momento atual ganha perspectiva quando comparado ao espaço intelectual marcado por extremadas demandas políticas e simbólicas, envolvendo status social, oligarquia de gênero e raça, ruínas financeiras e pobreza. A antropologia e a sociologia têm se beneficiado enormemente de análises desse tipo pela possibilidade de dar inteligibilidade aos mecanismos produtores da desigualdade racial e social no Brasil.

Laura Moutinho é professora do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-graduação em Antropologia da USP. É autora de Razão, cor e desejo: Uma análise dos relacionamentos afetivo-sexuais inter-raciais no Brasil e África do Sul (Editora Unesp, 2004), publicado graças ao prêmio Edusc\Anpocs de Melhor Tese de Doutorado de 2003.

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