Na manhã de 6 de fevereiro de 2020, ao abrir um seminário sobre os 70 anos de criação da National Science Foundation (NSF) dos Estados Unidos, a astrofísica France Córdova resumiu deste modo a essência da instituição que ela dirige: “A NSF reúne cientistas inovadores e empreendedores para resolver problemas do país e do mundo”. Córdova deixou o cargo de diretora no final de março, após um mandato de seis anos. Em dezembro de 2019, o presidente Donald Trump nomeou o indiano Sethuraman Panchanathan, diretor de Pesquisa e Inovação da Universidade Estadual do Arizona e membro do National Science Board (NSB), que supervisiona a NSF, para substituí-la. O nome dele terá de ser confirmado pelo Congresso dos Estados Unidos.
Com um orçamento de US$ 8,3 bilhões para 2020, a NSF é a principal agência de apoio à pesquisa básica nos Estados Unidos. Em 2019, financiou projetos científicos e tecnológicos em 1.800 universidades e centros de pesquisa, recebeu 41 mil projetos de pesquisa para analisar – aprovou 11.300 – e apoiou 306 mil pesquisadores, professores e estudantes nos Estados Unidos. Financia desde trabalhos sobre ensino de ciências no ensino básico, visando à formação de jovens lideranças – “uma das prioridades da Casa Branca e do Congresso”, ressaltou Córdova em sua apresentação –, a projetos de astrofísica como o Laser Interferometer Gravitational-Wave Observatory (Ligo), que detectou ondas gravitacionais em 2015 e dois anos depois rendeu um prêmio Nobel a três físicos norte-americanos que lideraram a pesquisa. A fundação tem 4 navios de pesquisa oceanográfica, 2 aviões para estudos da atmosfera, mantém 7 supercomputadores e 19 telescópios. Os Institutos Nacionais de Saúde (NIH), com um orçamento cinco vezes maior, dedicam-se exclusivamente à pesquisa biomédica.
A criação da NSF foi uma das propostas do relatório “Science, the endless frontier” (Ciência, a fronteira sem fim), publicado em julho de 1945 e elaborado pelo engenheiro norte-americano Vannevar Bush (1890-1974), que chefiava o Escritório de Pesquisa Científica e Desenvolvimento, órgão do governo norte-americano que coordenou o esforço científico dos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). “Bush lutou para que a NSF fosse criada para fortalecer a posição internacional dos Estados Unidos”, conta o historiador Gildo Magalhães, diretor do Centro Interunidade de História da Ciência da Universidade de São Paulo (USP).
No relatório, elaborado a pedido do governo norte-americano, Bush analisou gastos entre 1930 e 1940. Em 1930, o desembolso com pesquisa científica da indústria e do governo – quase toda aplicada – era seis vezes maior do que aquele com pesquisa básica de universidades e institutos; em 1940 era 10 vezes maior. “Se universidades e institutos de pesquisa atenderem às crescentes demandas da indústria e do governo por novos conhecimentos científicos, sua pesquisa básica deve ser fortalecida pelo uso de fundos públicos”, escreveu. Ele definiu pesquisa básica como aquela realizada sem pensar em fins práticos, que resultaria “em conhecimento geral e no entendimento da natureza e de suas leis”. Para ele, “esse conhecimento geral fornece os meios para responder a um grande número de problemas práticos importantes, embora possa não dar uma resposta específica e completa a nenhum deles”.
Em julho de 1945, o senador Warren Magnuson (1905-1989) propôs a criação efetiva da nova instituição, que ganhou o nome de National Science Foundation. Em 1947, o Congresso aprovou a proposta, mas o presidente Harry Truman (1884-1972) a vetou por não lhe dar o direito de nomear o diretor da agência.
O governo dos Estados Unidos aprovou a criação da NSF em 10 de maio de 1950, destinando-lhe 24 funcionários em tempo parcial, um diretor-geral e um diretor-executivo, todos indicados pelo presidente – hoje são 1.850 funcionários e um corpo rotativo de 200 assessores, que avaliam os pedidos de financiamento a projetos de pesquisa. O presidente mantém o direito de nomear o diretor e um comitê de 24 membros, o NSB, ambos com mandato de seis anos.
Como Córdova lembrou na apresentação de uma reedição do relatório de Bush, distribuída como parte das comemorações dos 70 anos, a nova instituição não se tornou uma financiadora de todas as pesquisas básicas do governo federal, como Bush havia imaginado, porque outros centros, como os NIH, a hoje extinta Comissão de Energia Atômica e o Escritório de Pesquisa Naval, expandiram-se.
A NSF começou a operar em março de 1951 com um orçamento de US$ 225 mil. Em 1952, destinou seu primeiro financiamento, de US$ 10,3 mil, para pesquisas básicas no Instituto de Pesquisa em Câncer (ICR), complementando o trabalho de caráter aplicado dos NIH. O ano terminou com 97 projetos aprovados, entre eles os do biólogo Max Delbruck (1906-1981, Nobel de 1969) e do físico Burton Richter (1931-2018, Nobel de 1976).
Em outubro de 1957, depois de a então União Soviética lançar o Sputnik I, o primeiro satélite artificial, o governo dos Estados Unidos fez uma avaliação de seu sistema de pesquisa científica e educação e o expandiu. Um dos resultados foi a criação da Nasa, a agência espacial, que começou a operar em julho de 1958. “De 1957 a 1961, o investimento do governo federal em pesquisa e desenvolvimento dobrou e para ciência básica triplicou”, observou o historiador Mark Solovey, da Universidade de Toronto, no Canadá, em um artigo publicado em fevereiro de 2019 na revista International Journal for History, Culture and Modernity. O orçamento da NSF saltou de US$ 40 milhões em 1958 para US$ 500 milhões em 1968.
Outro efeito do Sputnik foi que o financiamento em projetos sobre educação triplicou. Em 1972, outra decisão do Congresso fez a NSF responsável por programas de educação em ciência, tecnologia, engenharia e matemática desde o ensino básico. Essa ainda é uma das prioridades da instituição, cujo site (www.nsf.gov) oferece material impresso e vídeos sobre ciência e tecnologia para crianças e jovens.
Nem sempre as relações com o governo foram amistosas. No seminário de fevereiro, o sociólogo Richard Atkinson, diretor da NSF de 1977 a 1980, disse que a instituição viveu tempos difíceis no final dos anos 1970. Era severamente criticada por causa da proposta de um currículo de ciências, que tinha sido aprovada sem a habitual revisão por especialistas e “muitos conservadores consideravam que minava os valores tradicionais dos Estados Unidos”, comentou. Atkinson foi o primeiro diretor a gerenciar um orçamento de US$ 1 bilhão e conduziu o primeiro acordo científico com a China, facilitando o intercâmbio de pesquisadores entre os dois países.
Hoje, a instituição vive momentos de incerteza. “A Casa Branca pede cortes radicais, de 11% a 30% por ano, desde 2017, do orçamento da NSF, mas até agora o Congresso tem restaurado o orçamento e em um dos anos deu um pequeno aumento”, disse a Pesquisa FAPESP o antropólogo Emilio Moran, da Universidade Estadual de Michigan, nos Estados Unidos, membro do NSB e coordenador de um projeto que analisa os impactos de hidrelétricas na Amazônia, apoiado pela FAPESP. “Para evitar a queda orçamentária”, acrescentou, “temos dado muita ênfase em explicar aos congressistas a importância da ciência e tecnologia para o progresso do país”.
Segundo ele, a NSF enfrenta dois grandes problemas. O primeiro é o aumento dos investimentos da produção da China em ciência e tecnologia, que tem ocorrido com uma velocidade maior que a dos Estados Unidos.“Ainda não conseguimos convencer o Congresso a aumentar o investimento nessa área a níveis competitivos com os investimentos da China”, comentou Moran. O segundo é o clima de restrição à permanência nos Estados Unidos de cientistas estrangeiros, principalmente da Índia e da China. “Qualquer restrição a esse fluxo é um erro”, disse. “Quase metade da ciência e engenharia nos Estados Unidos é feita por cientistas talentosos vindos de outros países.”
A fundação “está integrada a todos os ministérios e realmente participa do crescimento econômico do país”, comentou Kelvin Droegemeier, diretor do Escritório de Política Científica e Tecnológica da Casa Branca, no seminário de fevereiro. Em 2018, a NSF destinou cerca de US$ 200 milhões a projetos conduzidos por pequenas empresas, no âmbito do programa Small Business Innovation Research (SBIR), que agrega 11 agências governamentais.
Criado em 1977, o SBIR inspirou o programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe), da FAPESP, lançado em 1997. As duas fundações se aproximaram ao longo do tempo. Em 2011, o acordo de colaboração científica mais recente uniu as equipes dos dois programas apoiados por cada uma das duas instituições, o Biota-FAPESP e o Dimensions of Biodiversity; a colaboração já tomou a forma de 79 projetos de pesquisa apoiados pela Fundação paulista.
A NSF também financiou diretamente pesquisas no Brasil. Nos anos 1990 – com a Nasa, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a FAPESP –, apoiou a primeira etapa do programa Experimento de Larga Escala na Biosfera-Atmosfera na Amazônia (LBA). Ainda em vigor, com financiamento exclusivamente brasileiro, o LBA detalhou as interações entre atmosfera, solos, rios, flora, fauna e seres humanos, motivando cerca de 2 mil artigos científicos.
“Science, the endless frontier” norteou a criação de agências de apoio à ciência em vários países, inclusive o Brasil, interessados em criar seus sistemas de ciência e tecnologia. Pesquisadores brasileiros utilizaram o documento nas propostas à Assembleia Constituinte de 1947 que resultaram na criação da FAPESP, como detalhado no livro FAPESP 50 anos – Meio século de ciência (FAPESP, 2015), organizado pelo historiador Shozo Motoyama “O Almirante Álvaro Alberto [da Mota e Silva, 1889-1976] usou as ideias de Bush para criar o CNPq, em 1951, e assegurar que a energia atômica tivesse uso pacífico e não ficasse fora do alcance da ciência brasileira”, diz Magalhães.
Graduado em relações internacionais, com doutorado em política científica e tecnológica, Renan Leonel da Silva, pesquisador da Faculdade de Medicina da USP, reconhece sinais das propostas de Bush no parecer Sucupira, de 1965. Elaborado pelo historiador e filósofo da ciência Newton Sucupira (1920-2007), membro do Conselho Federal de Educação e professor da Universidade Federal de Pernambuco, o documento ajudou a orientar a criação do sistema de pós-graduação no Brasil. “Sucupira e o comitê que elaborou o parecer argumentavam que a pós-‑graduação deveria ter uma configuração adequada ao espaço brasileiro, sem simplesmente copiar a experiência norte-americana”, observa Silva.
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