É incerto o futuro do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), a principal ferramenta de financiamento à pesquisa e à inovação do governo federal, que completou 50 anos no final de julho. Desde 2015, sucessivos bloqueios orçamentários decretados pelo governo fizeram com que o dinheiro disponível no fundo a cada ano seja menor que no anterior, comprometendo o custeio de bolsas e projetos de pesquisa em universidades e empresas. A proposta de lei orçamentária que tramita no Congresso prevê que o FNDCT arrecadará mais de R$ 6,4 bilhões em 2020, mas apenas R$ 600 milhões estarão livres para investimentos – outro R$ 1,6 bilhão deve abastecer linhas de crédito a empresas da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), enquanto mais de R$ 4 bilhões ficarão contingenciados. Em 2019, R$ 421 milhões já foram gastos de um orçamento aprovado de R$ 851 milhões – isso equivale a 45% dos pagamentos feitos em 2015, que alcançaram R$ 2,39 bilhões.
A gestão do FNDCT também pode mudar em 2020. Uma proposta apresentada pelo Ministério da Economia em setembro, mas ainda não oficializada, propõe transferir a administração do fundo da Finep para o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), repassando ao banco o dinheiro bloqueado nos últimos anos. A proposta também sugere a substituição do FNDCT, que recebe receitas de diferentes setores da economia, por um fundo abastecido por aportes da União. A ideia de deslocar o gerenciamento para o BNDES já foi aventada anteriormente e seu efeito natural seria o esvaziamento da Finep – a agência utiliza os recursos do fundo para oferecer crédito e investimentos não reembolsáveis a empresas e bancar a infraestrutura de pesquisa de instituições científicas. O Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), a quem a Finep é subordinada, perderia capacidade de articulação se for privado do controle desses recursos.
Caso vingue, a mudança poderá representar o fim de um instrumento que sobreviveu a várias reorganizações do sistema de financiamento de ciência e tecnologia. Concebido no auge do período militar (1964-1985), o FNDCT foi criado por um decreto-lei, assinado em 31 de julho de 1969 pelo então presidente da República, o general Arthur da Costa e Silva, e já no início dos anos 1970 se tornou o braço financeiro de uma política de Estado que associava o crescimento do país a sua capacidade de formar pesquisadores e montar uma infraestrutura científica e tecnológica competitiva. Como parte da mesma estratégia, foram criadas na época instituições como a Finep e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), e reformulados o Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro) e o Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (Inpi).
A lista de projetos de pesquisa que o FNDCT patrocinou é extensa. O fundo foi crucial para montar laboratórios em universidades e criar as bases do sistema de pós-graduação do Brasil. O número de operações do FNDCT subiu de 26 em 1972 para 201 em 1978, com valores médios de US$ 2 milhões por projeto. Com o aporte desses recursos, o número de cursos de pós-graduação cresceu de 125 em 1969 para 974, 10 anos mais tarde. “O foco nessa primeira fase foi a infraestrutura de pesquisa, com o financiamento à montagem de laboratórios em instituições como a Universidade de São Paulo e as principais universidades federais”, afirma Luiz Martins de Melo, analista da Finep e professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Outra vocação da Finep, em seus primeiros anos, foi viabilizar estudos sobre grandes projetos de infraestrutura do país. Os projetos de engenharia da hidrelétrica de Itaipu e da ponte Rio-Niterói foram custeados pelo fundo. Em um segundo momento, empresas interessadas em fazer pesquisa e desenvolvimento (P&D) ganharam uma linha de crédito financiada pelo FNDCT: a partir de 1976, 30% de seus recursos abasteceram o programa de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico da Empresa Nacional (ADTEN). O apoio à inovação, que se tornaria a principal vocação da Finep, já era uma preocupação do governo quando o FNDCT foi criado. “Em meados da década de 1960, foi constatada a necessidade de estruturar os mecanismos para o financiamento à inovação e o BNDES assumiu essa missão. Depois, percebeu-se que as lógicas de financiamento de ativos intangíveis eram peculiares e se criou a Finep”, diz Martins.
A ambição de obter um crescimento vigoroso e sustentável estava expressa no 2º Plano Básico de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (PBDCT), lançado em 1976, que previa investimentos de cerca de US$ 2,5 bilhões em pesquisa em áreas como energia, agropecuária e desenvolvimento regional, nos anos seguintes. “Foi a política de ciência e tecnologia mais impressionante que o Brasil teve”, afirma Carlos Américo Pacheco, professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e diretor-presidente do Conselho Técnico-Administrativo da FAPESP. Na apresentação do 2º PBDCT, o economista João Paulo dos Reis Velloso, ministro do Planejamento, resumiu seus propósitos: “Se vamos aplicar tantos bilhões num plano como este, devemos assegurar relevância à ciência e tecnologia que se vai fazer na vida do país. Relevância em vários campos. Inicialmente, em termos de soluções tecnológicas para o atual estágio de desenvolvimento industrial e para a situação da crise de energia e os problemas de balanço de pagamentos”, escreveu, ressalvando que o desafio requeria uma abordagem abrangente. “Evitou-se, desde logo, a colocação de falsos dilemas. Pesquisa fundamental, pesquisa aplicada e inovação tecnológica têm de andar de braços dados. Senão, estaremos faltando ao bom senso e desperdiçando recursos públicos.”
Os efeitos da crise do petróleo e o aumento da inflação fulminaram as expectativas de crescimento, mas atribui-se ao investimento em pesquisa científica e em capacidade industrial a resiliência das empresas no período de retração que veio no final da década de 1970. Nessa fase, porém, o FNDCT perdeu fôlego. Entre 1979 e 1984, os recursos repassados pela União caíram para apenas 30% do período anterior, enquanto o número de operações triplicou de 201 para 663 e o dinheiro se pulverizou: o valor médio das operações caiu para apenas 10% do que era antes. A criação do Ministério da Ciência e Tecnologia deu novo fôlego ao FNDCT em 1985. De um patamar na casa dos US$ 60 milhões naquele ano, o governo federal, agora civil, garantiu montantes anuais de US$ 90 milhões até 1988. Nesse período, foi instituído um programa emergencial para reequipar laboratórios. A partir de 1989, no entanto, a crise econômica associada à hiperinflação derrubou os repasses da União, que chegaram a US$ 30 milhões em 1991.
O FNDCT ganhou uma segunda vida no final dos anos 1990 com a criação de Fundos Setoriais de Ciência e Tecnologia, que se tornaram a sua principal fonte dos recursos. Dos 16 fundos setoriais, 14 estão vinculados a segmentos da economia como petróleo, energia, saúde, biotecnologia, enquanto dois são de caráter transversal, voltados para projetos que promovem interação entre universidades e empresas e para a melhoria da infraestrutura de instituições científicas. Cada fundo é abastecido por receitas específicas. O de energia, por exemplo, recebe entre 0,3% e 0,4% sobre o faturamento de concessionárias do setor elétrico. O de petróleo e gás, que recebia um percentual dos royalties da produção, perdeu essa fonte de recursos em 2013 quando o Congresso regulamentou a exploração do pré-sal.
O objetivo dos fundos setoriais era complementar os repasses da União para o FNDCT e usar a maior parte dos recursos arrecadados para financiar pesquisa de interesse de cada setor – para tanto, cada fundo teria um comitê gestor encarregado de selecionar os projetos. Na prática, esse dinheiro substituiu os repasses da União e o caráter setorial do investimento em pesquisa se descaracterizou. O FNDCT passou a contemplar apoio a eventos, projetos sem vínculo com as agendas setoriais e outros tópicos da política industrial do governo. Um relatório produzido em 2016 pela Comissão de Ciência e Tecnologia do Senado apontou desacertos na condução dos fundos setoriais, notadamente a “captura do FNDCT” pelo MCTIC, que passou a contar com os recursos para seus programas e exercer controle sobre o comitê de coordenação. “Os fundos setoriais foram perdendo eficácia com o avanço das ações de caráter transversal”, diz Pacheco, que foi um dos idealizadores dos fundos como secretário-executivo do Ministério da Ciência e Tecnologia e presidente do Conselho de Administração da Finep entre 1999 e 2002. Um exemplo de desvirtuamento ocorreu entre 2013 e 2015, quando mais de R$ 2 bilhões de recursos do FNDCT custearam um programa de intercâmbio internacional para alunos de graduação, o Ciência sem Fronteiras.
A necessidade de buscar novas receitas e de reestruturar os fundos setoriais vinha sendo discutida. Há dois anos, o então presidente da Finep, Marcos Cintra, propôs que o FNDCT deixasse de ter caráter contábil para se converter em um fundo financeiro – dessa forma, os recursos contingenciados, mesmo bloqueados, poderiam gerar rendimentos e elevar os investimentos. Mas a ideia não foi adiante. Na avaliação de João de Negri, economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) que participou de uma avaliação da eficácia do FNDCT no início da década, o fundo tem sido uma ferramenta importante e deve continuar na esfera de influência do MCTIC, mas precisa ser reformulado, evitando a pulverização de recursos e retomando certas ambições dos tempos de sua criação. “O fundamental, hoje, é fazer com que a ciência brasileira ganhe escala e disponha de grandes laboratórios capazes de viabilizar pesquisas em áreas na fronteira do conhecimento, como inteligência artificial e biotecnologia.” Segundo ele, isso ajudaria a economia a ganhar produtividade e a escapar de períodos de estagnação que comprometem a capacidade do país em financiar adequadamente a ciência, a tecnologia e a inovação.
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