Em maio deste ano o geneticista José Mariano Amabis, professor aposentado pelo Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), foi avisado de que havia na varanda vermes que matariam os porcos que os comessem. Não matam, assegurou o geneticista em seu sítio em São Bento do Sapucaí, na serra da Mantiqueira, estado de São Paulo. No chão, junto à churrasqueira, lá estava o emaranhado de larvas de cor creme, cada uma com 2 centímetros de comprimento, que se transformariam em moscas da espécie Rhynchosciara papaveroi.
Guardou em uma caixa, saiu procurando mais e encontrou. Além do achado em si, pertinente foi ter acontecido no ano que marca o centenário de Crodowaldo Pavan, um dos pioneiros da genética brasileira que fez sua maior descoberta em uma espécie aparentada: R. angelae, agora conhecida como R. americana. Quando morreu, há 10 anos, as contribuições do pesquisador – que, a partir do DNA de moscas, passam pela institucionalização da pesquisa em genética no país e chegam à divulgação científica – foram tratadas por Pesquisa FAPESP em suplemento especial.
O achado de Pavan – então professor assistente do catedrático André Dreyfus (1897-1952) na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP – foi ainda mais fortuito do que o de Amabis. Ao chutar um tronco caído de bananeira em Praia Grande, litoral paulista, ele achou “um bolo de uns vermes vermelhos bonitos”, como relatou em uma entrevista gravada em 2002 por estudantes de uma disciplina ministrada pelo geneticista João Morgante, hoje professor aposentado do IB-USP dedicado à Comissão Memória do departamento. Voltou ao laboratório e deixou em um canto a sacola com os animais. Quando lembrou de olhar ao microscópio, já eram 23 horas. “Dissequei o verme e vi uma glândula salivar. Vi as células, o núcleo. Esmaguei e vi o maior cromossomo que eu jamais tinha visto, um cromossomo politênico.” São pacotes de DNA cujo material genético é replicado até formar estruturas volumosas, que, tingidas, formam padrões característicos de listras, conhecidas como bandas.
Só depois, consultando o zoólogo Ernest Marcus (1893-1968), Pavan descobriu serem larvas de algum inseto – e não vermes, como tinha pensado. Em 1951 ele e colegas descreveram os grandes cromossomos das larvas de Rhynchosciara. Em 1955, Pavan e sua assistente Marta Breuer (1902-1977) chegaram a conclusões controversas a partir de regiões nesse cromossomo, conhecidas como pufes, com acúmulo de DNA. “Havia um dogma de que a quantidade de DNA não podia variar”, explica Amabis, que foi colega de Pavan. Vale lembrar que a estrutura do DNA foi descrita em 1953. No período anterior já havia a noção de que o material genético, contido nos cromossomos, teria relação com a hereditariedade. “Um grupo da Alemanha estava começando a estudar os cromossomos politênicos em glândulas salivares em mosquitos Chironomus e descreveu os pufes, mas ninguém sabia o que eram”, lembra Amabis. “Achavam que podia ter relação com o funcionamento dos genes.”
Olhando os cromossomos ao microscópio, Marta Breuer – alemã com formação em artes plásticas na Escola de Bauhaus – percebeu que o padrão de bandas se modificava ao longo do desenvolvimento, o que interpretou como aumento no DNA. Segundo Amabis, Pavan concluiu que o animal tinha necessidade de produzir mais proteínas de determinados tipos e aumentava a quantidade dos genes correspondentes – o que ficou conhecido como amplificação gênica. Fez frente aos críticos, aferrados à constância da quantidade de DNA, e derrubou o dogma.
“Pavan provavelmente não teria enxergado a mudança no padrão ao longo do desenvolvimento se não fosse o olhar detalhista da Marta”, avalia Amabis. “Seu mérito foi confiar no dado, interpretá-lo e brigar por ele.” Em Rhynchosciara, os cromossomos politênicos também estão em células do intestino e dos túbulos de malpighi (órgãos excretores de insetos), além das glândulas salivares. Comparando os três tecidos, Breuer e Pavan mostraram que os cromossomos sempre têm os mesmos genes, mas que eles funcionam de maneira diferente em cada parte do corpo.
De lá para cá muito mudou na compreensão de como o DNA funciona, mas os pufes de DNA ainda guardam mistérios. “Não se sabe qual sequência específica sinaliza para que o DNA amplifique nem como ele fica organizado”, diz o geneticista Eduardo Gorab, do IB-USP. Ele e Amabis pretendem continuar investigando essa questão nos pufes de R. papaveroi. Gorab também está interessado na heterocromatina, parte condensada do DNA que ele estuda em drosófilas. “Há problemas interessantes nas lâminas de papaveroi.”
As lâminas foram produzidas por Amabis, que chegou entusiasmado ao laboratório no IB-USP e pôs-se ao microscópio, dissecando as larvas e preparando o material para análise de cromossomos – como Pavan fizera quase 70 anos antes. “Eu fiquei de Marta Breuer, ajudando”, brinca Gorab, que foi orientado por Amabis no mestrado, defendido em 1991 com a presença de Pavan na banca examinadora. “Deu para ver que a amplificação gênica e os pufes que a Marta e o Pavan descreveram em R. americana estão lá”, conta Amabis.
A empolgação com o achado de R. papaveroi transcende os cromossomos. A espécie foi descrita em 1971 por Breuer a partir de poucos adultos, mas as larvas nunca foram mantidas em laboratório. Cada conjunto de ovos produz larvas de apenas um sexo, dificultando a reprodução em cativeiro. Agora, 50 anos depois, voltam ao laboratório.
No laboratório de Gorab, as larvas começaram a secretar a teia com que fazem seu característico casulo coletivo. Mas morreram antes de chegar à metamorfose, apesar do cardápio caprichado preparado por Amabis usando restos de camas para cultivo de cogumelos, cedidos por uma vizinha, misturados a ramas de batata. “Elas comeram bem por dois meses.” Na próxima oportunidade, ele pretende tentar o cultivo na serra.
Outra espécie de Rhynchosciara, talvez ainda não descrita, apareceu recentemente no próprio IB-USP. “Elas comem as flores do chichá em estado de fermentação”, conta Gorab, referindo-se à grande árvore que cresce em frente ao prédio do departamento. Apesar de ter se desenvolvido no laboratório, a reprodução foi impossível porque nasceram apenas fêmeas. Assim, ainda não pôde ser estudada. O pesquisador está de olho na próxima florada, em busca das moscas.
Da genética à difusão
Pavan deixou sua marca na ciência por meio dos estudos com moscas, mas sua atuação foi muito além. Ele foi estudar história natural em 1939 por ter se encantado com um filme em que o ator Paul Muni (1895-1967) interpretava o químico francês Louis Pasteur (1822-1895). Ao assistir a uma palestra de André Dreyfus, foi perguntar como poderia fazer algo semelhante e foi aconselhado a desistir da Escola Politécnica, para a qual fazia o curso pré-universitário, e seguir o recém-criado curso de história natural, que à época funcionava no palacete da alameda Glette, no centro de São Paulo. Eram turmas pequenas em um espaço exíguo, o que propiciava fortes amizades entre colegas e com os professores, conta a bióloga Neuza Guerreiro de Carvalho, que se formou em licenciatura na Glette em 1951 com trabalho de especialização coordenado por Pavan. “Eu media asinhas de drosófila”, lembra. “O Pavan era muito jovem, se identificava com os alunos”, lembra ela, que é autora do capítulo sobre história natural do livro A Glette, o palacete e a Universidade de São Paulo, publicado em 2014 pelo Centro de Memória do Instituto de Psicologia da USP. O livro também tem coordenação do geneticista Carlos Vilela, responsável pela Comissão Memória do Departamento de Genética do IB-USP e pela digitalização das fotos antigas dessas páginas.
Foi ainda lá que, por iniciativa da Fundação Rockefeller, como resultado de negociação com Dreyfus, o já renomado geneticista russo naturalizado norte-americano Theodosius Dobzhansky (1900-1975) chegou em 1943 para ajudar a desenvolver a genética brasileira. Pavan trabalhou com ele no Brasil e passou um período em seu laboratório na Universidade Columbia, em Nova York, entre 1945 e 1946. Essa associação ajudou o brasileiro a desenvolver seus estudos e a manter o contato com a Fundação Rockefeller, que continuou a financiar a genética brasileira. “Por 20 anos tivemos apoio sem precisar discutir verbas”, contou Pavan na entrevista em vídeo. João Morgante lembra que Pavan foi o professor catedrático mais jovem da USP, efetivado em 1953 em consequência da morte prematura de Dreyfus.
O geneticista foi um dos fundadores da Academia de Ciências do Estado de São Paulo, presidente da Sociedade Brasileira de Genética (o primeiro da “nova” geração, o grupo que se seguiu aos pioneiros como Dreyfus), diretor-presidente da FAPESP entre 1981 e 1984, presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) entre 1986 e 1990, período em que entre outras coisas criou a Estação Ciência, museu interativo em São Paulo que já não existe. Em 1997 assumiu a cocoordenação do Núcleo José Reis de Divulgação Científica na Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP, iniciando um empenho na popularização da ciência que manteve até o final da vida.
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