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Políticas públicas

Tratamento reforçado

Estudos identificam novas evidências de que programas de transferência de renda auxiliam no combate à tuberculose no Brasil

População que vive em condições precárias de moradia e saneamento, como a do Jardim Piratininga, em Guarulhos, é a mais afetada pela doença

Léo Ramos Chaves

A tuberculose ainda é um dos principais problemas de saúde pública no mundo. Apenas em 2017, 10 milhões de novos casos da doença foram registrados. Mais de 1,3 milhão resultou em mortes, segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS). No Brasil, cerca de 70 mil novos casos da doença são registrados todos os anos, de acordo com o Ministério da Saúde. A população de baixa renda, que vive em condições precárias de moradia e saneamento, é a mais afetada. Apesar do cenário desanimador, o Brasil vem apresentando resultados que indicam avanços em relação ao controle e à redução da doença. Dados do Ministério da Saúde mostram uma diminuição da ordem de 19,3% na incidência de casos de tuberculose entre os anos de 2005 e 2014. Parte da explicação para essa queda pode estar na criação e implementação de programas de transferência de renda no início da última década, entre eles o Bolsa Família. A conclusão é de um grupo internacional coordenado pela epidemiologista Ethel Leonor Maciel, do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).

Em artigo publicado em fevereiro na revista PLOS ONE, eles constataram que, além de atuar no combate às desigualdades socioeconômicas, o programa Bolsa Família também estaria contribuindo para o aumento das taxas de cura dos casos de tuberculose, auxiliando no combate à doença em várias regiões do Brasil. No estudo, os pesquisadores analisaram 25.084 casos de pessoas diagnosticadas com tuberculose, das quais 1.714 (6,8%) recebiam o benefício social. A análise baseou-se em dados oficiais do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) do Ministério da Saúde registrados a partir de 2015, um ano após a pasta ter incluído em seu sistema de notificação um campo que lhes permite saber se as pessoas diagnosticadas com a doença recebem ou não o benefício social.

Maciel e sua equipe verificaram que 78% (1.331) das pessoas diagnosticadas com tuberculose atendidas pelo programa seguiram o tratamento até o fim, curando-se. No grupo dos doentes que não recebiam o benefício esse percentual foi de 68% (15.894). “Se considerarmos o efeito direto do Bolsa Família, independentemente de outros determinantes envolvidos no processo de tratamento, como nível socioeconômico e doenças associadas, como diabetes e HIV, por exemplo, houve um aumento da ordem de 8% na taxa de cura entre os indivíduos que recebiam o benefício social em comparação àqueles que não o recebiam”, esclarece a epidemiologista Barbara Reis-Santos, pesquisadora do Laboratório de Epidemiologia da Ufes e uma das autoras do artigo na PLOS ONE. “Trata-se de um aumento expressivo em termos de tratamento”, comenta Maciel. “Um novo medicamento lançado no mercado que consiga atingir 5% de diferença em relação ao tratamento tradicional seria considerado revolucionário em termos epidemiológicos”, destaca a pesquisadora, que este ano foi eleita presidente da Rede Brasileira de Pesquisa e Combate à Tuberculose (Rede TB), criada em 2001 para aproximar pesquisadores de diversas áreas e intensificar os esforços e estratégias de combate à doença.

Os resultados do artigo reforçam os achados de outro trabalho, publicado pelas mesmas pesquisadoras em dezembro de 2018 na revista Lancet Global Health. Maciel e sua equipe, àquela época, entrevistaram e acompanharam 1.239 pessoas com tuberculose provenientes de sete cidades espalhadas por todas as regiões do país. Os pesquisadores monitoraram cada um dos pacientes antes, durante e depois do tratamento. Dos indivíduos analisados, 196 (16%) recebiam o Bolsa Família.

O Brasil está entre os 30 países com maior incidência de casos de tuberculose no mundo, segundo dados da OMS

Em busca de avaliação mais acurada, os pesquisadores desenvolveram um modelo capaz de comparar indivíduos dos dois grupos levando em conta características semelhantes, como idade, estado de saúde, gênero, índice de massa corporal, condições de moradia, acesso a saneamento, entre outros. “Ao parear indivíduos com as mesmas variáveis, sendo a única diferença entre eles o fato de que um recebia o Bolsa Família e o outro não, verificamos que a taxa de cura da tuberculose era 7,8% superior entre as pessoas que tinham o benefício”, destaca Reis-Santos. Apesar dessas evidências, Maciel esclarece que ainda não é possível estabelecer uma correlação direta de causa e efeito. “Como o sistema de notificação do Ministério da Saúde sobre as pessoas diagnosticadas com tuberculose que recebem o benefício social só começou em 2015, ainda não é possível avaliar o impacto do Bolsa Família na queda da incidência de casos da doença no período anterior.”

Léo Ramos ChavesFavelas brasileiras, como as do Complexo do Alemão, no Rio, apresentam os números mais elevados de contaminaçãoLéo Ramos Chaves

Tuberculose e pobreza
A tuberculose é uma doença oportunista, transmitida pelo ar ou por meio de secreções nasais, tosses ou espirros de pessoas infectadas com a bactéria Mycobacterium tuberculosis, identificada pelo médico germânico Heinrich Robert Koch (1843-1910) em meados de 1882. O bacilo atinge sobretudo os pulmões. Em alguns casos também afeta os ossos e o sistema nervoso. Perda de apetite, tosse seca persistente por mais de três semanas, irritação e cansaço são alguns dos sintomas característicos da doença. Pela similaridade, com frequência se confunde com pneumonia ou gripe comum. Há muito o tratamento para a doença é oferecido gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS), à base de rifampicina e de outros três medicamentos, a isoniazida, a pirazinamida e o etambutol.

Ainda assim, o Brasil segue entre os 30 países com maior incidência de casos da doença no mundo, segundo dados do Global tuberculosis report 2018 da OMS. O desafio maior envolve a prevenção. “A bactéria se dissemina mais facilmente em áreas de grandes aglomerações de pessoas e de alta concentração de pobreza, onde os ambientes são fechados, sem entrada de luz solar ou circulação de ar”, esclarece o farmacêutico Kaio Vinicius Freitas de Andrade, pesquisador do Departamento de Saúde da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). “Não por acaso, as favelas brasileiras, como a Rocinha e as do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, são as que apresentam os números mais elevados de contaminação”, completa Andrade, que desde o doutorado estuda o impacto dos programas de proteção social na redução dos casos de tuberculose. “A associação entre pobreza e tuberculose é evidente na distribuição global da doença, de tal modo que os 30 países com maior incidência de tuberculose são também aqueles com os maiores índices de desigualdade social e menor renda per capita.”

De acordo com Andrade, os estudos desenvolvidos pela equipe de Ethel Maciel e Reis-Santos seguem a mesma linha de outros trabalhos, desenvolvidos por pesquisadores brasileiros e de outros países. Em um deles, publicado em meados de 2016 na revista BMC Infectious Diseases, um grupo da Faculdade de Epidemiologia e Saúde da População da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, no Reino Unido, identificou evidências de que programas de transferência de renda, ou, de modo mais amplo, de assistência social, contribuíram para maior adesão ao tratamento entre indivíduos com tuberculose no Peru, Brasil, Equador e Moldávia, na Europa oriental, em comparação aos que não recebiam o benefício. Em outro trabalho, publicado em julho de 2017 na revista International Journal of Tuberculosis and Lung Disease, pesquisadores brasileiros e britânicos observaram uma queda de 15,8% na incidência de casos de tuberculose entre os anos de 2004 e 2012 nos municípios com maior cobertura do Bolsa Família — ao todo, eles analisaram dados de 2.458 cidades do país.

O programa Bolsa Família foi lançado pelo governo federal em outubro de 2003, com o objetivo de melhorar a condição de vida de famílias que vivem em situação de pobreza e de extrema pobreza, isto é, com rendimento mensal entre R$ 89 e R$ 178 por pessoa. Segundo dados da Secretaria Especial do Desenvolvimento Social do Ministério da Cidadania, responsável pela coordenação do programa, hoje 13,9 milhões de famílias brasileiras recebem o benefício, que pode variar entre R$ 100 e R$ 240 por mês.

Alimentação e acesso à saúde
Os pesquisadores ainda não sabem como as famílias usam esse dinheiro e de que modo exatamente isso estaria relacionado ao aumento das taxas de cura da tuberculose, mas trabalham com algumas hipóteses. Uma delas é que o benefício contribuiria para a melhora do estado nutricional dos integrantes dessas famílias. Isso ajudaria a aumentar a resistência dos doentes aos efeitos colaterais dos medicamentos usados no tratamento, que costuma durar no mínimo seis meses, podendo, em alguns casos, estender-se até 18 meses. “As drogas antituberculose agem de modo eficaz contra o bacilo responsável pela doença, mas podem desencadear efeitos colaterais como vômitos e diarreia, fatores relevantes para o abandono do tratamento”, destaca Ethel Maciel. Não raro, ao observarem melhora em seu estado geral, muitos pacientes desistem do tratamento. Em outros casos, interrompem o uso dos remédios, incompatível com o estilo de vida desregrado e quase sempre associado ao consumo de bebidas alcoólicas, cigarros e drogas ilícitas. O abandono do tratamento contribui para que a bactéria causadora da doença se torne mais resistente aos medicamentos disponíveis. “O tratamento padrão representa um custo total de cerca de R$ 400 por pessoa para o SUS. Se a cepa desenvolve resistência aos medicamentos usuais, esse custo pode subir muito, por envolver antibióticos que não são produzidos no Brasil.”

Os pesquisadores também trabalham com a possibilidade de que o benefício facilite o acesso dos indivíduos infectados às unidades básicas de saúde. A biomédica Joilda Silva Nery, do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA), explica que o Bolsa Família é um programa de transferência condicionada de renda, de modo que, “para recebê-lo, as famílias precisam cumprir alguns compromissos, como manter as carteiras de vacinação atualizadas e assegurar o acompanhamento médico do desenvolvimento de crianças menores de 7 anos”. Segundo ela, ainda que o foco sejam as crianças, o benefício tende a aproximar toda a família do sistema de saúde, “favorecendo o diagnóstico precoce da tuberculose e ampliando as chances de cura dos infectados”.

É nesse sentido que os pesquisadores defendem a criação de um programa de proteção social específico para pessoas com tuberculose, constituído para diminuir a taxa de abandono do tratamento – hoje em torno de 10,8% para os casos novos no Brasil em 2018, acima do considerado epidemiologicamente razoável pela OMS – e aumentar as chances de cura. Eles também estão investigando o impacto de outros programas federais de mitigação da pobreza, como o Minha Casa, Minha Vida. A hipótese é que o programa habitacional melhoraria as condições de moradia de famílias de baixa renda, retirando-as de lugares propícios à contaminação por bactérias responsáveis pela tuberculose e outras doenças, como a hanseníase, também associada à pobreza.

Artigos científicos
REIS-SANTOS, B. et al. Tuberculosis in Brazil and cash transfer programs: A longitudinal database study of the effect of cash transfer on cure rates. PLOS ONE. v. 14, n. 2, e0212617. 22 fev. 2019.
OLIOSI, J. G. N. et al. Effect of the Bolsa Família Programme on the outcome of tuberculosis treatment: A prospective cohort study. The Lancet Global Health. v. 7, n. 2, p. E219-26. 1º dez. 2018.
BOCCIA, D. et al. Towards cash transfer interventions for tuberculosis prevention, care and control: Key operational challenges and research priorities. BCM Infectious Diseases. v. 16, 307. 21 jun. 2016.

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