Um grupo internacional de pesquisadores, entre eles brasileiros de diversas instituições, identificou novas evidências de que uma infecção prévia pelo vírus da dengue pode gerar imunidade contra o vírus causador da zika. A conclusão foi apresentada em um estudo publicado nesta quinta-feira (7/2) na revista Science. De acordo com o trabalho, o organismo de quem já teve dengue produziria anticorpos capazes de impedir que o vírus zika penetre nas células e desencadeie uma infecção.
Para chegar a essas conclusões, os pesquisadores usaram dados de um amplo estudo envolvendo 1.453 moradores da favela de Pau de Lima, em Salvador, Bahia. Sabe-se que aquela comunidade convive com o vírus da dengue há pelo menos 30 anos e foi uma das principais áreas afetadas pelo zika na epidemia de 2015.
Amostras de sangue coletadas antes, durante e depois de a epidemia se instalar na região foram submetidas a um ensaio para medir a resposta de um anticorpo produzido pelo sistema imune, a imunoglobulina G3 (IgG3), contra a NS1, proteína do zika encontrada na corrente sanguínea logo nos primeiros dias após a infecção.
Os pesquisadores encontraram sinais de IgG3 em 73% das amostras colhidas em outubro de 2015, no auge da epidemia de zika na região. Isso sugere que as pessoas em Pau de Lima tiveram bastante contato com o vírus transmissor da doença à época. Algumas, no entanto, não foram infectadas. Os pesquisadores, então, analisaram as amostras de sangue colhidas antes do início do surto de zika, em março de 2015. Ao analisá-las, identificaram que alguns indivíduos tinham níveis bem elevados de anticorpos contra o vírus da dengue.
Os resultados levaram os pesquisadores a inferirem que múltiplas exposições ao vírus da dengue teriam protegido as pessoas contra o zika. “Nossos achados sugerem que cada duplicação dos níveis de anticorpos contra dengue corresponde a uma redução de 9% no risco de infecção pelo zika”, explica o médico brasileiro Ernesto Azevedo Marques, do Departamento de Microbiologia e Doenças Infecciosas da Universidade de Pittsburgh, nos Estados Unidos, e um dos autores do estudo na Science. O trabalho também envolveu a participação de pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e de São José do Rio Preto (Famerp), em São Paulo, além do Departamento de Medicina da Universidade da Califórnia em São Francisco e da Flórida, ambas nos Estados Unidos.
Marques esclarece que os dois vírus integram a família dos flavivírus e são geneticamente muito semelhantes. Por causa dessa semelhança, pensava-se que a infecção prévia por dengue pudesse gerar quadros mais graves de febre zika, parecidos com os que ocorrem na dengue hemorrágica, quando a pessoa que já havia tido a doença é infectada por outro subtipo do vírus.
“Nesses casos, os anticorpos que o sistema imune produz da primeira vez contra um dos subtipos do vírus da dengue — são quatro no total — não neutralizam os outros de modo eficiente”, afirma o brasileiro, que também é pesquisador associado do Instituto Aggeu Magalhães da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Recife, Pernambuco. “No caso da dengue, a infecção por um subtipo gera uma reação cruzada contra as outras variedades do vírus, o que pode facilitar a sua entrada nas células do sistema de defesa, nas quais ele se reproduz, aumentando o número de suas cópias e a gravidade da infecção.”
Do mesmo modo, imaginava-se que a imunização parcial que favorece o agravamento da dengue também pudesse facilitar a infecção por zika. O virologista Maurício Lacerda Nogueira, professor da Famerp e um dos autores do trabalho, lembra que no início da epidemia vários estudos in vitro demonstraram que os anticorpos antidengue facilitavam a infecção por zika por meio de um mecanismo chamado facilitação mediada por anticorpos (ADE, na sigla em inglês).
“Esse mecanismo seria responsável por quadros mais graves de febre zika”, destaca Nogueira, que coordenou um estudo publicado em 2017 na Clinical Infectious Diseases que indicou que, em seres humanos, uma infecção prévia por dengue não leva necessariamente a quadros mais graves de zika (ver Pesquisa FAPESP nº 257). Ambos são transmitidos pelo mosquito Aedes aegypti.
Segundo Nogueira, agora, no estudo publicado na Science, não apenas foi demonstrado que o fenômeno ADE não ocorre, como que as pessoas que haviam se infectado pela dengue e desenvolveram altos níveis de anticorpos sequer se contaminaram pelo zika durante o surto de 2015.
No estudo, os pesquisadores também identificaram contrastes epidemiológicos dentro da própria comunidade. Em algumas áreas de Pau de Lima, todos os moradores se contaminaram com o vírus zika. Em outras, nenhum caso foi registrado.
“Ainda não sabemos como foi a dinâmica da epidemia nessa região e no nordeste como um todo”, comenta Marques. Também não se sabe o efeito de uma infecção prévia pelo vírus da dengue nos casos de infecção por zika em gestantes. “Existem estudos em andamento investigando essa questão”, diz.
Artigo científico
RODRIGUEZ-BARRAQUER, Isabel et al. Impact of preexisting dengue immunity on Zika virus emergence in a dengue endemic region. Science. v. 363, n. 6427, p. 607-10. fev. 2019.
Projetos
1. Estudo epidemiológico da dengue (sorotipos 1 a 4) em coorte prospectiva de São José do Rio Preto, São Paulo, Brasil, durante 2014 a 2018 (nº 2013/21719-3); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Temático; Pesquisador responsável Maurício Lacerda Nogueira (FAMERP); Investimento R$ 3.140.949,88.
2. Estudo clínico-epidemiológico em coorte prospectiva de gestantes infectadas pelo vírus Zika em São José do Rio Preto (nº 2016/15021-1); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Pesquisa em Políticas Públicas para o SUS; Pesquisador responsável Maurício Lacerda Nogueira (FAMERP); Investimento R$ 190.821,53.