Um rolo de filme de 16 milímetros, de cerca de 30 minutos, contendo um curta-metragem dirigido em 1973 por Nelson Pereira dos Santos (1928-2018), foi encontrado pelo historiador José Amílcar Bertholini de Castro durante pesquisa de doutorado desenvolvida na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), em Cuiabá. Apesar de constar da filmografia do cineasta, o paradeiro da obra era desconhecido até então.
Rodado durante parceria entre a UFMT e a produtora Regina Filmes, que ainda hoje pertence à família do cineasta, o filme traz imagens e depoimentos sobre a Cidade Laboratório de Humboldt, um dos primeiros projetos de pesquisa da universidade, que foi criada em 1970. Construída no município de Aripuanã, a cerca de 900 km de Cuiabá, a Cidade Laboratório funcionou entre 1973 e 1978 com a finalidade de reunir cientistas brasileiros e estrangeiros, pequenos agricultores e povos indígenas na busca por soluções de desenvolvimento que não degradassem o meio ambiente da região amazônica. O projeto foi criado a partir de convênio estabelecido entre os ministérios do Planejamento, do Interior, da Educação e Cultura, além do governo de Mato Grosso.
Ofícios trocados à época entre o médico Gabriel Novis Neves, primeiro reitor da UFMT, fundada em 1970, e o Ministério da Educação indicam que a iniciativa pretendia fomentar “a participação da ciência e tecnologia no desenvolvimento de uma área potencialmente rica e ainda não integrada à economia nacional”. “A cidade foi montada por meio de suporte logístico dos aviões da Força Aérea Brasileira, que permitiu levar casas pré-fabricadas à região, onde chegaram a viver cerca de 150 pessoas”, conta o engenheiro e atual vice-reitor da UFMT, Evandro Soares. Documentos administrativos da universidade indicam que dificuldades de acesso, desinteresse dos cientistas, disputas pelo território em que estava instalada a Cidade Laboratório, problemas gerenciais e escassez de verbas motivaram o encerramento da empreitada, cinco anos depois de seu início. Parte dos artefatos coletados pelos antropólogos e sociólogos que trabalharam no projeto, entre eles adereços e ferramentas de índios Cinta Larga, pertence hoje ao acervo do Museu Rondon de Etnologia e Arqueologia, que fica no campus de Cuiabá da UFMT.
Cópia única
Bertholini de Castro, que descobriu o filme e é funcionário da UFMT, trabalhava na organização e no tratamento de arquivos institucionais da reitoria como parte de um processo de preparação do acervo para consultas públicas, quando se deparou com uma pasta com informações sobre o projeto da Cidade Laboratório. “Sou funcionário da instituição desde 1982 e nunca tinha ouvido falar dele. Resolvi investigar o assunto na pesquisa de doutorado que atualmente desenvolvo no Departamento de História da UFMT”, conta. O esforço para levantar dados sobre a Cidade Laboratório envolveu consultas em documentos administrativos da universidade, além de informações obtidas em Cuiabá e no Rio de Janeiro. Foi em edições de jornais e revistas da década de 1970 – entre eles O Estado de Mato Grosso, O Globo, Opinião e Veja – que o pesquisador encontrou menções a respeito de um filme de Santos sobre o projeto. “Busquei a obra, sem sucesso, na Cinemateca do Rio e na própria Regina Filmes”, conta.
Algum tempo depois, durante entrevista com o ex-reitor Neves, o historiador ficou sabendo que o filme teria sido exibido apenas uma vez, para seis pessoas ligadas à UFMT, tão logo foi concluído, em 1973. Com o fim do projeto da Cidade Laboratório, o rolo original ficou sob a responsabilidade de um funcionário da universidade, que se encarregou de realizar cópias do trabalho, mas acabou por não fazê-lo. Com a ajuda de Neves, Bertholini de Castro conseguiu reaver o rolo original, que foi devolvido à reitoria da UFMT. “Agora precisamos de financiamento para a restauração. Essa provavelmente é a única cópia disponível do filme, daí a importância de resgatá-la, mesmo que parcialmente. O rolo está muito danificado”, explica o vice-reitor Soares.
Considerado um dos principais cineastas brasileiros, Nelson Pereira dos Santos foi um dos precursores do Cinema Novo, movimento de renovação da cinematografia nacional entre as décadas de 1960 e 1970. Questões sociais marcaram a trajetória do cineasta que, em 1955, realizou seu primeiro longa-metragem, Rio, 40 graus. Em 1963, dirigiu Boca de ouro e Vidas secas baseados, respectivamente, em livros de Nelson Rodrigues (1912-1980) e Graciliano Ramos (1892-1953). Em 1967, rodou El justicero e Fome de amor e, no ano seguinte, ajudou a criar o curso de cinema da Universidade Federal Fluminense (UFF), onde passou a dar aulas. O professor Mateus Araújo, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), desconfia que Santos realizou o curta-metragem sob encomenda. “Certamente ele não se tornará uma peça-chave de sua filmografia, mas dada a importância de Santos na história do cinema brasileiro, sem dúvida alguma é necessário restaurá-lo”, finaliza.
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